Áudios de WhatsApp mostram fazendeiros de Rondônia defendendo a ocupação da Terra Indígena Sagarana após aprovação da lei 17.701/2023, do marco temporal. Apesar de considerada inconstitucional pelo STF no ano passado, a tese foi aprovada e sancionada pelo parlamento. Lideranças indígenas afirmam que a decisão do Congresso é culpada por novas invasões violentas realizadas nos territórios em 2024.

Áudios obtidos pela InfoAmazonia mostram que fazendeiros de Rondônia utilizaram a tese do marco temporal para justificar invasões dentro da Terra Indígena (TI) Sagarana, no oeste do estado: “o marco temporal em questão em Brasília e inclusive foi aprovada lei”, disse um dos membros de um grupo de WhatsApp do distrito de Surpresa, no município de Guajará-Mirim, afirmando que a lei é a única que “ valendo”. 

A invasão do território Sagarana, do povo Wari’, iniciada em 16 de janeiro, vem na esteira de uma série de invasões de terras indígenas registradas após a promulgação da lei 17.701/2023 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em 28 de dezembro de 2023, que estabelece o marco temporal. Antes do Congresso, em setembro do ano passado, a tese já havia sido julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, mesmo assim, os parlamentares aprovaram a matéria.

Desde então, deputados e senadores têm usado as redes sociais para divulgar que a legislação está em vigor. No conflito instalado entre produtores rurais do distrito de Surpresa com a Terra Indígena Sagarana, por exemplo, as mensagens trocadas no WhatsApp falam que é um “direito” dos produtores e que “não existe meio termo”.

“Nós temos direito de brigar pelo que é nosso, não tem meio termo”, diz produtor rural de Suprema, em áudio enviado por WhatsApp.

“Nós temos direito de brigar pelo que é nosso, não tem meio termo”, diz o interlocutor que passa informações falsas ou imprecisas sobre datas da demarcação das terras indígenas para, no final, convocar a população de Surpresa para “brigar junto” e “se impor”. Ele ainda afirma que os indígenas têm 18 mil hectares e “não dão conta de trabalhar, vão morrer velho e [as terras] vão ficar seus netos e bisnetos”.

Na sequência das mensagens, os produtores da região fazem relatos para justificar que a área em disputa não seria um território indígena, citando possíveis nomes de antigos proprietários: “essa terra aí é nossa”. Outros falam que o momento é para “rever todas as divisas”. “Ou nós luta agora, ou deixa as coisas acontecer até…. quando der ruim, dá ruim pra todo mundo”.

“Ou nós luta agora, ou deixa as coisas acontecer até…. quando der ruim, dá ruim pra todo mundo”, fala outro proprietário rural em áudio enviado por WhatsApp.

O imbróglio gerado pelo Congresso levou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a suspender os processos de demarcação em todo o país para “avaliar o impacto da nova legislação”, segundo declarou a presidente do órgão, Joenia Wapichana.

A própria Advocacia-Geral da União (AGU) ingressou com pedido para que os processos que tratam de conflitos fundiários em territórios indígenas sejam suspensos: “as comunidades indígenas encontram-se em situação de imensa vulnerabilidade diante da iminência de que os processos judiciais e inúmeras decisões desfavoráveis retomem seu andamento sem que seja possível à AGU atuar com clareza, tanto em âmbito judicial, quanto administrativo”, afirmou o órgão.

Indígenas relatam ameaças 

Carta enviada por indígenas ao MPF de Rondônia relatando invasão não resultou em ações efetivas até o momento. Reprodução/arquivo pessoal

Os indígenas da TI Sagarana afirmam que estão sendo ameaçados e que sentem insegurança diante da falta de ação dos órgãos federais. “Estamos sendo ameaçados e já denunciamos a situação para a Funai e para o Ministério Público Federal (MPF), mas até agora não recebemos nenhuma resposta”, contou um indígena que pediu para não ser identificado com medo de represálias.

Eles também relataram que a Funai em Guajará-Mirim não estaria encaminhando as denúncias e que o órgão poderia estar fazendo vista grossa para a ação dos fazendeiros. Procurada, a Funai em Brasília disse que está apurando o caso. A InfoAmazonia entrou em contato com o MPF e com a coordenadoria da Funai em Rondônia, mas não obteve resposta de ambos até o momento.

