Banco brasileiro é dono de 20% da companhia frigorífica e maior acionista individual; desde 2016, norma interna diz que dinheiro público não pode ser investido em empresas relacionadas com desmatamento; organizações classificam negociação como a mais importante para as mudanças climáticas na história da bolsa dos EUA.

A JBS, maior processadora de proteína animal do mundo, que em julho deste ano anunciou uma nova intenção de listar suas ações na Bolsa de Nova York (NYSE), enfrenta pelo menos quatro denúncias enviadas às autoridades norte-americanas por organizações que a acusam de praticar “greenwashing” e de esconder informações sobre os reais impactos de suas atividades para as mudanças climáticas. O Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), que tem prometido não investir em negócios reconhecidamente ligados ao desmatamento e às violações de direitos, terá que manifestar em assembleia de acionistas se aprova a entrada da empresa no mercado financeiro dos Estados Unidos. 

Isso porque o BNDES, que tem como único acionista o governo federal,  é o maior investidor individual da JBS, com 20,81% das ações da empresa, atrás apenas dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Desde 2016, uma norma interna prevê que o banco público só deveria investir e financiar negócios com rebanhos “rastreados de forma ininterrupta, desde o nascimento”. Apesar de a JBS não cumprir essas normas, o governo federal mantém R$ 8,1 bilhões em ações da companhia e mais R$ 9,5 bi em linhas de crédito. Em valores atualizados, são R$ 32,5 bilhões em recursos federais aplicados na JBS.

As quatro reclamações enviadas à SEC, órgão norte-americano equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (CVM): A Comissão de Valores Mobiliários é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda e que, juntamente com a Lei das Sociedades por Ações, disciplina o funcionamento do mercado de valores mobiliários e a atuação de seus responsáveis., são das organizações não governamentais Mighty Earth, Rainforest Action Network (RAN), World Animal Protection e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que pedem o cancelamento da Oferta Pública Inicial: Tipo de oferta pública em que as ações de uma empresa são vendidas ao público em geral numa bolsa de valores pela primeira vez. (IPO, na sigla em inglês) por envolvimento do frigorífico no desmatamento da Amazônia e em casos de violações de direitos humanos e dos povos indígenas. 

As denúncias enviadas à autoridade norte-americana listam uma série de casos recentes envolvendo as atividades da JBS. Um dos casos aponta a comercialização de gado com origem na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau revelado pela InfoAmazonia em junho deste ano. A reportagem identificou que ao menos 46 fazendas sobrepostas à terra indígena abasteceram dois frigoríficos da JBS em Rondônia entre 2018 e 2022.

As denúncias respingam diretamente no BNDES, que tem sido criticado por não aplicar à JBS as mesmas normas internas que têm sido impostas aos demais produtores ligados ao desmatamento. Esses infratores tiveram seus financiamentos suspensos pelo banco.

A entrada na bolsa norte-americana precisa passar por uma assembleia de acionistas, onde o BNDES e demais investidores com direito a voto vão se manifestar. A expectativa é de que essa reunião ocorra nas próximas semanas. Como argumento, a direção da companhia defenderá que a dupla listagem — com ações em Nova York e na Bolsa de São Paulo — vai destravar o valor das ações da empresa e aumentar a sua capacidade de investimento.

No entanto, em reunião para apresentação dos resultados do terceiro trimestre deste ano, realizada em 14 de novembro, o CEO da empresa, Gilberto Tomazoni, deu alguns sinais de que o processo de abertura de capital na Bolsa de Valores de Nova York não anda como o esperado, ao afirmar, sem dar detalhes, que o processo ainda está na fase de responder perguntas à SEC.

A JBS tenta listar suas ações na bolsa norte-americana desde 2016, quando teve intenção vetada justamente pelo BNDES.  Na última tentativa, em 2017, os planos foram frustrados pelos escândalos de corrupção envolvendo os irmãos Wesley e Joesley Batista — acionistas da J&F Investimentos, controladora da companhia.

O BNDES diz que não comenta sobre o ingresso da companhia na bolsa americana e fará sua manifestação diretamente na assembleia de acionistas. Sobre as denúncias que apontam desmatamento e violações de direitos na cadeia de abastecimento da companhia, o banco disse, em nota, que “a posição de acionista minoritário estabelece certas limitações para sua atuação nas investidas” (leia nota do BNDES na íntegra)

O banco do governo federal tem aproximadamente R$ 60 bilhões em ações da empresa frigorífica e, desde 2007, já lucrou R$ 20 bilhões. Em reportagem publicada na Folha, a atual gestão do BNDES disse que os investimentos “estão alinhados às políticas e prioridades do governo federal”, indicando que não há planos de venda de ações em nenhuma das companhias.

Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), diz que a influência do BNDES sobre a JBS não é pequena como o banco faz parecer e que o fato de o governo federal ser dono de 20% das ações da empresa torna a gestão do banco corresponsável pelas ações e decisões relacionadas à companhia:

“O mais importante é que o banco não seguiu sua própria diretriz de exigir a rastreabilidade completa a partir de 2016. Mesmo que as compras diretas estivessem 100% ok, a empresa continuaria com responsabilidade significativa por causa do descontrole dos indiretos”, afirma.

O mais importante é que o banco não seguiu sua própria diretriz de exigir a rastreabilidade completa a partir de 2016. Mesmo que as compras diretas estivessem 100% ok, a empresa continuaria com responsabilidade significativa por causa do descontrole dos indiretos.

Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon

Uma pesquisa do Imazon, publicada em novembro deste ano, aponta que a pecuária na Amazônia pode desmatar 3 milhões de hectares até 2025, se não forem implantados mecanismos de rastreamento de gado. O documento destaca que a JBS é a empresa frigorífica com maior exposição ao risco de desmatamento associado à cadeia produtiva. Esse risco aumentou 97% entre 2016 e 2022, segundo o relatório.

João Gonçalves, diretor sênior Mighty Earth no Brasil, diz que o aumento de capital da JBS com a listagem na Bolsa de Valores de Nova York “pode ser considerada como o IPO mais decisivo da história para o clima do planeta”, afirmou.

O IPO mais decisivo da história para o clima do planeta.

João Gonçalves, diretor sênior Mighty Earth no Brasil

“Estamos alertando do risco que os investidores da JBS correm com essas práticas, em especial, o BNDES, que é o maior acionista individual da JBS. Acreditamos que os investidores têm a responsabilidade fiduciária de considerar os possíveis riscos regulatórios, de litígio, de reputação, éticos e de mercado de investir em uma empresa gravemente envolvida e exposta a mudanças climáticas, desmatamento, perda de biodiversidade, escândalos de corrupção e violações de direitos humanos”.

Em 2022, a Mighty Earth identificou 68 casos de desmatamento na Amazônia relacionados à cadeia de fornecimento da JBS e que teriam resultado na devastação de 125 mil hectares de floresta —uma área equivalente ao tamanho da cidade de São Paulo. 

O relatório com as evidências de cada um dos casos foi enviado à JBS e distribuído para seus acionistas, mas nenhuma medida concreta foi tomada, segundo a Mighty Earth.

Em 27 de maio, a reportagem da InfoAmazonia localizou carne com origem em lotes do frigorífico da JBS em Vilhena (SIF 4333), onde foi verificada a entrada de animais com origem na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Foto: Rafael de Pino/InfoAmazonia

JBS aumentou emissões contrariando as próprias promessas

As denúncias apresentadas às autoridades americanas contra a listagem da JBS pedem uma investigação minuciosa no prospecto apresentado pela companhia onde, segundo apontam, há uma série de inconsistências.

A Mighty Earth, por exemplo, destaca que a JBS teria praticado “greenwashing” com a emissão de R$ 3,2 bilhões de ativos do tipo “green bonds”, chamados de títulos verdes: Títulos financeiros de renda fixa usado para financiar projetos que tenham benefícios ambientais e/ou climáticos positivos., e que estão vinculados a metas de sustentabilidade que não incluem as atividades do chamado Escopo-3, que são as emissões geradas das atividades de seus fornecedores, como a criação de gado e o desmatamento, por exemplo, fixando metas climáticas para esses papéis apenas no Escopo 1 (emissões diretas) e 2 (decorrentes do consumo de energia).

As denúncias reforçam que a criação de gado contribui de 11% a 17% das emissões globais de gases de efeito estufa, mas a JBS não inclui esses dados sobre o gado em seus cálculos públicos de emissões. 

A RAN, a organização sem fins lucrativos fundada nos EUA, diz em sua denúncia enviada à SEC que a JBS “apresentou declarações totalmente enganosas e omitiu informações que são relevantes para os investidores”, não informando adequadamente “os riscos associados ao modelo de negócios de alto risco da empresa”.

