Após mais de 5 anos sem nenhuma nova declaração, o ministro da Justiça e Segurança Pública assinou portarias declaratórias de três territórios indígenas no início de setembro, mas deixou outros cinco territórios amazônicos pendentes. Análise da InfoAmazonia mostra que a floresta desses territórios está sendo transformada em área para agropecuária.

Após mais de 5 anos de paralisação, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) voltou a declarar novas terras indígenas (TIs). Em 5 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski assinou as portarias dos limites territoriais de três territórios da Amazônia Legal, mas outros cinco seguem em avaliação: Jauary, no Amazonas; Kanela Memortumré, no Maranhão; Menkü e Paukalirajausu, no Mato Grosso; e Sawré Muybu, no Pará. Uma análise inédita da InfoAmazonia revela que essas cinco TIs pendentes sofrem três vezes mais pressão por desmatamento em seu entorno, em comparação com as três já encaminhadas.

Os processos das terras indígenas Cobra Grande e Maró, no Pará, e a Apiaká do Pontal e Isolados, no Mato Grosso, foram declarados pelo MJSP e enviados para a demarcação física da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ao redor delas, em um raio de 10 km, foram desmatados 18,6 mil hectares (ha) entre 1985 e 2022, segundo os dados de cobertura de uso do solo da rede MapBiomas. Já nas cinco TIs pendentes, o desmatamento somou 67,6 mil ha no mesmo período, uma área próxima à da cidade de Salvador, e 3,6 vezes maior do que o das TIs recém-declaradas pelo MJSP

A InfoAmazonia também ampliou a análise do desmatamento para um raio de 50 km ao redor dos territórios. A pressão no entorno das cinco terras indígenas é 3,3 vezes maior do que nas três que foram encaminhadas para sanção presidencial. Juntas, as TIs Jauary, Kanela Memortumré, Menkü, Paukalirajausu e Sawré Muybu registraram um desmatamento de 982,7 mil hectares de 1985 a 2022, contra 294,7 mil hectares nas TIs Cobra Grande, Maró e Apiaká do Pontal e Isolados. 

Essas florestas desmatadas ao redor dos territórios estão sendo transformadas principalmente em áreas para agropecuária. Considerando o raio de 50 km, 11,2% das áreas de floresta nativa foram convertidas em pasto ou lavoura. No entanto, o índice de algumas TIs é bem mais alto, como no caso das TIs Paukalirajausu e Menkü, que perderam 43% (320,4 mil hectares) e 25% (321, 6 mil ha), respectivamente.

Em resposta à InfoAmazonia, o MJSP informou que não foram assinadas todas as oito portarias porque “cada terra indígena tem o seu procedimento próprio e é individualmente analisada” e disse que os cinco processos que restam continuam em fase análise técnica. 

Pressão sobre as terras

Os dados de desmatamento indicam que os territórios sofrem com a presença de grileiros, fazendeiros e desmatadores que cercam as terras. Segundo lideranças e organizações, esse clima constante de pressão pode desencadear episódios de violência e medo. Tupy Myky, da TI Menkü, conta que os indígenas estão sem conseguir coletar e caçar no território.

“Há pessoas na posse dela [terra indígena]. Eles [invasores] têm gado, desmatam para aumentar os campos de pastagem, fazem lavoura, plantação soja, milho, algodão”, disse Myky.

Entre as terras da Amazônia que estão sob análise no MJSP, a Menkü é a que possui o processo de demarcação mais antigo, iniciado em 1987. Localizada no município de Brasnorte, no Mato Grosso, a 600 km de Cuiabá, é a terra onde vive o povo Myky. Em 2021, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação para que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a União dessem prosseguimento ao processo. Então, o processo avançou e a Funai enviou os documentos necessários para avaliação do MJSP.

No entanto, em novembro de 2023, o juiz federal Rodrigo Bahia Accioly Lins, da Vara Federal Cível e Criminal de Juína, em Mato Grosso, determinou a suspensão da ação civil, alegando que o território se enquadraria no marco temporal para demarcação de terras indígenas, em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão foi assinada dois meses após o STF ter declarado a tese inconstitucional, em 21 de setembro do ano passado, mas a oficialização ainda está em trâmite, passando por manifestações, petições e certificações.

