A informação é da presidente da Funai, Joenia Wapichana, compartilhada durante assembleia geral na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 7 de janeiro. A Lei nº 14.701/2023, que aprovou a tese do marco temporal, entre outras medidas, foi promulgada pelo Congresso Nacional em 28 de dezembro de 2023. Wapichana aguarda retorno de ação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), que pede a derrubada da decisão.

A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, disse que recuou no envio de novos processos demarcatórios de terras indígenas após a promulgação da lei nº 14.701/2023, sancionada pelo Congresso Nacional em 28 de dezembro, que aprova a tese do marco temporal, entre outras medidas. A declaração ocorreu durante a 43ª Assembleia Geral da Região das Serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 7 de janeiro. 

Wapichana disse que estava prestes a assinar dois processos para enviar ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), responsável por publicar as portarias declaratórias de novas terras indígenas (veja abaixo), em dezembro: “eu já iria assinar duas terras, mas aí veio o marco temporal e agora precisamos avaliar o impacto da nova legislação, vamos esperar derrubar essa lei. Se continuarmos, podemos prejudicar os parentes”, disse. 

Eu já iria assinar duas terras, mas aí veio o marco temporal e agora precisamos avaliar o impacto da nova legislação, vamos esperar derrubar essa lei. Se continuarmos, podemos prejudicar os parentes.

Joenia Wapichana, presidente da Funai
Joenia Wapichana participou da 43ª Assembleia Geral das Serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foto: Nailson Wapichana/InfoAmazonia

A reportagem da InfoAmazonia apurou que um dos processos era o da Terra Indígena Yguá Porã, de Santa Catarina, onde a Funai esteve em 22 de dezembro. Além disso, solicitou as informações sobre o outro processo, mas não obteve retorno da Funai. De acordo com a presidente, a fundação vai aguardar uma resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela Rede Sustentabilidade (Rede). 

Nela, os partidos e a instituição indígena pedem que o Supremo julgue a lei aprovada pelo Congresso como inconstitucional e que ela seja imediatamente suspensa. “A lei nº 14.701/2023 constitui o maior retrocesso aos direitos fundamentais dos povos indígenas desde a redemocratização do país. Sob o pretexto de regulamentar o Artigo 231, a nova legislação pretende alterar a Constituição da República e desfigurar os direitos nela inscritos pelo constituinte originário, impondo, aos povos indígenas, retrocessos, violências e proteção deficiente”, dizem Apib, PSOL e Rede na ADI enviada ao STF. 

O relator é o ministro Gilmar Mendes. Até a publicação desta reportagem, a única movimentação do processo foram os ingressos de outras organizações como amicus curiae, expressão utilizada pelo meio jurídico para definir instituições que prestam informações aos tribunais em processos. O advogado Ivo Macuxi, especialista em Direito Constitucional, avalia que a interrupção feita pela Funai é coerente, porque qualquer demarcação neste momento, com a lei do marco temporal em vigência, pode ser alvo de questionamento. 

“A administração pública atua com base no princípio da legalidade e a nova lei traz essa previsão do marco temporal para as terras indígenas. Significa, então, que os estudos que estavam em andamento agora têm que observar a lei em vigor”, afirmou Macuxi. 

De acordo com o advogado, há agora um entrave legislativo, porque o STF definiu o marco temporal como inconstitucional. “Temos que esperar a decisão do Supremo. Não podemos levar adiante processos demarcatórios de terras indígenas com base no marco temporal, porque o Supremo já decidiu que é inconstitucional. Então, agora, o Supremo precisa reforçar esse julgamento, suspendendo a lei. Só assim a Funai pode dar continuidade”, explica. 

Não podemos levar adiante processos demarcatórios de terras indígenas com base no marco temporal, porque o Supremo já decidiu que é inconstitucional. Então, agora, o Supremo precisa reforçar esse julgamento, suspendendo a lei. Só assim a Funai pode dar continuidade.

Ivo Macuxi, advogado especialista em Direito Constitucional

Ministério da Justiça parado

Segundo a Funai, em 2023, foram enviados 14 processos com áreas demarcadas para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). O ministério é responsável por publicar as portarias declaratórias de novas terras indígenas e iniciar o processo de judicialização para retirar invasores e, se for o caso, cumprir indenizações. 

Apesar disso, nenhuma portaria foi publicada no primeiro ano de governo, tendo Flávio Dino (PCdoB) como ministro do MJSP, que agora está em processo de transferência para o STF. Dino segue no cargo até o final de janeiro; em 1º de fevereiro, Ricardo Lewandowski, ex-ministro do STF, deverá assumir o cargo no MJSP. Desde 2017, o MJSP não publica portarias declaratórias de terras indígenas.

