Blocos para exploração de petróleo e gás na Amazônia estão em área de impacto direto de pelo menos 20 terras indígenas; especialistas avaliam que participação do Brasil na conferência do clima foi manchada por acenos aos combustíveis fósseis.

A próxima quarta-feira (13), dia seguinte ao encerramento da 28ª Conferência do Clima da ONU (COP28), será marcada por um megaleilão da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), que pretende distribuir 602 novas áreas de exploração, incluindo 21 blocos na bacia do rio Amazonas. Mais da metade deles (12 blocos) está localizada na área de impacto direto de pelo menos 20 terras indígenas e em zonas de amortecimento: Área composta pelo entorno de uma Unidade de Conservação, onde atividades estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente. de ao menos 15 unidades de conservação, incluindo áreas de uso de territórios quilombolas demarcados.

O anúncio vai na contramão do que tentam os negociadores brasileiros na conferência do clima, que é fazer parte do compromisso mundial de limitar o aquecimento da Terra em 1,5°C e, assim, diminuir ainda mais as emissões de gases do efeito estufa. 

Os blocos ofertados pela ANP na Amazônia são especialmente preocupantes, segundo fontes ouvidas pela InfoAmazonia, por causa da necessidade do uso da técnica chamada de “fracking”, que consiste no fraturamento hidráulico de rochas para extrair combustíveis líquidos e gasosos, e pela proximidade de áreas habitadas por povos tradicionais e de relevante interesse para preservação do bioma. Os 21 poços se estendem da região central do Amazonas ao Pará (veja no mapa abaixo)

Entre os territórios que podem ser afetados pelos projetos previstos no leilão, estão terras indígenas ocupadas pelos povos Mura, Munduruku, Sateré-Mawé e Kaxuyana. Parte dos blocos engloba áreas na bacia do rio Madeira na região de Autazes, próximas a áreas onde já há impasses por uma tentativa de exploração de potássio em terras indígenas.

Áreas de proteção ambiental localizadas nas marges dos rios Negro, Madeira e Tapajós, como a Reserva Extrativista Arapiuns, também podem ser impactadas, assim como áreas de uso comum de comunidades quilombolas na Floresta Nacional de Saracá-Taquera, no Pará.

“Um dos nossos pedidos é que o Brasil deixe de explorar áreas onde há necessidade do fracking porque é uma técnica com alto risco. Na Amazônia, essa área se sobrepõe a terras indígenas, o que agrava ainda mais esses riscos”, afirma Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Internacional Arayara. A organização realizou um estudo independente sobre os principais impactos do leilão, disponíveis no Monitor da Amazônia Livre de Petróleo e Gás

Um dos nossos pedidos é que o Brasil deixe de explorar áreas onde há necessidade do fracking porque é uma técnica com alto risco. Na Amazônia, essa área se sobrepõe a terras indígenas, o que agrava ainda mais esses riscos.

Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Internacional Arayara

O uso do fracking é proibido em outras partes do mundo devido ao risco de contaminação de lençóis freáticos. Os Estados Unidos estudam banir a técnica em todas as suas explorações, medida que já foi tomada em Nova York.

Riscos para a Amazônia e outras regiões

Apelidado de Leilão do Fim do Mundo, o 4º Ciclo de Oferta Permanente da ANP oferece riscos para outras regiões do país, segundo levantamento do Instituto Arayara, com impacto potencial sobre 33 unidades de conservação, como nos principais manguezais da porção sul da APA Costa dos Corais, na costa de Pernambuco e Alagoas, e na região do território de Abrolhos Terra e Mar, entre o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo.

A Arayara ingressou com pelo menos cinco ações civis públicas que pedem a retirada de 77 blocos ofertados no leilão, segundo Oliveira, “todas com amparo legal para que não ocorra a oferta”.

Além dos impactos ambientais, a organização também aponta que não se tem conhecimento de consultas realizadas aos povos indígenas e quilombolas como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura às comunidades tradicionais o direito de serem consultadas sobre qualquer atividade que impactem seus territórios.

As 20 terras indígenas que podem ser impactadas pelo leilão estão num raio de 10 quilômetros das áreas de exploração, no entanto, a depender dos riscos de cada projeto, a área de impacto pode ser ainda maior e incluir mais territórios e unidades de conservação nessa lista.

Parte dos blocos ofertados estão na mesma região onde a empresa Eneva já explora gás natural, na área conhecida como Campo do Azulão. Se contratados, eles vão abrir novas frentes de exploração que podem chegar até Manaus.

A Eneva já é acusada de descumprir a consulta aos povos indígenas que estão na área de impacto do seu empreendimento e teria, inclusive, iniciado a exploração sem apresentar os impactos do empreendimento, como já mostrou a InfoAmazonia.