Outros territórios também sentem o impacto do marco temporal

Em 21 de janeiro, um grupo de indígenas da etnia Jupaú encontrou cerca de 50 pessoas montando barracas e dividindo lotes dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia — atitude também atribuída à aprovação da lei do marco temporal: 

“Com certeza absoluta a aprovação do marco temporal no Congresso incentivou e fortaleceu as invasões”, afirma a indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida como Neidinha, da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. 

Lideranças indígenas e especialistas entrevistados pela InfoAmazonia alertam para a maior vulnerabilidade dos territórios desde a aprovação da lei e cobram celeridade do STF em analisar as ações que contestam a legislação.

Neidinha lembra que na TI Uru-Eu-Wau-Wau, além da invasão recente, que acabou desmanchada pela Polícia Federal e Funai, existem fazendas de gado ocupando o território ilegalmente há anos e que apostam na tese do marco temporal para “legalizar” essas áreas. Em junho de 2023, uma reportagem da InfoAmazonia revelou que o gado criado dentro da terra indígena chegou nos frigoríficos da JBS e abasteceu grandes redes de supermercados.

Nessa área, conhecida como Burareiro, o impasse envolve o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que em 1975 criou um assentamento sobreposto à terra indígena, mas que acabou extinto com a demarcação definitiva do território. A permanência dos fazendeiros nessa área tem sido incentivada por políticos locais ao longo de anos.

Outras invasões, ocorridas entre dezembro de 2023 e janeiro deste ano, foram registradas nas TIs Karipuna, Sete de Setembro (ambas em Rondônia) e Zoró (no Mato Grosso). Os conflitos, segundo relatos dos indígenas, têm sido alimentados pela exploração de recursos naturais, como abertura de garimpos de ouro e diamante, criação de fazendas de gado e exploração de madeira. Para a Apib, a lei representa o maior retrocesso para retirada de direitos indígenas desde que a Constituição de 1988 foi promulgada.

“Desde o julgamento no Supremo sobre o marco temporal, e durante a tramitação do projeto de lei no Congresso, houve uma polarização intensa liderada pela Frente Agropecuária. Isso já sinalizava uma mudança de postura em relação à aplicabilidade da tese. Com a promulgação da lei, essa tensão se intensificou ainda mais”, afirma Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.

Karipuna diz que a morte da indígena Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, assassinada em 21 de janeiro no território autodemarcado Caramuru-Catarina Paraguassu, no sul da Bahia, é reflexo da ação do Congresso Nacional.

“A gente coloca na conta do Congresso esse acirramento e o tensionamento da situação nos territórios desde a tese do marco temporal, que tem causado confrontos e mortes, como o da pajé Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, na Bahia”, declarou o líder indígena. A Apib entrou com uma ação criminal contra a organização Invasão Zero, movimento político formado pelos fazendeiros envolvidos na invasão. Outras três lideranças indígenas Hãe foram baleadas e duas pessoas foram espancadas, uma mulher teve o braço quebrado.

A gente coloca na conta do Congresso esse acirramento e o tensionamento da situação nos territórios desde a tese do marco temporal, que tem causado confrontos e mortes.

Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib

Tese inconstitucional

A decisão do Supremo, que considerou a tese do marco temporal inconstitucional, tem repercussão para todos os demais casos que contestam a demarcação de terras indígenas com base no argumento. O presidente Lula (PT) chegou a vetar a lei aprovada no Congresso devido à sua inconstitucionalidade. Mas os vetos foram derrubados após uma forte campanha e demonstração de poder da FPA. 

A tese estabelece que só poderão ser consideradas terras indígenas as áreas ocupadas por membros de seus povos até 5 de outubro de 1988. A lei 17.701/2023 vai além do marco temporal e autoriza uma série de atividades dentro dos territórios até então proibidas ou que precisam seguir rito especial para liberação: construção de estradas, hidrelétricas, criação de gado em larga escala, uso de sementes transgênicas, entre outros.

Atualmente, três ações judiciais contestam os dispositivos do marco temporal no Supremo Tribunal Federal, incluindo um pedido liminar da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) junto com o PSOL e Rede Sustentabilidade para que a lei do Congresso seja suspensa imediatamente. O PT, PCdoB e PV também ingressaram com ações, assim como o PDT

Juliana de Paula Batista, advogada sênior do Instituto Socioambiental (ISA), diz que a lei aprovada e sancionada pelo Congresso não anula a decisão judicial, mas que “as duas coisas coexistem no mundo jurídico” e com objetivos contraditórios, apontando que a medida já causa prejuízos aos povos indígenas, como a suspensão dos processos de demarcação, que estão parados na Funai.

