Em meio ao debate do Marco Temporal, urgência pela demarcação das terras indígena cresce e Ministério da Justiça segue com processos declaratórios parados desde 2017

Os povos indígenas passaram por duas semanas decisivas em que a legislação territorial que incide sobre suas terras foi debatida e julgada  pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Após a luta contra o Marco Temporal, as organizações do movimento indígena voltaram a reafirmar que a bandeira da luta pela demarcação de seu território segue sendo a pauta mais urgente. Neste primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) homologou oito terras indígenas, quatro delas da Amazônia Legal. 

demarcação de terras indígenas

A conclusão do processo de reconhecimento das terras indígenas pelo Estado brasileiro  passa por seis fases que incluem:
1. elaboração e aprovação pela Funai do estudo de indentificação
2. tempo de contestação do estudo;
3. declaração dos limites territoriais; 
4. demarcação física;
5. homologação; 
6. registro final. 

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) é o órgão responsável por uma das principais fases desse processo, a fase da declaração dos limites territoriais. De acordo com o Decreto 1.775, de 1996, que regulamenta as normas de demarcação, o MJSP tem 30 dias, após envio do estudo antropológico, para publicar a portaria declaratória. Essa declaração determina, efetivamente, onde são colocados os marcos que desenham o limite do mapa do território: é a demarcação.

Apesar das homologações assinadas por Lula, as declarações (fase do processo demarcatório logo após a aprovação do estudo antropológico – ver “Declarando terras indígenas“) seguem paradas. O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informou à InfoAmazonia que atualmente existem 11 terras indígenas aguardando a publicação das portarias declaratórias. As últimas terras indígenas (TIs) declaradas pelo MJSP foram Tapeba, no Ceará,  e Jurubaxi-Téa, no Amazonas, em setembro de 2017, com o então ministro da Justiça Torquato Jardim, na gestão de Michel Temer. Antes, em agosto, Jardim tinha anulado a portaria declaratória da TI Jaraguá. 

Depois disso, os ministros da Justiça do governo de Jair Bolsonaro também criaram vários entraves para não declarar os limites dos territórios. Em 2020, o então ministro Sergio Moro devolveu à Funai 17 processos, ordenando o uso da tese do Marco Temporal e reavaliações de estudos antropológicos. O ministro Anderson Torres não declarou territórios, pelo contrário, determinou a anulação do processo da TI Menku no Mato Grosso. Neste ano, o MPF entrou com ação para suspender a decisão do MJSP. Nenhuma terra indígena foi demarcada na gestão Bolsonaro.

Apesar da expectativa, nenhuma terra indígena foi declarada pelo MJSP nestes primeiros nove meses de governo do presidente Lula. Das 11 terras listadas pelo MJSP, com estudo pronto para serem assinadas pelo ministro Flávio Dino, três delas estão localizadas na Amazônia Legal: as TIs Maró (PA), Cobra Grande (PA) e Sawré Muybu (PA). Fora da Amazônia legal estão: Sambaqui (PR), Djaiko-aty (SP), Amba Porã (SP), Promorim (SP), Ka’aguy Mirim (SP), Ypol Triunfo (MS), Xakriabá (MG) e Pindoty – Araça-Mirim (SP). 

Os indígenas das três terras da Amazônia Legal lutam há mais de duas décadas pela demarcação. Em 2014, a Justiça Federal do Pará julgou como inexistente a Terra Indígena Maró, mesmo a Funai já tendo publicado, em 2011, os estudos que comprovam a autenticidade do território. À época, o juiz Airton Portela, da 2ª Vara de Santarém, alegou que os indígenas foram induzidos pela equipe da Funai a reivindicar  a terra. Estudos do órgão indigenista apontam que os povos Borari e Arapiuns, que reivindicam a TI Maró, habitam a região desde o século XVII. 
No caso da TI Cobra Grande, o grupo de trabalho definido para realização dos estudos antropológicos iniciou as atividades em 2008. Depois de muito atraso,  em 2011, o Ministério Público Federal do Pará (MPF) entrou com uma recomendação, cobrando da Funai as conclusões dos estudos de identificação e delimitação, que só foram publicados em setembro de 2015.

Vista aerea da TI autodermarcada Sawré Muybu

A TI Sawré Muybu teve seus estudos territoriais concluídos em 2013, mas estes ficaram engavetados por dois anos. A partir da pressão exercida pela autodemarcação iniciada em 2014 pelo povo Munduruku, os estudos foram oficialmente publicados em 2015 e, desde então,  os habitantes  da  TI Sawré Muybu aguardam a declaração pelo MJSP.

