Empresas Atem e Eneva arremataram o Campo do Japiim, localizado a menos de 10 km da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã. Leilão ocorreu na quarta-feira (13) e, na Amazônia, também foram concedidos outros quatro blocos para exploração.

As empresas Atem e Eneva S.A. adquiriram o Campo do Japiim no leilão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que ocorreu em 13 de dezembro. A reportagem da InfoAmazonia verificou que a área está a menos de 10 km da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã , dentro da zona de amortecimento: Área composta pelo entorno de uma Unidade de Conservação, onde atividades estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente. — traçado ao redor da unidade de conservação definido para restringir atividades que possam ser prejudiciais ao território. 

No caso da RDS Uatumã, a zona de amortecimento varia entre 1o e 70 km ao redor dos seus 424 hectares, conforme definido em seu plano de manejo. O Campo do Japiim está localizado entre os municípios de São Sebastião do Uatumã e Urucará, cerca de 227 km a leste de Manaus. Ele é uma área de acumulação marginal, ou seja, um campo com petróleo ou gás, que teve sua produção interrompida e inativada. A compra custou R$ 165 mil, com a Eneva tendo 80% e a Atem Participações 20%.

Blocos de petróleo no Amazonas

O leilão da ANP foi realizado no mesmo dia em que quase 200 países assinaram o texto final da Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP28) se comprometendo com uma transição para o fim dos combustíveis fósseis. Na Amazônia, a agência nacional ofereceu 21 blocos, como adiantou a reportagem da InfoAmazonia, mas foram adquiridos, além da área do Campo do Japiim, outros quatro blocos: AM-T-107, AM-T-133, AM-T-63, AM-T-64, comprados exclusivamente pela Atem. 

Mapa mostra RDS do Uatumã, em verde, e traçado da zona de amortecimento, na cor cinza

Os dois primeiros estão a menos de 10 km de distância de 5 unidades de conservação: RDS Canumã; Área de Proteção Ambiental Tarumã (APA Tarumã); APA Margem Direita do Rio Negro; APA Ilha do Lago do Rei; APA Encontro das Águas. Além disso, o AM-T-107 está a menos de 1 km de distância das Terras Indígenas Sissaíma, Gavião e Ponciano. Já o AM-T-133 está a menos de 10 km da Terra Indígena Coata-Laranjal. 

Os blocos AM-T-63 e AM-T-64 ficam a menos de 10 km da Floresta Estadual Sacará-Taquera, da Área de Proteção Ambiental Nhamundá (APA Nhamundá), da Floresta Estadual de Faro e a menos de 20 km da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana.

Greenpeace realiza protesto contra a venda de blocos de petróleo no Brasil Foto: Lucas Landau/Greenpeace

Em 2015, a Secretaria de Meio Ambiente (Sema) do Amazonas enviou um ofício para Marcelo Mafra Borges de Macedo, à época Superintendente de Segurança Operacional e Meio Ambiente da ANP, com informações sobre a existência de unidades de conservação sobrepostas a blocos de estudos com potencial de produção de gás e petróleo. 

O documento traz uma relação com os nomes de todas as unidades estaduais e municipais que seriam afetadas com a exploração. Sobre a RDS Uatumã, o documento explica que 90% do território da reserva está classificado como extremamente alto para conservação, porque o local tem espécies ameaçadas de extinção, como a jaguatirica, a onça-pintada, o tamanduá-bandeira e o peixe-boi. 

Ao fim do documento, a secretaria afirma não ter objeções sobre a exploração dos blocos de petróleo, mas recomenda que a Sema e o conselho gestor das unidades sejam consultados no processo de licenciamento e que as populações residentes e seus modos de vida sejam considerados.

Comunidades tradicionais da RDS do Uatumã fazem monitoramento e proteção de quelônios Foto: Anayra Benevides/Amazonastur

Histórico das empresas

O novo empreendimento do Campo do Japiim ficará próximo ao Campo do Azulão, onde a Eneva já explora gás. Em março deste ano, a empresa perdeu suas licenças de operação, após uma ação civil pública movida por lideranças comunitárias e indígenas dos municípios de Itapiranga e Silves, onde fica o complexo. A ação afirma que os líderes não foram consultados e que as comunidades estão sendo ignoradas. Ela conseguiu seguir operando após alegar que prejudicaria o fornecimento de energia do estado de Roraima, mas ainda está respondendo ao processo. 

