Levantamento inédito mostra que fazendas na terra indígena em Rondônia abasteceram dois frigoríficos da JBS que vendem carne para Pão de Açúcar, Assaí e Extra, controlados por gigante francesa; área ocupada por fazendas se tornou epicentro de conflitos. Frigorífico diz que não tem controle sobre fornecedores indiretos.

“Nós estávamos caminhando pela estrada e, de repente, começou a sair gente do mato, e em carros e motos pela estrada. Eles nos cercaram e disseram que estávamos dentro de propriedade privada. Eu disse que ali é terra indígena, e eles sabem disso”, contou a indigenista Ivaneide Bandeira, sobre momentos de tensão que viveu ao lado de indígenas do povo Uru-Eu-Wau-Wau, no domingo de Dia das Mães, 14 de maio deste ano.

“Isso aqui não vai liberar assim do jeito que vocês estão pensando, pode ter certeza”, afirmou um dos homens que cercavam Neidinha, como é conhecida a ambientalista e fundadora da Associação Etnoambiental Kanindé.

O confronto ocorreu em uma área da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW), em Rondônia, conhecida como Burareiro, mesma região onde invasores mantêm fazendas de gado que abastecem grandes frigoríficos e redes de supermercados. 

Em março de 2021, o grupo francês Casino Guichard-Perrachon, que controla Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper, foi denunciado na Justiça da França por manter em suas prateleiras carne de fornecedores ligados diretamente ao desmatamento ilegal na Amazônia, incluindo das fazendas que estão no Burareiro. 

O caso se enquadra na Lei de Vigilância: A lei francesa foi motivada após desabamento do prédio Rana Plaza em 2013, em Bangladesh, que sediava fábricas de vestuários de marcas renomadas com trabalhadores em condições precárias. Mil pessoas morreram no desabamento.,  criada em 2017, que obriga grandes empresas sediadas no país a garantirem que “tanto suas filiais quanto empresas subcontratadas” não causem “violações graves contra os direitos humanos e liberdades fundamentais, da saúde e segurança das pessoas e do meio ambiente”.

Apesar de ter declarado à Justiça francesa que mantém rigoroso sistema de controle da sua cadeia de fornecedores, as prateleiras dos supermercados do grupo francês no Brasil continuam vendendo carne com origem em áreas protegidas.

 É o que apontam os dados de um novo levantamento inédito do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, em parceria com o Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, em inglês), que analisou mais de 500 mil registros sobre a movimentação de animais na área de influência de dois frigoríficos da empresa JBS que fornecem carne para o grupo Casino, correspondente ao período de 2018 a 2022.

Dados das Guias de Trânsito Animal (GTAs) apontam que as plantas de abate da JBS em Pimenta Bueno (Serviço de Inspeção Federal -SIF -2880) e Vilhena (SIF-4333), municípios de Rondônia, receberam animais com origem na terra indígena e outras áreas protegidas depois de março de 2021, data em que povos indígenas do Brasil e da Colômbia, com apoio de ONGs internacionais, ingressaram com ação contra o Casino na França.

Como investigamos a cadeia de fornecimento do grupo casino?

Analisamos dados das GTAs e do CAR que permitiram identificar origem e destino do transporte de animais

Cruzamos esses dados com informações das áreas de conservação e terras indígenas para investigar os locais de engorda deste gado, e montamos a cadeia de distribuição desses rebanhos bovinos ilegais. Esta reportagem contou com a consultoria e validação científica de pesquisadores do CCCA. Confira mais detalhes nesta página.

A partir dos dados dos fornecedores que entregaram gado diretamente  nesses dois frigoríficos, a nossa reportagem fez o caminho inverso da cadeia de abastecimento e, com base nas informações declaradas nas GTAs, encontrou produtores na cadeia de abastecimento instalados dentro da terra indígena.

Na maioria das transações de gado analisadas pela reportagem, a transferência dos animais das fazendas na terra indígena não ocorreu de forma direta para a JBS. No entanto, após transitarem por diferentes fazendas, os animais chegaram aos frigoríficos sem que se possa  diferenciar o gado que veio da terra indígena dos demais. Essa manobra é conhecida como lavagem de gado e tem como objetivo esconder a possível origem ilegal dos animais. 

Um dos fornecedores que teria praticado a manobra é o fazendeiro Orlando Alves Trindade, que ocupa mais de mil hectares com a Fazenda Coimbra dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau. 

Trindade transportou gado da Fazenda Coimbra para outra propriedade sua fora da TI, a Fazenda Aryane, que abasteceu o frigorífico da JBS em Vilhena.