“Nada impede a nossa declaração”

O professor Poró Borari, da TI Maró, em Santarém, conta que há mais de dez anos eles aguardam a declaração da portaria do MJSP e que não há irregularidades jurídicas que impeçam a conclusão do processo. Poró faz parte de um grupo chamado “Vigilantes da Terra Indígena Maró”, que se reúnem duas vezes ao mês para verificar a presença de intrusos na TI e realizar denúncias à Funai. 

“Durante o governo Bolsonaro as declarações ficaram paradas. Desde a campanha ele disse que não iria demarcar nenhuma terra indígena, mas nada impede a nossa declaração. Não tem nenhum problema jurídico que possa ser usado como empecilho”, afirma. 

Vigilantes da Terra Indígena Maró que aguarda portaria declaratória. Fotos: Arquivo pessoal

Como vigilante, Poró afirma que o maior desafio são as invasões madeireiras. A TI fica próxima ao município de Juruti, que é marcado por investigações e prisões de madeireiros. “O grupo de interesse econômico é a exploração madeireira, nós estamos numa região de risco”, conta. 

Poró diz que todos estavam aguardando que a declaração fosse feita neste ano. “Nós estamos nessa expectativa, pensamos que seria publicada em abril, mas nessa gestão nós tivemos essa situação emblemática de competência jurídica. Ora a portaria declaratória seria do Ministério da Justiça, depois passou a ser responsabilidade do Ministério dos Povos Indígenas, aí o congresso voltou atrás, ficou nesse vai e vem e ainda não saiu”, afirmou. 

Nós estamos nessa expectativa, pensamos que seria publicada em abril

Poró Borari, professor indígena

Responsabilidade dos ministérios

Em janeiro, a Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 1.154, de 2023. O documento estabelecia as normas de funcionamento da estrutura governamental da nova gestão. Nele, a atribuição de declarar a demarcação das terras indígenas passaria para o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), liderado pela indígena Sonia Guajajara (PSOL). Os deputados federais, no entanto, não aceitaram a mudança.

Hoje, o MPI atua nos processos de demarcação das terras indígenas prestando assessoria ao MJSP. “A edição da MP 1.154/23 resultou na revisão de estruturas e procedimentos. Os dois órgãos se reúnem sempre que demandado para alinhar o andamento dos processos, com o MPI prestando apoio às equipes do MJSP”, informou por email o MPI. 
O MPI tem recebido da Funai os estudos feitos sobre as terras indígenas em processo de demarcação para conhecimento e acompanhamento. O órgão informou que recebeu 22 estudos da Funai e que, até a semana de 26 de setembro, 19 foram enviados ao MJSP. O MPI não explicou a diferença entre a lista com as 11 terras entregue pelo MJSP à InfoAmazonia e não enviou a lista com os nomes das 19 terras.

Declarando terras indígenas

Efetivamente a fase da portaria declaratória é a mais importante do processo de demarcação. Isso porque o MJSP é órgão que oficializa e garante os direitos jurídicos e legais do território. A partir desta portaria é que as terras passam pela retirada de invasores. Nesse processo fica disponível também o documento de registro da terra para levar ao cartório e a Funai pode finalmente realizar a demarcação física, é o que explica Bruno Martins Morais, advogado, especialista em Direito Ambiental e mestre em antropologia. 

“O Ministro da Justiça assina a portaria. Se ele achar que os estudos feitos na Funai não estão corretos, ele manda devolver. Esse é o ato no procedimento administrativo legalmente mais importante. As pessoas colocam muito peso na homologação, porque é a caneta do Presidente da República, mas a decisão mais importante do processo é a declaração. Porque depois que a terra é declarada, ela passa a ter efeitos jurídicos. A partir daí você começa os procedimentos de desintrusão da área, o pagamento de benfeitoria, a destinação daquela área para os povos indígenas, o processo de regularização fundiária, você chama o Incra”, explica. 

É nesse momento também que entra a discussão sobre o pagamento de benfeitorias. No julgamento recente no STF, os ministros concluíram que, em casos de conflitos, existe a possibilidade de haver indenização prévia e por terra nua para aqueles que demonstrarem boa fé. 

O advogado explica que a maioria dos casos não envolvem pessoas de boa fé, mas conflitos diretos com posseiros, grileiros e invasores com documentos irregulares. “ A maior parte dos procedimentos de demarcação de terras indígena no Brasil afeta terras que são muito irregulares. Não é como alega o Alexandre de Moraes, de que supostamente há um cara que lutou na guerra do Paraguai e ganhou um pedaço de terra no Brasil. Podem ter duas ou três, mas 90% dos casos no Brasil tem demarcação incidindo por grilagem. São pessoas que começam a ocupar aquele território, começam a desmatar e ficam abrindo fazenda na esperança de regularizar aquela posse”, afirma.

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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