Segundo Batista, a via para se buscar uma anulação da decisão do STF seria por meio de recursos judiciais contra a decisão da Corte. “A decisão do Supremo tem repercussão geral e vincula a administração pública federal. Esperamos que essa decisão [dos pedidos de inconstitucionalidade no STF] seja rápida”. 

“O atraso nos processos de demarcação é um dos principais prejuízos dessa situação. E essa indefinição é deliberadamente provocada para gerar esse atraso. Além disso, temos visto um aumento preocupante no número de invasões, o que envia uma mensagem equivocada à sociedade e aos criminosos, de que essas invasões podem ser toleradas. Isso empodera o crime organizado e vai contra a ótica constitucional, que protege as terras indígenas”, aponta a advogada. O ISA também fez um pedido ao STF para integrar o processo junto com a defesa dos povos indígenas na condição de Amicus curiae: Significa amigo da corte. É uma expressão latina utilizada para designar um terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador.

O atraso nos processos de demarcação é um dos principais prejuízos dessa situação. E essa indefinição é deliberadamente provocada para gerar esse atraso. Além disso, temos visto um aumento preocupante no número de invasões, o que envia uma mensagem equivocada à sociedade e aos criminosos.

Juliana de Paula Batista, advogada sênior do Instituto Socioambiental

Com posição a favor do marco temporal, outros partidos — PL, PP e PR —  pediram que o STF dê a constitucionalidade da lei, alegando que ela nasce em meio a uma grande disputa política.

Madeira, gado e ouro

Na Terra Indígena Zoró, no Mato Grosso, desde o início deste ano, garimpeiros em busca de ouro e diamante escavam o território que também já conta com uma exploração mais antiga de madeira ilegal. Lideranças contaram à reportagem que os invasores aliciaram e subornaram indígenas para entrar com maquinário nos limites do território. 

“Eles entram com as máquinas, cavam, e depois escondem as máquinas, acho que para não perderem em caso de fiscalização. Nós temos denunciado essa situação, mas a Funai nunca esteve tão ausente das nossas aldeias indígenas. Se os órgãos oficiais não agem diretamente, abonam a continuidade dos desmandos de criminosos”, disse uma liderança, que pediu anonimato.

Eles entram com as máquinas, cavam, e depois escondem as máquinas, acho que para não perderem em caso de fiscalização. Nós temos denunciado essa situação, mas a Funai nunca esteve tão ausente das nossas aldeias indígenas. Se os órgãos oficiais não agem diretamente, abonam a continuidade dos desmandos de criminosos.

Indígena Zoró

Atualmente, a população dos Zoró tem cerca de 700 pessoas, que vivem em 32 aldeias. Pelo menos quatro frentes de garimpos surgiram na terra indígena nos últimos meses. Em dois pontos, o garimpo ocorre na mesma região onde há extração de madeira ilegal.

Caminhão de madeira foi flagrado na TI Zoró, no Mato Grosso. Foto: Arquivo Pessoal

Situação parecida ocorre nas terras indígenas Karipuna e Sete de Setembro, também em Rondônia, onde novas denúncias também apontam intensificação da retirada de madeira para abertura de áreas de pastagem e para atividade garimpeira. 

Na TI Karipuna, uma clareira recente causada por desmatamento foi identificada pelos indígenas a apenas três quilômetros do limite do território com o município de Porto Velho. 

A área de vegetação derrubada fica próxima dos igarapés de Fortaleza, ao norte da terra indígena, onde os karipuna sempre mantiveram o cultivo de açaí e castanha como meio de subsistência. A clareira foi identificada em 29 de janeiro e, em 1º de fevereiro, uma denúncia foi encaminhada ao MPF.

Clareira na Terra Indígena Karipuna afetou a coleta de castanha e açaí da comunidade local. Divulgação/Apoika

Deputados dizem que lei ‘está valendo’ 

Se por um lado o governo federal pede a suspensão de qualquer questionamento sobre as terras indígenas até que haja nova manifestação do STF, por outro os parlamentares da bancada ruralista pedem exatamente o contrário e divulgam em suas redes sociais que a lei do marco temporal está em vigor. 

“Nós temos uma lei vigente, a lei do marco temporal foi aprovada”, declarou o presidente da FPA, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR) em vídeo.