A falta de transparência apontada pelas organizações levanta questionamentos sobre a veracidade das promessas da JBS, incluindo o compromisso de atingir zero emissões líquidas até 2040, anunciado em 2019 pela companhia. Um relatório do Institute for Agriculture and Trade (IATP), publicado em abril de 2022, estimou que cinco anos a companhia aumentou em 51% as suas emissões, contrariando as próprias promessas.

Em junho deste ano, o National Advertising Review Board (NARB), órgão americano equivalente ao Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária (Conar), pediu a suspensão de publicidades da JBS que apresentavam informações “enganosas” em campanhas sobre sobre seus compromissos net zero.

Foram descontinuadas campanhas que traziam mensagens como “Bacon, asas de frango e bife com emissões líquidas zero. É possível” e uma peça que incluía uma declaração sobre a Iniciativa de Metas Baseadas na Ciência (SBTi, em inglês), uma cooperativa para ajudar as empresas a definir estratégias de redução de emissões alinhadas com a ciência climática, e que, segundo a propaganda, reconhecia o compromisso de emissões líquidas nulas da JBS. 

Frigorífico comprou gado criado ilegalmente em terras indígenas

Em 2009, a empresa assinou um termo de ajustamento de conduta, conhecido como TAC da Carne, com o objetivo de interromper a compra de gado de áreas desmatadas ou fruto de violações de direitos humanos ou dos povos indígenas. Parte do compromisso firmado com os frigoríficos previa que o fornecimento indireto deveria ser monitorado a partir de 2011. A rastreabilidade do gado tem sido apontada como a medida mais eficiente para evitar ilegalidades, no entanto, a JBS nunca implantou um sistema de rastreabilidade na sua cadeia produtiva como estabelecido com o MPF. Atualmente, a empresa monitora apenas os seus fornecedores diretos, o que permite que seu controle seja facilmente burlado através da manobra conhecida como “lavagem de gado”.

Ilustração: Julia Lima e Raquel Gepp

As inconformidades das operações da JBS têm sido constatadas pelas seguidas auditorias do MPF no acompanhamento  do TAC da Carne. Em outubro de 2021, o órgão concluiu que a JBS havia comprado mais de 300 mil cabeças de gado de fazendas com “irregularidades”, e que as atividades da empresa, desde 2008, teria impulsionado o desmatamento de 200 mil hectares (ha) em sua cadeia de abastecimento direta e 1,5 milhão de ha em sua cadeia de abastecimento indireta. 

Em outra reportagem, a InfoAmazonia também identificou que o maior desmatamento da Amazônia em 2022 ocorreu em uma área de floresta registrada no nome de um fornecedor de gado da JBS. A reportagem mostrou que o proprietário da área onde foram desmatados mais de 8.987  hectares forneceu gado diretamente para frigoríficos da rede a partir de outras fazendas legalizadas.

Desmatamento na Fazenda Cachoeira, de propriedade de fornecedor direto da JBS

As reportagens da InfoAmazonia foram citadas nas denúncias apresentadas pelas organizações Mighty Earth e RAN. Os documentos também incluem ilegalidades registradas na compra de gado das terras indígenas Apyterewa e TI Naruvôtu Pequizal, além de uma série de outros casos relacionados ao desmatamento na Amazônia.

A RAN destaca que “o histórico de vínculos da cadeia de suprimentos da JBS com o desmatamento ilegal e violações de direitos humanos expõe os investidores a um alto risco de a empresa se tornar parte em processos de responsabilidade”. A JBS lidera o ranking Financial Exclusion Tracker que mapeia a saída de investidores por diversos motivos. Segundo o site, mais de 20 investidores deixaram de aportar recursos na JBS por conta de suas práticas de negócios, incluindo entre os motivos mudanças climáticas, direitos humanos e corrupção.

Procurada, a JBS disse que está confiante na proposta de dupla listagem: “criará oportunidades para a companhia, colaboradores, comunidades e todos os stakeholders”. 

A empresa não respondeu diretamente às perguntas relacionadas às denúncias por envolvimento com o desmatamento na Amazônia e disse apenas que reconhece o papel da sociedade civil. “Estamos sempre abertos ao diálogo com quem partilha de nosso compromisso com um futuro mais sustentável”.

Sobre a compra de gado ilegal com origem na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau flagrada pela InfoAmazonia, a assessoria do BNDES afirmou que “dará ainda ciência a seus representantes no conselho de administração da JBS para que esses possam, caso entendam cabível, observado o respectivo dever de diligência e demais deveres legais aplicáveis, aprofundar-se nas medidas tomadas pela Companhia em relação à propriedade rural citada”. 

Sobre o autor

Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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