Em contraponto à decisão do STF, o Congresso aprovou a Lei 14.701, que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. A promulgação dessa lei criou uma insegurança jurídica no país. O MJSP, inclusive, confirmou à InfoAmazonia, em julho deste ano, que não estava declarando novas terras devido à indefinição sobre a tese. A retomada só ocorreu agora, em 5 de setembro, com a declaração dos três territórios.

Enquanto aguardava a declaração, em setembro de 2022, o “O Joio e o Trigo” revelou que o gado criado dentro do território reivindicado pelo povo Myky estava sendo vendido para a empresa Marfrig, que, por sua vez, fornecia carne para a Nestlé. “A investigação aponta também que vários dos mais de 700 fornecedores de gado da Marfrig analisados estão vinculados a mais de 150 quilômetros quadrados de desmatamento nos últimos anos”, diz um trecho da reportagem.

Tupy Myky contou à InfoAmazonia que esteve em Brasília, em 2023, para uma conversa com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e que informou sobre a necessidade da declaração do MJSP. “Perdemos os castanhais, o taquaral [bambu] usado para fazer as flechas. Os fazendeiros já destruíram tudo, eles fazem queimada, quebraram tudo”. 

Indígenas do povo Munduruku, da TI Sawré Muybu, comemoram o Dia dos Povos Indígenas Foto: Leonardo Milano/InfoAmazonia

Território afetado pela mineração

A TI Sawré Muybu é a única entre as cinco pendentes no MJSP que apresenta mudança de área de floresta para uso em mineração. Em 2016, dentro de seus limites, 169 hectares eram utilizados para a exploração ilegal, o garimpo. Depois, a Funai reconheceu os limites do território, e houve uma redução, atingindo 129 hectares em 2022. Ao redor do território, em um raio de 10 km, a área destinada à mineração é de 360 hectares em 2022, segundo os dados do MapBiomas.

“Eles [garimpeiros] estão poluindo as águas do rio Tapajós e do rio Jamanxim. São muitas balsas e muitas dragas: Embarcações equipadas com dispositivos capazes de sugar e remover solo, rochas e lodo do fundo dos rios., alguns têm máquinas pesadas de escavadeira e eles se aproveitam dos ramais feitos pelos madeireiros. A gente denunciava para o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], mas não tinha providência e a gente recebia muitas ameaças”, afirma o cacique da TI Sawré Muybu, Juarez Saw Munduruku. 

Cacique Juarez Munduruku, da Terra Indígena Sawré Muyby, que aguarda homologação Foto: Leonardo Milano/ InfoAmazonia

Desde 2014, devido à demora no processo de demarcação e à necessidade de proteger o local, o cacique lidera uma autodemarcação, que inclui monitoramento frequente da área. Eles realizam expedições nos limites das terras, instalam placas e fazem vistorias para identificar invasores e áreas mais vulneráveis à entrada de estranhos.

Juarez, assim como Tupy Myky, viajou a Brasília no final de julho deste ano para cobrar a publicação da portaria declaratória pelo MJSP. Como resposta, foi informado de que o processo ainda está em análise. No cotidiano da Sawré Muybu, os Munduruku vivem ameaçados, são impedidos de circular pelo território e enfrentam dragas de garimpo nos rios, precisando estar sempre em grupo para se proteger. 

O cacique avalia que a lei do marco temporal está estimulando novas invasões. Segundo ele, três famílias de não indígenas vivem no território sem a permissão das comunidades. “Eles [invasores] estão entrando, dizendo que têm terra, que nasceram aqui, mas nós conhecemos essas pessoas. Acredito que eles querem ocupar a terra porque acreditam que não haverá mais demarcação. Por isso, estão invadindo, entrando sem comunicar ninguém e sem consultar ninguém”. 

Acredito que eles querem ocupar a terra porque acreditam que não haverá mais demarcação. Por isso, estão invadindo, entrando sem comunicar ninguém e sem consultar ninguém.

