Vinte indígenas na região do Tapajós estão enfrentando ameaças de garimpeiros. Eles comunicaram a situação às autoridades, mas só quatro deles ingressaram em programa de proteção no Pará. O motivo: o grupo não quer deixar o território e ir para a cidade para receber segurança individual, e pede uma solução coletiva dentro de suas terras.

Vinte indígenas Munduruku que vivem sob ameaça de garimpeiros, no oeste do Pará, precisam de proteção, mas discordam de serem retirados do território e levados para a cidade para receber segurança no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDH) da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos do Pará. Apesar de todos os casos de ameaças terem sido informados às autoridades, apenas quatro efetivamente ingressaram no programa, conforme relatou à reportagem Maria Leusa Munduruku, coordenadora da associação Wakoborũn, e uma das pessoas ameaçadas.

Em abril, lideranças indígenas do povo Munduruku se reuniram com membros do Ministério dos Direitos Humanos, em Brasília, para buscar formas de incluir os outros ameaçados, mas querem ser protegidos de forma coletiva e sem deixar o território indígena. No modelo do programa atual, a proteção ocorre de forma individual e, na maioria dos casos, fora da terra indígena.

Em 2021, a casa de Maria Leusa foi incendiada após ser alvo de disparos realizados por garimpeiros que atuam na região. O ataque ocorreu em meio a uma série de denúncias dos Munduruku sobre a atividade ilegal em seus territórios na região do Tapajós. Na época, ela precisou deixar a aldeia para receber proteção do estado na cidade. 

Justamente por isso, mesmo entre os quatro indígenas que receberam o apoio do programa, há uma insatisfação. Segundo Leusa, eles reclamam que, para receberem a proteção, são obrigados a sair do território e ir para a cidade, onde são acompanhados por rondas da Polícia Militar, o que não ocorre se estiverem dentro do território.

“Eles [programa do estado] só fazem a proteção na cidade. Não entendem que a nossa vida na aldeia é diferente da vida na cidade. Nós queremos uma proteção coletiva, para todos que estão ameaçados, e dentro das nossas terras”, destacou Leusa, informando que pode abandonar o programa se os demais indígenas não puderem ser incluídos.

Eles [programa do estado] só fazem a proteção na cidade. Não entendem que a nossa vida na aldeia é diferente da vida na cidade. Nós queremos uma proteção coletiva, para todos que estão ameaçados, e dentro das nossas terras.

Maria Leusa Munduruku, coordenadora da associação Wakoborũn

Para a coordenadora da associação Wakoborũn, a retirada dos indígenas de dentro do território para receber proteção na cidade enfraquece as atividades coletivas contra o garimpo e acaba privilegiando os invasores. “Nós que defendemos o território. Se não estamos lá, os invasores voltam”, afirma Leusa Munduruku.

Nós que defendemos o território. Se não estamos lá, os invasores voltam.

Maria Leusa Munduruku, coordenadora da associação Wakoborũn

A expectativa da demarcação

Em 23 de abril, os representantes do povo Munduruku realizaram mais uma reunião em Brasília na sede do Ministério da Justiça. Ao sair do encontro, eles disseram estar frustrados: mais uma vez, voltaram para suas aldeias, às margens do Tapajós, sem resposta sobre a demarcação dos 178.173 hectares da TI Sawré Muybu (Pimental), uma das principais lutas dos Munduruku para proteção de suas áreas.

Os indígenas aguardam a demarcação definitiva do território, que já teve os estudos da fase de identificação concluídos e, agora, depende da publicação de portaria para a declaração do território, fase em que é autorizada a demarcação física. Segundo Maria Leusa, esta seria a única forma de assegurar o direito pleno sobre suas terras e cobrar ações efetivas do governo para retirada de invasores, como ocorre nas terras já homologadas.

Leusa afirma que todos os anos os indígenas conferem os limites do território, que foi auto-demarcado por eles mesmos, e quando encontram ilegalidades pedem apoio dos órgãos de fiscalização ambiental. “Por isso que nós queremos proteção coletiva”, indicando que os demais indígenas ameaçados não devem aderir ao programa no formato atual.

Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Muybu, denunciou as invasões no território durante o ATL, em um debate sobre garimpo que contou com a presença de representantes do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Além da falta de proteção do território, ele apontou a tentativa de aliciamento de indígenas para atuarem junto com os invasores nos garimpos. Juarez também afirmou que toda a população local está contaminada com mercúrio que é usado para extração de ouro na região.

“Todos nós estamos contaminados, nossos peixes e a água também estão contaminados. Precisamos parar urgentemente com o garimpo nas nossas terras”, declarou no encontro.

