Base do governo mede forças com Frente Parlamentar Agropecuária para manter vetos em lei que pretende promover a maior alteração legislativa para abertura de terras indígenas desde a redemocratização; sessão conjunta entre Câmara e Senado estava prevista para esta quinta-feira (23), mas foi adiada por divergência entre líderes.

Deputados e senadores ensaiam os próximos passos para analisar o veto parcial do presidente Lula (PT) na lei 14.701/2023, também conhecida como Lei do Marco Temporal, aprovada em 27 de setembro pelo Senado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que articula a derrubada dos vetos, pretende liberar, de uma só vez, o maior pacote de medidas da história recente, desde a Constituição de 1988, para destravar a exploração de recursos naturais e projetos de infraestrutura em terras indígenas.

Uma sessão conjunta entre a Câmara dos Deputados e o Senado estava prevista para esta quinta-feira (23), mas foi adiada no início da tarde por divergências entre os líderes dos partidos. Fontes governistas informaram que a expectativa é de que o assunto volte à discussão na próxima semana.

“Desde a redemocratização, será o maior retrocesso para retirada de direitos indígenas”, apontou Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ele destaca, ainda, que a derrubada dos vetos vai “potencializar o processo de genocídio que os povos indígenas já sofrem e, sem sombra de dúvidas, as consequências disso vão ser irreversíveis”, contou em entrevista à InfoAmazonia.

Desde a redemocratização, será o maior retrocesso para retirada de direitos indígenas.

Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib

O coordenador da Apib explica que a lei aprovada pelo Congresso contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que em 21 de setembro derrubou a tese do Marco Temporal que estabelecia apenas a demarcação dos territórios indígenas ocupados pelos povos até a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. No entanto, a proposta do Legislativo vai muito mais além do que estabelecer um marco temporal para a demarcação de terras, e promete liberar o cultivo de produtos transgênicos e de atividade pastoril executada por terceiros, que são proibidas e consideradas ameaças à integridade das populações em seus territórios.

A proposta que será analisada ainda prevê a construção de rodovias e hidrelétricas em áreas indígenas sem realização de consulta, indenização para ocupantes de terras que venham a ser demarcadas e flexibilização para contatos com povos isolados. 

Protesto em Brasília contra Marco Temporal. Fábio Bispo/InfoAmazonia

Os vetos de Lula e a articulação

Lula vetou 23 dos 33 artigos do projeto de lei em 20 de outubro, atendendo pedidos dos ministérios e organizações ligadas aos direitos indígenas e à causa ambiental. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) avaliou positivamente os vetos, mas o órgão foi surpreendido pelas declarações da FPA de uma possível derrubada integral deles. A frente considerou que os vetos são “excessivos” e alteram o projeto de lei aprovado no Congresso. 

Na última semana, a ministra Sonia Guajajara esteve com representantes governistas no Congresso para buscar o que chamou de “proposta alternativa” para a manutenção dos vetos do presidente Lula. Mas ao que tudo indica, o governo não chegou a um acordo favorável aos povos indígenas.

Fontes ligadas ao Congresso afirmaram à reportagem que, pressionado pelos ministérios e por defensores da causa indígena, o presidente Lula tem vetado pontos da lei classificados como violações de direitos, apostando que o STF vai considerar inconstitucionais também esses pontos, a exemplo do que já ocorreu com a tese do marco temporal.

Nuno Nunes, do Observatório Indigenista, diz que o governo está alinhado com a defesa indígena e que “está disposto a negociar recursos, como é a prática da democracia, mas sem negociar direitos indígenas constituídos, pois todos em Brasília, seja no Legislativo ou no Executivo, defendem que qualquer negociação fora do que foi previsto pela Constituinte em 1988 será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal”, opina.

A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) divulgou nota pública sobre o projeto de lei que tramitou na Câmara e no Senado: “é inconstitucional e inconvencional, razão pela qual deve ser vetado”, diz trecho do documento.

Para manter os vetos, o governo federal precisa impedir que os ruralistas alcancem maioria absoluta nas duas casas, 257 votos na Câmara e 41 no Senado, o que não consegue sem uma articulação com membros da FPA, que é composta por 324 deputados e 41 senadores.

Uma das apostas está justamente no Senado, onde o projeto obteve 43 votos favoráveis e 21 contrários e a bancada ruralista inclui membros de partidos que estão na base aliada do governo. A articulação na casa liderada pelo líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido), teria conseguido modificar sete votos que poderiam reverter a derrubada dos vetos. 

Mas, para o coordenador da Apib, ainda é uma margem muito apertada para considerar que os vetos serão mantidos. “O cenário, infelizmente, se encaminha para uma judicialização dessa matéria”, afirma Tuxá, apontando que a melhor medida no momento seria “adiar a votação para o próximo ano”. 

‘É demonstração de força entre poderes’, avalia coordenador da Apib

Em setembro deste ano, o STF rejeitou a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, decidindo por 9 votos a 2. O julgamento, iniciado em agosto de 2021, é um dos maiores da história do Supremo, estendendo-se por 11 sessões. 

