Relatório de organização internacional aponta ligação do frigorífico através de seus fornecedores com casos de desmatamento ilegal; dono de quase 25% da empresa, o banco público deixou de cumprir normas internas para investimentos na pecuária

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), maior acionista individual da JBS, tem ignorado denúncias que ligam a companhia ao desmatamento ilegal. Entre 2019 e 2022, a JBS comprou gado de áreas desmatadas ou de fornecedores ligados diretamente ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado, segundo aponta um relatório encomendado pela organização Mighty Earth.

A InfoAmazonia teve acesso ao documento que detalha o histórico dos produtores e das áreas e revela que a JBS manteve os maiores desmatadores da Amazônia entre seus fornecedores. Segundo a Mighty Earth, no período de monitoramento foram identificados 68 casos de desmatamento na cadeia de fornecimento da companhia e que resultaram na devastação de 125 mil hectares de floresta.

Todos os casos foram confirmados por imagens de satélite e enviados à companhia, mas “a JBS se recusou a investigá-los”, afirmou João Gonçalves, diretor da Mighty Earth no Brasil.

Fábio Bispo/InfoAmazonia (Ago/2022)
Fazenda Cachoeira, em Rondônia, está entre 68 casos de desmatamento ligados à JBS através de seus fornecedores

Em email enviado à organização, em 7 de janeiro, a diretoria da JBS respondeu que discorda da metodologia de confirmação dos casos, que utilizou o sistema de alertas rápidos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), alegando que o protocolo firmado com o Ministério Público Federal (MPF) diz que as ilegalidades precisam estar registradas no Prodes, que é o serviço do Inpe que faz o levantamento anual e consolidado do desmatamento: 

“Infelizmente, é muito improvável que os dados fornecidos possam ser instrumentais para as operações da JBS/Friboi, uma vez que a metodologia utilizada para identificar os casos (critérios/parâmetros/regras de bloqueio e desbloqueio/fontes de dados) não adere ao protocolo oficial Boi na Linha”, justificou a JBS no email enviado à Mighty Earth. O frigorífico ainda diz que adoção de medidas contras os desmatadores flagrados poderia gerar “um precedente incoerente para o cumprimento de acordos setoriais”.

Um dos casos apontado no relatório é o da Fazenda Cachoeira, no norte de Rondônia, que está registrada em nome de um fornecedor da JBS. A nossa reportagem sobrevoou a Fazenda Cachoeira com a equipe de monitoramento do Greenpeace em agosto de 2022. Esse foi o maior desmatamento em área contínua registrado na Amazônia no último ano, totalizando 8.987  hectares de floresta devastada. Na época, a reportagem identificou que João Gilberto Assis Miranda forneceu gado para JBS através de outras propriedades, em áreas legalizadas. 

Reprodução

Outro caso registrado pelas imagens de satélite é o da Fazenda Santiago, que ocupa uma área reivindicada pelo povo indígena Ikpeng, na cidade de Paranatinga, Mato Grosso. O dono dessa fazenda, Édio Nogueira, é conhecido como um dos maiores desmatadores da Amazônia para a criação de gado. Nessas fazendas, em diferentes pontos, o desmatamento entre julho e setembro de 2022 foi de 11.392 hectares. Em janeiro deste ano, a organização também apresentou uma denúncia contra a JBS na Comissão de Valores dos Estados Unidos, por supostas fraudes na comercialização dos chamados créditos verdes.

Uma norma interna do próprio BNDES, aprovada em 2009, previa que, desde 2016, o banco só deveria financiar negócios com rebanhos “rastreados de forma ininterrupta, desde o nascimento”. Recentemente, o banco começou a bloquear produtores ligados ao desmatamento, mas as restrições não se aplicaram aos 8,1 bilhões investidos em ativos da JBS.

O sistema adotado pelo BNDES, em parceria com a organização MapBiomas também é baseado em alertas de desmatamento, com fontes em satélites de alta resolução, semelhantes aos usados pela Mighty Earth e ignorados pela JBS como prova.

Desmatamento na Fazenda Cachoeira

Com mais de 20% das ações da JBS — esse percentual varia de acordo com o valor diário das ações —, o banco público brasileiro é atualmente o maior investidor individual da companhia, com assentos nos conselhos que tomam decisões. Especialistas ouvidos pela InfoAmazonia apontam que o banco tem poder suficiente para mudar os rumos da companhia e excluir os rebanhos de áreas de desmatamento ilegal, terras indígenas e unidades de conservação da sua cadeia de fornecimento.