A contaminação por mercúrio ocorre essencialmente pelo consumo de peixe. Com o fluxo dos rios para além dos limites da TI, não indígenas também ficam expostas ao risco de ingerir pescado envenenado.

Juarez Saw, durante ATL 2024, falando sobre a presença de garimpeiros no território do povo Munduruku. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Em novembro do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que o Ministério da Justiça priorize a demarcação da TI Sawré Muybu. Na época, a procuradora Thaís Medeiros estipulou prazo de até 60 dias para que o órgão apresentasse informações sobre publicação da portaria que declara a ocupação tradicional, mas, até o momento, a portaria não foi publicada.

Na recomendação, Medeiros destacou que as etapas técnicas e jurídicas para demarcação do território foram cumpridas “e que a demora da demarcação é consequência da omissão do Poder Executivo Federal”.

Pelo menos 11 ações tramitam no MPF relacionados à TI Sawré Muybu. Além do processo de 2014 que cobra celeridade na demarcação, existe uma ação de 2019 por tentativa de genocídio, outra, de 2017, para apurar a destruição de locais sagrados na TI provocados por garimpos de ouro, e uma de 2023 por queimadas ilegais dentro do território. Ao menos outras três investigações correm em sigilo.

O Ministério da Justiça foi procurado pela InfoAmazonia e não se manifestou sobre o processo para declaração da TI Sawré Muybu até a publicação desta reportagem. O governo do Pará também não respondeu aos questionamentos sobre os pedidos dos indígenas no Programa de Proteção do Estado.A demarcação da TI Sawré Muybu se arrasta desde 2004, quando um pedido de reconhecimento do território deu entrada na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em 2014, cansados de esperar, os indígenas iniciaram a autodemarcação, um processo que resultou também na retirada de invasores do território pelos próprios indígenas.

Draga de garimpo próxima à aldeia Sawré Muybu, em abril de 2022. Foto: Julia Dolce/InfoAmazonia

Em abril de 2016, foi publicado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da terra indígena, que recebeu sete contestações administrativas, que apresentaram questionamentos sobre a demarcação, todas analisadas e consideradas improcedentes. Em abril do ano passado, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, encaminhou o processo ao Ministério da Justiça, reconhecendo que todas as etapas para demarcação do território foram concluídas. 

Segundo a legislação, o Ministério da Justiça teria até 30 dias para declarar os limites da área e determinar sua demarcação física, ou desaprovar a identificação. Após esta etapa, a TI estaria pronta para ser homologada pelo presidente da República. Mas nenhum despacho em relação ao pedido foi emitido até o momento.

Na reunião na sede do Ministério, em Brasília, no último 23 de abril, os indígenas não conseguiram falar com o ministro Ricardo Lewandowski e acabaram sendo recebidos pela secretária de Acesso à Justiça, Sheila de Carvalho, e pelo diretor de Promoção de Acesso à Justiça, Pedro Martinez, que prometeram fazer “análise individualizada” dos pedidos, mas sem respostas sobre quando o território será legalmente declarado.

Garimpo, mineração e Ferrogrão

A TI Sawré Muybu está em uma das regiões com maior atividade garimpeira do país, na bacia do Tapajós. Dados do projeto Amazônia Minada mostram também que há pelo menos 71 solicitações formais para mineração nos limites da terra indígena, incluindo pedidos para extração de cobre, cassiterita e minério de ouro.

Em decisão recente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes propôs a criação de uma mesa de conciliação para resolver os conflitos em terras indígenas. O pedido, segundo a coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), abre brechas para se discutir mineração e garimpos em terras indígenas, que podem afetar diretamente o território Sawré Muybu, onde grandes mineradoras têm pedidos ativos para realizar mineração industrial.

Além disso, o território também está na área de influência do projeto da ferrovia Ferrogrão, que visa interligar o município de Sinop, no Mato Grosso, com o Porto de Mirituba, no Pará, para escoamento da produção do agronegócio. Nessa região, as invasões em busca de novas áreas para produção de gado e grãos têm se intensificado desde o anúncio da obra, em 2014, assim como as multas por crimes ambientais.

Desculpe, dissemos errado

A versão anteriormente publicada desta reportagem foi modificada. Ao contrário do que informou a InfoAmazonia na primeira versão, os Mundurukus ameaçados não estão localizados somente na TI Sawré Muybu, mas sim em diversas terras indígenas na região do Tapajós. A lista das pessoas ameaçadas é de conhecimento das autoridades, mas não foram realizados pedidos formais desses casos para o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Pará, como havíamos informado. O que existe é um pedido de proteção coletiva que está sendo construído no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos, uma vez que isso não existe no serviço oferecido pelo estado.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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