A tese teve origem em ação de reintegração de posse que incluía, entre as partes, o governo de Santa Catarina contra a demarcação da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng. A decisão do STF terá repercussão geral e será aplicada automaticamente em todos os processos que questionam os direitos dos povos indígenas com base nesse dispositivo.

Durante o julgamento, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber, enfatizou que a posse tradicional indígena não se limita à posse atual ou física, sendo um direito fundamental que não pode ser mitigado. 

No entanto, a lei que foi aprovada no Congresso e terá os vetos apreciados, inclui muito mais alterações nos direitos indígenas, o que pode gerar um novo julgamento no Supremo.

“O Marco Temporal já foi julgado inconstitucional, é ponto pacífico, e os parlamentares sabem. Mas isso também diz muito sobre a relação de forças entre os poderes que se estabeleceu nesses últimos anos. É uma tentativa de demonstração de força”, avalia Tuxá, que diz que vai levar o assunto para a A Conferência das Partes (COP-28), encontro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que ocorre em Dubai entre 30 de novembro e 12 de dezembro.

“Essa decisão não é só ruim para o Congresso, é ruim para o Brasil e configura um estelionato eleitoral. O presidente Lula se elegeu prometendo defender os povos indígenas e o meio ambiente e o que essa proposta busca é o contrário disso. Nós vamos apresentar essa demanda aos países e buscar apoio externo”, adiantou Tuxá.

Essa decisão não é só ruim para o Congresso, é ruim para o Brasil e configura um estelionato eleitoral. O presidente Lula se elegeu prometendo defender os povos indígenas e o meio ambiente e o que essa proposta busca é o contrário disso. Nós vamos apresentar essa demanda aos países e buscar apoio externo

Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib

Relator critica indígenas em evento com produtores rurais

No Senado, o PL 2903/2023 que deu origem a lei 14.701/2023 teve como relator o senador Marcos Rogério (PL), que, no último sábado (18), fez críticas abertas ao processo de demarcação de terras indígenas e ironizou o crescimento da população tradicional no Brasil, durante reunião com produtores rurais em São Francisco do Guaporé (RO), região onde pelo menos três etnias buscam a demarcação das suas terras: puruborá, migueleno e os kujubim.

No evento, o senador atacou a decisão do presidente Lula e argumentou que a derrubada dos vetos vai atender o setor rural. Ele também fez alardes sobre os efeitos contrários, caso os vetos sejam mantidos, afirmando que produtores podem perder suas terras.O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR), usou as redes e se manifestou dizendo que o grupo pretende derrubar os vetos do presidente para “cobrar respeito ao direito constitucional à propriedade”.

Veja os principais pontos em discussão na votação dos vetos da lei do Marco Temporal:

Sementes transgênicas:
A lei aprovada permite a pesquisa e o uso de sementes transgênicas em terras indígenas. Atualmente, este tipo de cultivo é proibido pela lei 11.460/2007. Mesmo proibida, essa prática tem sido forçada pelo setor produtivo, como em Roraima, onde sementes geneticamente modificadas foram introduzidas em terras indígenas através de programa do governo estadual. 

Contato com povos isolados:
O projeto permite o contato com indígenas isolados para ações estatais específicas, mediado pela Funai, com proibição de contato por entidades particulares não autorizadas pelo governo para esse fim.

Gado em terras indígenas:
O artigo 26 da lei aprovada pelo Congresso permite a celebração de contratos que visem à cooperação entre indígenas e não indígenas para a realização de atividades econômicas, inclusive agrossilvipastoris.

Usufruto:
O projeto propõe mudanças no usufruto da terra pelos indígenas, retirando restrições anteriores, como o aproveitamento de recursos hídricos, potenciais energéticos, mineração e garimpagem.

Restrições ao usufruto:
O projeto estabelece que o usufruto indígena não se sobrepõe à política de defesa e soberania nacional, permitindo intervenções militares e a instalação de bases militares sem consulta prévia às comunidades indígenas.

Atividades econômicas:
Os povos indígenas podem exercer atividades econômicas, inclusive em parceria com não indígenas, como agrossilvipastoris e turismo, com isenção tributária para atividades autorizadas pelo Congresso Nacional.

Demarcação de terras:
O processo de demarcação deve envolver a participação obrigatória de estados, municípios, comunidades locais, produtores agropecuários e peritos auxiliares.

Benfeitorias e indenizações:
Benfeitorias realizadas por ocupantes de terras indígenas são consideradas de boa-fé, sujeitas a indenização. O ocupante pode permanecer na terra até a conclusão do procedimento demarcatório.

Áreas reservadas:
Diferenciação entre terras ocupadas tradicionalmente e áreas indígenas reservadas, sujeitas a revisão pela União se houver mudança cultural na comunidade.

Áreas compradas:
Terras indígenas compradas pela comunidade são consideradas áreas indígenas adquiridas, sujeitas ao regime jurídico da propriedade privada.

Unidades de Conservação:
Em caso de superposição com Unidades de Conservação, o usufruto é de responsabilidade do ICMBio, com a participação dos indígenas.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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