Levantamento exclusivo expõe impacto muito maior que o estimado por empresas do agro. Ministério dos Povos Indígenas demonstra preocupação e cobra consulta, mas ministro dos Transportes de Lula externa otimismo com obra impulsionada por Bolsonaro.

Um trajeto de quase mil quilômetros de ferrovia que atravessará o centro do país em meio a áreas de proteção e a territórios indígenas onde vivem, inclusive, povos isolados. Esse é o projeto da Ferrogrão (EF-170), obra monumental que é a menina dos olhos de grandes produtores de soja e milho do Centro-Oeste do Brasil, com a promessa de fortalecer a nova rota de escoamento pelo Arco Norte do país e reduzir custos.

O transporte é feito hoje por caminhões que trafegam pela BR-163, rumo aos portos localizados nos municípios paraenses de Itaituba, Santarém e Barcarena. Com traçado paralelo à rodovia, a Ferrogrão tem como promessa reduzir os custos de transporte do agro, mas a um preço alto para os povos tradicionais e para a agenda brasileira de mudanças climáticas. 

É mais um caso que divide ministros de Lula. Desta vez, justamente no estado que será palco da COP-30, em 2025, quando o presidente da República gostaria de exibir resultados positivos no combate ao desmatamento e nas emissões de gases de efeito estufa.

Se eles não nos consultarem, a gente vai criar uma aldeia na linha do trem, aí quero ver se eles vão passar em cima da gente.

Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu
Indígenas Kayapó fecham a BR-163 durante protesto em agosto de 2020. Foto: Lucas Landau/Instituto Kabu

“Se eles não nos consultarem, a gente vai criar uma aldeia na linha do trem, aí quero ver se eles vão passar em cima da gente”, afirmou à reportagem Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu, que representa 12 comunidades do povo Mẽbêngôkre-Kayapó distribuídas entre as terras indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti e duas comunidades da TI Panará. O território está na área mais impactada pelo traçado da ferrovia, segundo análise exclusiva feita pelo Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo. Para agravar a situação, este é também o espaço utilizado por três povos isolados: Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.

O levantamento feito pela reportagem em parceria da InfoAmazonia e O Joio e O Trigo expõe como, ao todo, ao menos seis terras indígenas, onde vivem aproximadamente 2.600 pessoas, e 17 unidades de conservação estão na área delimitada, que abrange 25 municípios do Mato Grosso e do Pará, com população estimada em quase 800 mil pessoas. Considerando uma zona de amortecimento de 10km no entorno dos territórios, a ferrovia incide sobre mais de 7,3 mil km² de terras indígenas e ultrapassa 48 mil km² sobrepostos às unidades de conservação.

Como ANALISAMOS OS IMPACTOS DA FERROGRÃO EM TIs e UCs


Analisamos dados de infraestrutura rodoviária e terras indígenas que permitiram avaliar o impacto da Ferrogrão na região

Cruzamos com informações das áreas de conservação e desmatamento, e assim projetamos as consequências da ferrovia, em um raio de até 50 km em seu entorno. Esta reportagem contou com a consultoria e validação científica de pesquisadores do INPE. Confira mais detalhes nesta página.

A análise também considerou uma área de 50 km no entorno da Ferrogrão, tendo como base o traçado disponibilizado no Banco de Informações de Transportes do Ministério dos Transportes e os dados de desmatamento do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes ao período de 2008 a 2022. 

Essa área de influência maior tomou como base a nota técnica apresentada pelo Instituto Kabu à Funai em novembro de 2019, que alerta para as pressões diretamente relacionadas ao processo de pavimentação da BR-163 nesse perímetro – e que podem se agravar a partir da construção da ferrovia. 

No lado paraense da ferrovia, diz a nota, um trecho de quase 380 km (40% do total) está a menos de 50 km das terras indígenas Baú, Menkragnoti e Panará, “onde os índices de desmatamento mantêm-se extremamente elevados desde que teve início a pavimentação da BR-163”. A área de influência da BR-163 é de 40km em torno da rodovia, previsão para esse tipo de empreendimento na Amazônia Legal segundo a Portaria Interministerial nº 60/2015

Apresentado durante a gestão de Jair Bolsonaro, em novembro de 2020, o estudo de impacto ambiental (EIA) da Ferrogrão elaborado pela empresa MRS Ambiental considerou apenas duas TIs dentro da área de influência do empreendimento: as reservas Praia do Mangue e Praia do Índio, localizadas no município de Itaituba e habitadas pelos Munduruku.

O estudo tomou como base o termo de referência emitido em setembro de 2019 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – presidida pelo delegado Marcelo Xavier, hoje investigado por uma série de crimes cometidos contra povos indígenas, incluindo o genocídio dos Yanomami. O documento considera a distância de dez quilômetros em torno do traçado da ferrovia, seguindo a medida estipulada para esse tipo de empreendimento pela mesma portaria de 2015.

O asfaltamento avançou sob o governo Bolsonaro: chegou até Novo Progresso no final de 2019 e foi concluído até Miritituba em fevereiro de 2020. Responsável pela execução dos recursos do Plano Básico Ambiental (PBA), principal condicionante prevista no estudo de impacto ambiental da rodovia, o Instituto Kabu não recebe repasses federais desde 2020.

Entre 2010 e 2019, os projetos eram decididos de forma conjunta entre as aldeias associadas ao instituto, com a fiscalização a cargo da Funai, que recebia a cada semestre a prestação de contas por parte dos indígenas. “Vai fazer cinco anos que o governo Bolsonaro paralisou tudo, são cinco anos de prejuízo dos nossos direitos”, lamenta Doto Takak Ire. 

Em maio deste ano, o Instituto Kabu conseguiu um acordo com a empresa concessionária da rodovia para o repasse emergencial de recursos, enquanto aguarda novos estudos da Funai para a retomada do Plano Básico Ambiental.