Caso contrário, o próprio Estado brasileiro pode perder recursos com a desvalorização das ações da JBS por não cumprimento de metas ambientais. O BNDES é o maior acionista individual da companhia depois da família Batista, que fundou e controla o grupo.

Qual o valor do apoio do BNDES às empresas do grupo J&F?

Com mais de 20% das ações da JBS — esse percentual varia de acordo com o valor diário das ações —, o banco público brasileiro é atualmente o maior investidor individual da companhia, com assentos nos conselhos que tomam decisões. Especialistas ouvidos pela InfoAmazonia apontam que o banco tem poder suficiente para mudar os rumos da companhia e excluir os rebanhos de áreas de desmatamento ilegal, terras indígenas e unidades de conservação da sua cadeia de fornecimento. Caso contrário, o próprio Estado brasileiro pode perder recursos com a desvalorização das ações da JBS por não cumprimento de metas ambientais. O BNDES é o maior acionista individual da companhia depois da família Batista, que fundou e controla o grupo.

Pressões externas também podem acentuar a crise no setor. Um exemplo claro é a lei ratificada pelo Conselho Europeu, no último 16 de abril, que proíbe a venda de qualquer produto oriundo de desmatamento nos 27 países da União Europeia. O bloco é o segundo maior comprador das exportações agropecuárias do Brasil.

“Ou se tira o dinheiro da JBS ou se faz parte da transformação”, afirma Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e que aponta a influência do BNDES sobre o desmatamento. 

“A Operação da JBS é tão grande que se houvesse uma transformação na companhia ela seria muito importante para o setor. Mas para que isso ocorra, tem que se combinar com os russos, que são os fazendeiros, e eles não querem se adequar”, conclui.

A Operação da JBS é tão grande que se houvesse uma transformação na companhia ela seria muito importante para o setor

Paulo Barreto, pesquisador do Imazon

Por outro lado, Barreto aponta que se a companhia não cumpre  suas próprias normas, aprovadas em 2009, e se o governo não consegue comprovar os avanços esperados para o monitoramento das cadeias, que seja feito um desinvestimento programado e o direcionamento desses recursos sejam destinados para áreas produtivas que cumpram as metas ambientais.

“Se o grande compromisso do banco é social, e se de fato o controle da cadeia produtiva não está ocorrendo, o BNDES poderia vender essas ações da JBS e, com o dinheiro do lucro, ajudar os pequenos fazendeiros. Só para se ter ideia, 24% do nosso rebanho está na agricultura familiar, esses pequenos vão precisar de mais apoio”, emenda Barreto.

Além dos R$ 8,1 bilhões em ações da JBS, que atualmente representam cerca de 25% da companhia, o BNDES ainda tem outros R$ 9,5 bilhões em créditos concedidos.  Segundo o próprio banco, os valores somados representam atualmente R$ 31,2 bilhões aplicados na JBS.

Maior desmatamento na Amazônia 2021/2022 (Fabio Bispo/InfoAmzonia)

Procurada, a JBS afirmou que avaliou os 68 casos de desmatamento e que já havia identificado problemas em 69% deles. “A empresa já havia bloqueado os fornecedores antes mesmo de qualquer sinalização por parte da ONG. Os outros 31% sequer foram identificados na base de fornecedores da empresa”.

A JBS não respondeu sobre as declarações dadas à Mighty Earth questionando a metodologia utilizada pela organização. A empresa também não quis informar quais dos 68 casos apontados nos relatórios foram alvos de bloqueios.

“Títulos Verdes”

Em janeiro deste ano, a Mighty Earth apresentou uma denúncia contra a JBS à Comissão de Valores dos Estados Unidos, a SEC – Securities and Exchange Commission, em inglês -, por suspeita de fraude na venda de Títulos Verdes: Títulos financeiros de renda fixa usado para financiar projetos que tenham benefícios ambientais e/ou climáticos positivos .

Em 2021, a JBS vendeu 3,2 bilhões de “Green Bonds”, os chamados títulos verdes, vinculados às metas de sustentabilidade da empresa. Mas, segundo a organização, a companhia já não está cumprindo suas metas de emissões, além de ignorar o desmatamento na sua cadeia de fornecedores.

“Os Green Bonds negociados na Bolsa de Valores dos Estados Unidos prometem trazer lucro com base nos resultados da JBS, mas a empresa não deixa claro quais são suas metas ambientais. A companhia fala em zerar as emissões e acabar com o desmatamento, mas em nenhum momento explica como vai fazer isso. A falta dessas informações para a Mighty Earth é mais do que greenwashing, é fraude”, afirma João Gonçalves, diretor da organização no Brasil. 