Para Marcelo Letterman, mestre em Ciências Ambientais e porta-voz do Greenpeace Brasil, a Eneva vem atuando nos últimos anos sem dar o direito à Consulta Livre, Prévia e Informada aos comunitários e indígenas. O Estudo de Impacto Ambiental usado para dar as licenças de operação da Eneva é de 2013, feito pela antiga dona do empreendimento, a Petrobras, e não considerou a existência de terras indígenas na região, que ainda estão em processo de demarcação.

“Existem ao menos nove aldeias indígenas, compreendendo os povos Mura, Munduruku e Gavião, na área de influência do complexo [do Campo Azulão] e sequer a elaboração do Estudo de Componente Indígena (ECI), na forma exigida pela Funai e pelo MPI, foi executado. São questões graves e sintomáticas do avanço da exploração de petróleo e gás na Amazônia, que se manifestam também em outras regiões, como na bacia da foz do Amazonas, onde a Petrobras pressiona por uma licença mesmo sem ter cumprido a consulta”, disse o ambientalista. 

Já a Atem Participações é uma empresa conhecida no Amazonas por ser dona da Refinaria da Amazônia (Ream), que faz distribuição de combustíveis no estado. A refinaria foi privatizada em 2022. Com isso, a política de preços é diferente no Amazonas, porque segue tarifa própria, diferente das refinarias da Petrobrás. 

Transição energética

O gás natural tem sido tratado pela ANP como importante para a transição energética brasileira. Além de aumentar a disponibilidade para o mercado, a agência tem o objetivo de atrair investimentos privados aos negócios. Em outubro, o diretor da ANP, Rodolfo Sabóia, foi ouvido na comissão de infraestrutura do Senado Federal, e disse que a exploração de gás e petróleo no Brasil não pode acabar. 

“O gás natural é um desafio nacional, é um combustível com papel relevante na transição energética pela sua baixa pegada de carbono em relação a outros combustíveis fósseis e é um negócio que tem uma dependência muita grande do agente regulador e para o qual o governo tem despendido um enorme esforço, no sentido de desenvolver com diversos propósitos”, disse Sabóia. 

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva acompanhado do Emir do Catar, Xeque Tamim bin Hamad al-Thani, durante cerimônia oficial de chegada na COP28. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A InfoAmazonia mostrou que, no primeiro dia da Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP28), o Ministério de Minas e Energia (MME) concedeu incentivos fiscais à Eneva, que com isso pode ter maiores investimentos no Campo do Azulão. 

No Senado, o diretor da ANP também disse que o Brasil não pode deixar de produzir petróleo, porque, se isso ocorrer, o país precisará importar. “É importante termos em mente que a nossa produção é positiva na medida em que ainda dependemos dele [petróleo]. É impossível imaginar um mundo sem petróleo como fonte de energia […] Não adianta imaginarmos uma matriz energética em que seja possível parar de produzir petróleo, o que nós temos é que ofertar renováveis”, afirmou. 

É impossível imaginar um mundo sem petróleo como fonte de energia […] Não adianta imaginarmos uma matriz energética em que seja possível parar de produzir petróleo, o que nós temos é que ofertar renováveis.

Rodolfo Sabóia, diretor da ANP

O gás natural é um combustível fóssil. Por isso, ele não é visto como parte da transição energética para especialistas e ativistas que lutam contra o aumento das emissões de gases de efeito estufa. Marcelo Letterman, do Greenpeace Brasil, lembrou que os combustíveis fósseis são os grandes responsáveis pelas emissões de carbono no mundo e discorda que o gás deva ser tratado como um combustível para a transição. 