Durante a primeira reunião da FPA no Congresso, Lupion também comentou sobre os conflitos na Bahia, seguidos da morte de Nega Pataxó: “Não são nossas mãos que vão ficar sujas de sangue, e sim as daqueles que relativizam o direito de propriedade”. Uma reportagem do site Intercept Brasil mostrou que policiais militares são investigados por apoiarem o grupo de fazendeiros que assassinou Nega Pataxó.

Outros membros da FPA, como o senador Marcos Rogério (PL-RO), que foi relator do projeto no Senado, também defendem a aplicação do marco temporal, independentemente da decisão do STF. Em 27 de dezembro, o senador gravou um vídeo informando a promulgação da lei em primeira mão: “com isso, passa a valer, passa a vigorar, a lei aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional, o marco temporal para terras indígenas”.

Já o deputado Lucio Mosquini (MDB/RO) publicou mensagem com a hashtag #RespeitaOCongresso, onde diz que a nova lei “é a garantia de segurança jurídica para os produtores, menos conflitos no campo, estabilidade fundiária e o desenvolvimento do país”.

O deputado Alceu Moreira (MDB-RS) atacou diretamente o ministro do STF Edson Fachin, relator da ação que julgou o marco temporal inconstitucional. Em vídeo divulgado pela FPA, o parlamentar questiona demarcações e diz “índios paraguaios, com ajuda do senhor Fachin, que utiliza a toga de maneira absolutamente inadequada”, ocupam área que é questionada por produtores rurais.

“A segurança alimentar é o único tema que coloca o Brasil em todos os debates em qualquer mesa de qualquer governante no mundo. E nós não podemos perder esse protagonismo”, declarou o parlamentar. 

Procurada pela reportagem, a Funai não quis se manifestar para comentar os impactos da tese do marco temporal sobre as questões jurídicas e administrativas. O órgão informou que ainda está apurando os casos registrados pela reportagem nas TIs Zoró, Sete de Setembro e Sagarana.

Nas TIs Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau, o órgão indigenista federal informou que, assim que recebeu a denúncia, se deslocou para a região para retirada dos invasores e afirma que “há preocupação em relação aos reiterados casos de invasões por grileiros de terras, acentuadamente na parte norte desta Terra Indígena”. O órgão destacou que o território também abriga povos isolados.

Na TI Karipuna, a Funai afirma que “tem realizado ações de proteção territorial e fiscalização para combater a retirada ilegal de madeira e invasão de grileiros com o apoio da Polícia Militar Ambiental do estado de Rondônia, da Polícia Federal, do Ibama, do Ministério Público Federal e do Exército”.

A InfoAmazonia não obteve respostas do MPF em Rondônia até o fechamento desta publicação.


Atualização: Após a publicação da reportagem, o MPF em Rondônia informou, por nota, ter recebido duas representações sobre invasões na Terra Indígena Sagarana, mas explicou que aguarda informações técnicas da Funai para confirmar se as novas cercas instaladas pelos fazendeiros de Surpresa estão de fato dentro da terra indígena.

“Não há confirmação de que a cerca, de fato, está dentro dos limites da TI Sagarana. Assim, a Coordenação Regional da Funai em Guajará-Mirim está aguardando a confirmação do órgão técnico da Funai-Sede, em Brasília, assim como o MPF, para dar prosseguimento à atuação”, informou o órgão. “Caso se confirme que a cerca está dentro da TI, a Polícia Federal será acionada para apurar o fato, que se enquadra como crime de invasão a bem da União (art. 20 do Estatuto da Terra), e serão adotadas as medidas cabíveis (ajuizamento de ação) para propiciar a desintrusão da Terra Indígena”.

Em relação à TI Karipuna, o órgão informou que já existe uma ação civil pública e que “há fiscalizações periódicas no local (a cada 10 dias), com pessoas capacitadas e equipadas para efetuar prisões em flagrante e apreender/destruir bens”.

“As denúncias enviadas ao MPF tratam de crimes e confirmam a necessidade de manutenção da referida ação, ajuizada em 2018. Os fatos também confirmam a necessidade de permanentes fiscalizações de órgãos como Funai, Ibama, Polícia Federal e Secretaria de Estado do Meio Ambiente na Terra Indígena Karipuna”.

Sobre a TI Uru-Eu-Wau-Wau, que também é objeto de ação civil pública, após constatar nova invasão liderada por uma associação, a Justiça Federal  autorizou a realização da operação para retirada dos invasores e uma pessoa foi presa.


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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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