A companhia fala em zerar as emissões e acabar com o desmatamento, mas em nenhum momento explica como vai fazer isso. A falta dessas informações para a Mighty Earth é mais do que greenwashing, é fraude

João Gonçalves, diretor da Mighty Earth no Brasil

Uma avaliação das  promessas climáticas da JBS feita pelo New Climate Institute e pelo Carbon Market Watch classificou a companhia como “muito baixa” em transparência e integridade. Já a agência de risco MorningStar classificou a JBS dentro do pior índice de risco ambiental. A empresa está na 576ª posição entre 603 indústrias avaliadas.

Além disso, mais de 20 organizações ao redor do mundo pediram rebaixamento da companhia ao Carbon Disclosure Project (CDP), entidade internacional que conceitua projetos a partir da sua pegada de carbono, por seu desempenho no enfrentamento das mudanças climáticas.

Ruralistas pressionam contra abertura de dados

As pressões para implantação de controle dos rebanhos como forma de conter o desmatamento têm ampliado o debate nos diferentes setores do governo federal, que prometeu zerar o desmatamento até 2030

Atualmente, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) já faz o monitoramento sanitário dos rebanhos através da guia de trânsito animal (GTA), que indiretamente também fornece informações sobre a localização do gado. Esta localização também poderia ser usada para identificar animais  com origem em áreas de desmtameto ilegal. Mas há resistências internas por parte dos ruralistas para que as GTA’s não sejam usadas para fins de fiscalização ambiental.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) informou que está propondo um sistema oficial que aproveite os dados das GTAs e outras fontes para o cruzamento de informações com dados de propriedades e desmatamento, mas aponta que “é preciso continuar aprimorando esses sistemas com a inclusão também de dados para além da GTA, como monitoramento com imagens de alta resolução e futuramente com rastreabilidade individual”, informou o órgão.

A orientação do Ministério é de que não deve haver financiamento para atividades agropecuárias ligadas ao desmatamento ilegal e que “todo investimento público, direto ou indireto, em obras ou atividades econômicas deve ser convergente com a meta de desmatamento zero até 2030”.

Dados do Imazon apontam que se as metas ambientais forem cumpridas, o Brasil não precisará mais desmatar para atender a demanda mundial por carne e ainda terá uma área de 37 milhões de hectares —extensão maior do que a Bélgica— para recuperar.

“O mundo está desesperado por soluções baseadas na natureza para resolver problemas climáticos. Se o Brasil promover ações que sobrem terra para plantar árvores, isso é fantástico. E o BNDES poderia ser esse grande indutor no lado dos pequenos”, analisa Barreto.

O mundo está desesperado por soluções baseadas na natureza para resolver problemas climáticos.

Paulo Barreto, pesquisador Imazon

O aumento das exigências internacionais e o aumento do controle do desmatamento pelos órgãos ambientais cedo ou tarde vão obrigar os produtores a adotarem novas tecnologias, “e o pequeno produtor é quem sentirá mais forte esse impacto”, conclui o pesquisador. 

“Não vamos aceitar intervenção do parlamento europeu”

Em entrevista ao programa Roda Viva, na última segunda-feira, 22, o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, criticou a nova lei ambiental da União Europeia e e disse que “não é atribuição do parlamento europeu” tomar decisões que se sobrepõem à legislação brasileira apontando que a lei interfere sobre “produtores que ainda tem ativo ambiental de área que pode ser desmatada e que é um direito por lei. Não é justo, não vamos aceitar esse tipo de intervenção do parlamento europeu”.

Por meio de assessoria de imprensa, o MAPA informou que não pretende compartilhar informações sanitárias para auxiliar no combate ao desatamento ilegal na pecuária. 

O órgão argumenta que os dados das GTAs “são declaratórios tendo por base vínculo de confiança estabelecido entre o produtor rural e os Órgãos Executores de Sanidade Agropecuária” e que a preservação das informações exclusivamente para fins sanitários se justificam por “constituírem informações estratégicas de mercado” e que qualquer alteração nesse funcionamento poderia resultar na “perda do engajamento dos produtores com as políticas de defesa agropecuária”.  (Veja a resposta do MAPA na íntegra).

A reportagem da InfoAmazonia fez contato com o BNDES através de sua assessoria de imprensa, mas o banco ignorou os pedidos de entrevista da reportagem. 

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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