“Para demarcar uma terra indígena, não basta eu chegar lá e assinar, depende do ministro da Justiça também. A gente aprova os processos todos e cria os grupos de trabalho, só este ano [de 2023] foram criados 28 GTs, temos 134 hoje em vigência”, afirmou Joenia. 

O advogado Ivo Macuki afirma que a demora na publicação de portarias pelo Ministério da Justiça ocorre por pressão da bancada ruralista do Congresso Nacional. “Essa demora não é normal, a gente sabe que tem muitas forças ocultas que estão acompanhando e cobrando, inclusive que não sejam assinadas portarias de demarcação. Sabemos que a bancada ruralista é muito forte e está pressionando o governo para paralisar a demarcação de terras indígenas, mas o ministro deveria se posicionar assinando as portarias. Infelizmente, até agora [Dino] não sinalizou que vai assinar”, disse.

Lewandowski assume Ministério da Justiça e será novo responsável pelas portaria declaratórias de terras indígenas. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Em 2023, além dos processos enviados pela Funai ao ministério, o presidente Lula (PT) também seguiu o procedimento, homologando oito terras indígenas. A conclusão do processo de reconhecimento das terras indígenas pelo Estado brasileiro passa por seis fases que incluem: elaboração e aprovação pela Funai do estudo de identificação; tempo de contestação do estudo; declaração dos limites territoriais; demarcação física; homologação; registro final. 

De acordo com o Decreto 1.775, de 1996, que regulamenta as normas de demarcação, o MJSP tem 30 dias, após envio do estudo antropológico, para publicar a portaria declaratória dos limites territoriais. Essa declaração determina, efetivamente, onde são colocados os marcos que desenham o limite do mapa do território. Depois, o processo é enviado ao presidente da República, que assina a homologação.

Marco temporal e Funai

No julgamento do marco temporal no STF, os ministros discutiram o Recurso Extraordinário: Documento pelo qual se questiona ao Supremo Tribunal Federal uma decisão judicial proferida por um tribunal estadual ou federal. nº 1.017.365, dentro do processo que envolvia a terra indígena do povo Xokleng, de Santa Catarina. O recurso foi proposto pela Funai em 2009, e pediu a aplicação do marco temporal. A presidente Joenia Wapichana contou que hoje a posição da Funai mudou, desde que ela assumiu o cargo.

“O posicionamento da Funai antes era a favor do marco, mas a primeira coisa que eu pedi pra nossa procuradoria jurídica foi para mudar o posicionamento da Funai. Porque a Funai não tem que questionar posicionamento territorial, Funai tem que defender os pedidos da comunidade”, disse. 

Líder Akjaboro Kayapó, em manifestação contra o Marco Temporal. Foto: Ramon Vellasco/InfoAmazonia

O marco temporal foi julgado inconstitucional em 21 de setembro de 2023 pelo STF, com algumas ressalvas para a resolução de conflitos entre indígenas e não indígenas, como a indenização por terra nua, que garante ao invasor o direito a receber recursos pela terra sem imóveis. Em seguida, como um desafio ao Supremo e à posição pró-meio ambiente do governo, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.701, que estabelece a data de 5 de outubro de 1988 como determinante para definir o conceito de terras tradicionalmente ocupadas. Além disso, a lei também determina e muda outros direitos territoriais. 

Permite, por exemplo, que as terras demarcadas sejam retomadas caso ocorram alterações de traços culturais das comunidades, e que sejam permitidos os plantios de alimentos transgênicos. Lula tentou vetar esses pontos, mas os deputados e senadores não aceitaram as mudanças no PL

Homologação de terras indígenas

De acordo com a Funai, existem ao todo 526 pedidos de análise territorial aguardando serem avaliados para terem seus grupos de trabalho definidos pelo governo federal e iniciar o processo de demarcação. No período de transição entre os governos Bolsonaro e Lula, um documento feito pelo Grupo de Trabalho dos Povos Indígenas listou a demarcação imediata de 13 territórios. O documento apontava outras 66 terras que aguardavam a demarcação física ou a portaria no MJSP.

Entre as 13 que foram listadas como prioritárias, cinco estão na Amazônia Legal: TI Cacique Fontoura, entre os municípios de Luciara e São Félix do Araguaia, no Mato Grosso; a TI Arara do Rio Amônia, em Marechal Taumaturgo, no Acre; a TI Rio Gregório, em Tarauacá, também no Acre; e as terras Uneiuxi, em Santa Isabel do Rio Negro, e Acapuri de Cima, em Fonte Boa, ambas no Amazonas. A única que ainda precisa de homologação é a TI Cacique Fontoura, as outras quatro foram homologadas por Lula em 2023. 

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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