Unidade de Tratamento de Gás Natural da empresa Eneva S.A., gestora do Campo do Azulão, no Amazonas. Foto: Diulgação/Eneva

A empresa detém 16 blocos para exploração na Amazônia, se destacando como maior empresa de exploração de gás na Amazônia brasileira, passando a Petrobrás, que tem 11 blocos no bioma, todos na foz do rio Amazonas.

Os planos da Agência Nacional de Petróleo para abertura de novas frentes de exploração na Amazônia incluem 451 blocos, 52 já contratados, 92 que estão aptos para serem ofertados e outros 307 em estudos e análises, segundo dados da ANP disponibilizados pelo Instituto Arayara.

Pelo menos 82 empresas estão aptas a apresentarem ofertas no 4º Ciclo. Entre elas, a própria Eneva e a Petrobrás. Nessa rodada, não estão incluídas as áreas da Foz do Amazonas, que recentemente renderam uma queda de braços entre as pastas do Meio Ambiente e a Petrobrás.

Mapa da exploração de petróleo e gás na Amazônia brasileira. São 52 blocos já contratados (cinza), 307 em estudo (laranja) e 92 prontos para oferta (vermelho) de um total de 451 áreas de exploração previstas. Imagem: Reprodução/Arayara

Contradição exposta para o mundo

A audiência pública para conhecer as empresas interessadas no 4º Ciclo está agendada para o dia 13 de novembro e pode selar a grande contradição climática no contexto da participação do Brasil na COP28, que está sendo realizada até 12 de dezembro em Dubai. 

O Brasil levou para a conferência indicadores positivos relacionados ao meio ambiente e ao clima, como a redução de 22% do desmatamento na Amazônia, chegando a uma queda de 50% nas terras indígenas. Além disso, o país exibiu para todo o mundo uma diminuição de 8% das emissões de gases do efeito estufa

No entanto, todos esses avanços ambientais têm sido manchados por anúncios que, desde o início da conferência, indicam um apetite do país em aumentar a produção de petróleo.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante o evento sobre Florestas: Protegendo a Natureza para o Clima, Vidas e Subsistência. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A confirmação de que o Brasil deve integrar a OPEP+, o grupo estendido dos países exportadores de petróleo e que dominam o mercado internacional, anunciado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, apenas um dia antes do presidente Lula (PT) discursar na COP28, rendeu o “prêmio” negativo Fóssil do Dia, destinado à pior atuação climática em cada dia de conferência.

Só as novas áreas do leilão do 4º Ciclo, segundo especialistas, teriam um potencial total de emissões “superiores a um gigatonelada de carbono equivalente na atmosfera (1GtCO2e), o que coloca essas emissões no mesmo nível da meta do Brasil previstas para 2030 [que é de 1,12GtCO2e]”, aponta Vinícius Nora, gerente de oceanos e clima da Arayara.

A grande preocupação para especialistas ouvidos pela reportagem é de que a narrativa usada pelo Brasil nessa primeira semana de COP28 não considerou reduzir a exploração de combustíveis fósseis, pelo contrário, indicou que o país tem planos para aumentar a produção, o que pode anular os ganhos climáticos previstos para esta década.

“Há uma contradição muito exposta, que agora está exposta para o mundo, e eles vão ter que lidar com isso. Espero que de fato consigam corrigir, pelo menos nessa questão do que se pode explorar, mas que não se deve ser explorado. Espero que possam corrigir essa questão”, disse Natalie Unterstell, que participa das discussões na COP28 como presidente do Instituto Talanoa e membro do Painel de Acreditação do Green Climate Fund.

Para Unterstell, ao se vender como vanguarda na geração de energia renovável, com indicadores distantes para as maiores economias do mundo, mas ao mesmo tempo acenando para o mercado do petróleo, o Brasil deixou de fazer uma discussão mais séria sobre a transição energética.

“O sentido que a gente deve perseguir é de completar a nossa transição energética, ou seja, ir para o 100% de eletricidade renovável e que hoje já é meta perseguida por diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento. O Brasil não tem feito isso. Tem se falado que vamos exportar energia limpa para o mundo, mas não necessariamente que vamos chegar a 100%, que vamos completar a transição”, avalia Unterstell.

O sentido que a gente deve perseguir é de completar a nossa transição energética, ou seja, ir para o 100% de eletricidade renovável e que hoje já é meta perseguida por diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento. O Brasil não tem feito isso.

Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa

Em diversas oportunidades da conferência, o Brasil se apresentou com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, repetindo que cerca de 90% das matrizes de eletricidade no país são renováveis. No entanto, Unterstell aponta que, como um todo, 50% da matriz energética do país ainda é baseada praticamente em petróleo e gás.

“A percepção que é passada aqui na COP28 é de falar da coisa boa, que é a eletricidade renovável, e não falar da parte que cabe fazer a transição”, emenda a presidente do Talanoa.