Em 15 de maio de 2021, dois meses após a denúncia contra o grupo Casino na França, a JBS de Vilhena recebeu 54 animais da Fazenda Aryane, segundo os dados obtidos pela reportagem. Na seção de rastreabilidade do frigorífico, que permite consulta sobre a origem de seus produtos, consta que os animais dessa fazenda foram abatidos em 4 de junho. 

Mas os dados disponibilizados pela  JBS não mostram que, dois meses antes, a Fazenda Aryane recebeu 90 cabeças de gado da Fazenda Coimbra, de dentro da terra indígena. 

Questionada pela InfoAmazonia, a JBS afirmou que “não tem visibilidade sobre os demais elos de sua cadeia”, o que impediria o frigorífico de garantir controle sobre toda a cadeia de abastecimento desde a origem. (Veja manifestação da JBS abaixo)

Rastreamento da JBS mostra que frigorífico abateu animais da Fazenda Aryane em junho de 2021. Meses antes, essa fazenda recebeu 90 cabeças de gado criados na terra indígena. Reprodução/JBS

Em 2021, um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) citou a necessidade de fiscalização na Fazenda Coimbra, e propôs a instalação de barreiras de contenção na região para evitar invasões. A fazenda está a apenas sete quilômetros da Aldeia Jamari, dentro da TIUEWW. O órgão também recomendou o cancelamento de todos os cadastros de propriedades rurais dentro da terra indígena, como forma de coibir a exploração nessas áreas.

Não há informações de que a fazenda foi fiscalizada. No entanto, em 2022, Trindade foi homenageado pela Assembleia Legislativa de Rondônia como cidadão honorário do estado “por seus serviços prestados”.

Entre 2019 e 2021, a Fazenda Coimbra forneceu 179 cabeças de gado para diferentes fazendas  que abastecem a JBS, segundo dados das guias. As áreas dentro da terra indígena foram adquiridas por Orlando Trindade entre 2001 e 2002, mais de duas décadas após a demarcação do território, que foi homologado em 1991. 

Fazenda de gado na região do Burareiro, dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Foto: Fábio Nascimento/InfoAmazonia

Em área contínua à Fazenda Coimbra, dentro da terra indígena, encontramos outro fornecedor indireto da JBS. A Fazenda Dois Irmãos transferiu mais de 100 animais para propriedades que negociaram gado na unidade de abate da JBS em Pimenta Bueno.

As duas fazendas estão com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) cancelado por decisão judicial desde 2017, mas os ocupantes nunca foram retirados da área, ao contrário, segundo os dados das GTAs analisadas, essas propriedades continuam a atividade pecuária dentro da terra indígena, com gado vacinado e movimentando animais por diferentes propriedades para despistar os sistemas de monitoramento da cadeia produtiva.

Assim como as Fazendas Coimbra e Dois Irmãos, nossa apuração identificou que pelo menos 15 fazendas sobrepostas à terra indígena abasteceram a cadeia de fornecimento do grupo Casino em Rondônia depois de março de 2021. Entre 2018 e 2022, foram 46 propriedades identificadas dentro da terra indígena, que teriam manejado 8 mil cabeças de gado. 

Fazendas na TI abasteceram fornecedores diretos da JBS

A reportagem da InfoAmazonia também encontrou carne com código do SIF correspondente aos frigoríficos relacionados a invasões na TIUEWW em supermercados da rede Casino no Brasil. O registro mais recente ocorreu em uma loja do Assaí, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, em maio deste ano. Também encontramos carne desses frigoríficos em Piracicaba, interior de São Paulo. Em setembro de 2022, a organização Mighty Earth também flagrou carne dos mesmos frigoríficos em uma loja do Assaí na capital paulista.

Em 27 de maio, a reportagem da InfoAmazonia localizou carne com origem em lotes do frigorífico da JBS em Vilhena (SIF 4333), onde foi verificada contaminação cruzada por relação com produção no território Uru-Eu-Wau-Wau. Foto: Rafael de Pino/InfoAmazonia

Os mesmos dados analisados pela InfoAmazonia e o CCCA estão em poder dos órgãos sanitários dos governos estaduais e federal. No entanto, por considerar informação sanitária e de saúde pública, estratégica para acordos comerciais, o Ministério da Agricultura e Pecuária resiste em compartilhar as informações das GTAs com órgãos ambientais.

Em maio, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) disse à reportagem que tem planos de integrar informações das GTAs e de outras bases públicas para aumentar controle sobre o desmatamento na Amazônia.