“A crise climática não dá mais margem a retóricas desse tipo, transição energética pressupõe a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, a começar pelo não avanço de novas fronteiras em áreas sensíveis, como a Amazônia. Diante das vantagens competitivas em termos de recursos renováveis, o Brasil vem perdendo uma oportunidade histórica de se consolidar como pioneiro dessa transição”, disse. 

A crise climática não dá mais margem a retóricas desse tipo, transição energética pressupõe a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, a começar pelo não avanço de novas fronteiras em áreas sensíveis, como a Amazônia.

Marcelo Letterman, porta-voz do Greenpeace Brasil
Kretã Kaingang, liderança indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, em protesto contra a exploração de petróleo e gás na Amazônia. Foto: Lucas Landau/Greenpeace

Nicole Oliveira trabalha há 30 anos na defesa dos biomas brasileiros e é presidente do Instituto Arayara, que monitora a exploração de gás e petróleo no Brasil. Em 6 de dezembro, ela esteve pessoalmente em uma reunião com Rodolfo Sabóia, diretor da ANP. A organização pediu para ter direito a um discurso durante o leilão que ocorreu em 13 de dezembro, mas não foi atendida. 

“Elencamos ao Saboia esse ponto, pedindo que ajustasse essa rota da falta de participação da sociedade nos leilões, o que foi negado. Entretanto, ainda que não tenhamos tido a oportunidade de alertar os investidores sobre os problemas sociais, ambientais e climáticos deste leilão, pudemos influenciar empresas como a recém-criada Elysian, que declarou que ela e outras seis empresas, após ter analisado os estudos feitos pela Arayara, deixaram de adquirir blocos em áreas complicadas, como aqueles sobrepostos a territórios quilombolas, ou unidades de conservação”, explicou Nicole. 

O instituto também solicitou a criação de um comitê ou grupo de trabalho, que tenha a participação da sociedade civil e diz que está aguardando um convite. Nicole diz que gás e petróleo não podem ser usados como transição energética.  “Existe uma boa parcela do setor político que trata as novas fronteiras de petróleo e gás como uma forma de ‘financiar’ a transição energética. Isso é uma grande falácia que visa ampliar o tempo de vida desse setor, seguindo com subsídios volumosos”, afirma. 

Existe uma boa parcela do setor político que trata as novas fronteiras de petróleo e gás como uma forma de ‘financiar’ a transição energética. Isso é uma grande falácia que visa ampliar o tempo de vida desse setor, seguindo com subsídios volumosos.

Nicole Oliveira, presidente do Instituto Arayara

A Atem e Eneva foram questionadas sobre os pontos abordados na reportagem, mas não responderam até a data da publicação. 

Atualização

Após a publicação da reportagem na manhã desta quinta-feira (21), a ANP respondeu aos questionamentos, afirmando que houve consulta ao Ibama, Funai, ICMBio, Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente, para a disposição da área marginal e dos blocos de petróleo no leilão. Também afirmou que todas as empresas devem seguir o processo de licenciamento após a compra, que será conduzido por órgão ambiental. Veja a nota enviada pela agência:

“Ao fazer licitações de áreas para exploração e produção de petróleo e gás natural, a ANP atende a determinações do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e segue as diretrizes dos órgãos ambientais. Conforme a Resolução CNPE 17/2017, para a inclusão de blocos/áreas com acumulações marginais em licitações como a Oferta Permanente, a ANP precisa consultar previamente os órgãos ambientais (Ibama, para áreas marítimas, e órgãos ambientais estaduais), além da Funai e do ICMBio, e em seguida submete essas áreas à aprovação conjunta dos Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, disse, em resposta. 

Sobre o posicionamento em relação à transição energética, a ANP informou, em resposta à InfoAmazonia, que está seguindo as diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética, que coloca o gás natural como um combustível de transição energética. Sendo, portanto, uma posição do governo federal. 

Em resposta, a agência confirmou que houve a negativa para o Instituto Arayara ter uma fala durante o leilão. De acordo com ela, isso ocorreu porque as sessões são compostas apenas por empresas interessadas e a sociedade civil poderia participar do período de consultas e audiências públicas.”


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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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