Brasil errou o timing na pauta mais central para o clima, diz ex-presidente da FUNAI

A COP28 praticamente pavimenta as discussões climáticas até a COP30, que será realizada em Belém, em 2025, de acordo com mensagem que esteve presente nos próprios discursos do presidente Lula e das ministras Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas. Ambas chefiaram a delegação brasileira em diferentes momentos do encontro.

“Em vez de unir forças, o mundo trava guerras, alimenta divisões e aprofunda a pobreza e as desigualdades. O caminho desta COP28 à COP30, no Brasil, ditará nosso futuro”, declarou Lula, em seu discurso na abertura da conferência.

O Brasil levou para os Emirados Árabes a maior delegação indígena da história das COPs, prometeu avançar na produção de biocombustíveis e manteve a promessa de zerar o desmatamento até 2030. Em um discurso emocionado na conferência, Lula cedeu seu espaço da fala para a ministra Marina Silva e disse “que a floresta fala por si”.

Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva e o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a reunião do G77+China sobre Mudança do Clima. Foto: Ricardo Stuckert/PR

No entanto, na avaliação  o filósofo Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Funai (1995-1996), quem roubou a cena foi o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que ficou “livre, leve e solto para falar de petróleo sem que houvesse uma coerência, uma articulação de posicionamento oficial brasileira”.

Além de anunciar a entrada do Brasil na OPEP+, Silveira lançou programas de descarbonização que podem ter pouco efeito climáticos, como a regulamentação da captura e estocagem de carbono. O presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates, chegou a confirmar a criação de uma subsidiária da companhia no Oriente Médio, e Lula disse que não foi informado.

“Eu acho que foi muito ruim essa história do Brasil entrar na OPEP, as declarações meio desencontradas do Lula e a falta de uma definição clara do governo brasileiro sobre quais são os horizontes para o uso do petróleo. Essa é uma questão central na história toda, e acho que a sobreposição do tema, lá na COP28, nesse momento, foi muito ruim e anulou politicamente a vantagem tática e importante que o Brasil estava levando com relação ao desmatamento da Amazônia. Foi um erro grave de timing, de estratégia”, avalia Santilli.

Eu acho que foi muito ruim essa história do Brasil entrar na OPEP, as declarações meio desencontradas do Lula e a falta de uma definição clara do governo brasileiro sobre quais são os horizontes para o uso do petróleo. Essa é uma questão central na história toda, e acho que a sobreposição do tema, lá na COP28, nesse momento, foi muito ruim.

Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA)

Para Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, que também está na COP28, o discurso que orbita o setor de petróleo brasileiro se assemelha a outros discursos que tentam justificar, por exemplo, a redução de florestas na Amazônia.

“Esse é o mesmo discurso que a gente ouve para o setor de floresta, aqueles que tentam permitir mais destruição florestal ou diminuir a proteção usam do argumento de que o Brasil tem muita floresta. Uma coisa não autoriza outra. A decisão deveria ser sempre o que o país vai querer para o futuro, como por exemplo, fazer a nossa matriz energética ser mais limpa”, afirma.

É o mesmo discurso que a gente ouve para o setor de floresta, aqueles que tentam permitir mais destruição florestal ou diminuir a proteção usam do argumento de que o Brasil tem muita floresta. Uma coisa não autoriza outra.

Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima

Atualização:

Em nota, a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) informou que o licenciamento ambiental dos empreendimentos é etapa posterior ao leilão e que não é atribuição da agência “fazer avaliação ambiental, mas sim seguir as diretrizes dos órgãos responsáveis” e que as áreas ofertadas no 4º Ciclo seguiram “as conclusões de estudos multidisciplinares de avaliações ambientais de bacias sedimentares”, com base na Resolução nº 17/2017 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

“A mesma resolução prevê que, para as áreas cujos estudos ainda não tenham sido concluídos, as avaliações sobre possíveis restrições ambientais serão sustentadas por manifestação conjunta do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Sendo assim, os órgãos ambientais se manifestam oportunamente, na manifestação conjunta, antes da inclusão das áreas no edital”, informou a agência, apontando ainda que “as empresas que participam têm total conhecimento de como os leilões funcionam, assim como sobre a existência da etapa posterior de licenciamento ambiental para cada atividade a ser realizada”.

O Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática foi procurado, mas até o momento não se manifestou sobre o assunto.

Sobre o autor

Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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4 comments

  1. O governo está certo esse petróleo só dura até 2050, e não é tempo suficiente para acabar com a natureza. Vamos tirar o povo da dessa política.

  2. Queria confiar que eles tenham feito um estudo muito sério e investigativo para poder afirmar que essa exploração será benéfica pois é aquele ditado ” mete marcha que dá?” porém… o que já está em ebulição aguenta mais essa porrada de pressão? sei não…

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