Juarez Saw Munduruku
Draga de garimpo é vista no rio Tapajós, próxima a TI Sawré Muybu, onde vive o povo Munduruku, no Pará Foto: Leonardo Milano/ InfoAmazonia

Segundo o último relatório de violência contra os povos indígenas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados conflitos nas oito terras em 2023. Ocorreram casos de extração de madeira e desmatamento nas TIs Kanela Memortumré, Menkü e Maró. Além disso, houve invasão de fazendeiros, assédio contra mulheres, poluição dos rios, cultivo de soja, queimadas, pesca e caça ilegal e abertura de ramais que contribuíram de alguma forma em alguns dos conflitos nas terras. 

‘Áreas que não têm problemas’

O próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou durante a cerimônia de assinatura das portarias que escolheu os três territórios porque não estão envolvidos na discussão do marco temporal. 

“Nós chegamos à conclusão de que temos que avançar, apesar de todos os problemas e da discussão que existe hoje entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Nós escolhemos três áreas que não têm problemas, não estão envolvidas nessa discussão, mas que merecidamente devem ser protegidas por um ato formal do governo brasileiro”, explicou.

Em 19 de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) enviou uma nota técnica solicitando que o MJSP analise os pedidos de demarcação considerando a presunção de inconstitucionalidade da lei do marco temporal, que está em discussão. A organização também pediu que a lei, em vigor desde janeiro deste ano, não seja aplicada de forma retroativa, já que os processos estavam nas mãos do ministério antes desse episódio.

“A jurisprudência da Suprema Corte é tranquila no sentido de que lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF já nasce com a presunção de inconstitucionalidade […] Lei nova não pode atingir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, tampouco a Administração Pública poderia inobservar a eficiência e a celeridade processual de seus atos administrativos”, disse a Apib, na nota técnica. 

FASES DA DEMARCAÇÃO DE UMA TERRA INDÍGENA

Elaboração e aprovação pela Funai do estudo de identificação da terra indígena: o órgão indigenista realiza estudos antropológicos, fundiários, cartográficos e ambientais para identificar e delimitar a terra tradicional.
Período de contestação do estudo: após a publicação do relatório, há um período em que outros órgãos governamentais e a sociedade civil podem contestar os limites propostos.
Declaração dos limites territoriais pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP): após a análise das contestações, o MJSP declara os limites da terra indígena.
Demarcação física da terra indígena pela Funai: a Funai realiza a demarcação física dos limites no terreno.
Homologação da terra indígena: o presidente da República homologa o território demarcado, oficializando os direitos indígenas sobre a área.
Registro final da terra indígena: a terra é registrada em cartório, concluindo o processo de demarcação.

O MJSP é responsável pela fase de declaração do processo de demarcação de uma terra indígena. Esta é uma das etapas mais importantes, porque é quando ocorre a análise jurídica dos documentos apresentados pela Funai, que comprovam a existência dos povos indígenas e do território. Com a portaria declaratória, o MJSP oficializa e define os limites territoriais.

Antes do início desta gestão de Lula, a última vez que uma portaria havia sido publicada pelo ministério foi em 2016, durante o mandato do ex-presidente Michel Temer (MDB). Após a fase de declaração, o processo segue para a assinatura do presidente da República, chamada de homologação. Neste ano, o governo homologou duas terras indígenas, em abril.

COMO ANALISAMOS AS PRESSÕES EM TERRAS INDÍGENAS?

. Nesta reportagem, analisamos a série histórica do Projeto MapBiomas – Coleção 08 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso da Terra do Brasil, que compreende o período de 1985 a 2022 

. Os dados foram baixados em 15 de agosto, e sobrepostos aos limites territoriais disponibilizados pela Funai de oito terras indígenas: Jauary, Menkü, Apiaká do Pontal e Isolados, Paukalirajausu, Sawré Muybu, Cobra Grande, Maró e Kanela Memortumré. Para analisar o entorno das TIs, consideramos um buffer de 10 km e 50 km dos seus limites.

. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.


Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori

Sobre o autor
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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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