Portaria tornou prioritário o empreendimento do Complexo do Azulão, onde gás natural é explorado no Amazonas. Na prática, as empresas societárias passam a emitir títulos de crédito e compradores podem ter redução no imposto de renda. Eneva, empresa responsável pelo projeto, responde a processo na Justiça movido por lideranças indígenas e comunitárias.

O Ministério de Minas e Energia (MME) concedeu incentivos fiscais ao projeto do Complexo do Campo do Azulão, gerido pela empresa Eneva S.A., que explora gás nos municípios de Silves e Itapiranga, no Amazonas. Em portaria publicada em 30 de novembro, primeiro dia da 28ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP28), a pasta classificou o empreendimento como prioritário, um benefício que pode ser concedido pelo governo federal a empresas de diferentes setores que tenham projetos de infraestrutura. O objetivo é facilitar o financiamento de longo prazo. 

Assim, os societários do Campo do Azulão têm direito a emitir títulos de créditos, chamados de debêntures incentivadas: As debêntures incentivadas são títulos de dívida emitidos por empresas para captar recursos no mercado financeiro, com a particularidade de serem destinadas ao financiamento de projetos específicos em setores como infraestrutura, cultura, esporte, saúde, entre outros. Esses projetos costumam ser de interesse público, e devem contribuir assim para o desenvolvimento econômico e social do país.. Pessoas físicas que adquirem um título da empresa têm isenção do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte. Já as pessoas jurídicas têm a redução da alíquota para 15%. Empresas que tenham projetos de infraestrutura podem solicitar a prioridade por meio de requerimento e devem prestar uma série de informações ao órgão, incluindo atualizações sobre os societários, os recursos obtidos com os títulos e os ajustes nas previsões de execução do projeto. 

Em 19 de maio deste ano, a Eneva S.A perdeu as licenças de operação do empreendimento após a Justiça Federal entender que o projeto desconsiderou a existência de comunidades indígenas da região de Silves. Desde 2019, o cacique Jonas Mura, de aldeia localizada próxima ao Campo do Azulão afetada pela exploração do gás, se posiciona contra a exploração e pede que as comunidades sejam escutadas. As licenças foram recuperadas em apenas um dia, em 20 de maio.

Cacique Jonas Mura pede reparação por danos ambientais Foto: Lucas Landau/350

Em nota, o MME informou que a empresa tem direito aos benefícios, porque cumpre todos os requisitos previstos pela lei, não havendo nenhum impedimento. Questionado sobre o processo envolvendo comunidades indígenas, o MME disse que os licenciamentos ambientais não são de sua responsabilidade e que não há restrições judiciais ou administrativas que limitem as atividades do empreendimento. 

“O processo de licenciamento ambiental tem rito próprio, que independe da atuação do MME, cabendo aos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) o constante monitoramento dos projetos sujeitos ao licenciamento e do cumprimento dos requisitos previstos na legislação e normativos”, afirmou. 

“No momento, não há qualquer impedimento de ordem administrativa ou judicial que impeça o desenvolvimento das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural na concessão de Azulão”, completou. Leia a nota completa aqui. 

Campo do Azulão entrou em funcionamento em 2021. Foto: Eneva/Divulgação

Transição energética adiada?

Hoje, o Campo do Azulão tem cinco societários: Banco BTG Pactual S.A; Eneva Fundo de Investimento em Ações; Dynamo Administração de Recursos Ltda; Atmos Capital Gestão de Recursos Ltda; e Partners Alpha Investments. A maioria das ações (36%) é de livre mercado, ou seja, está em circulação e pode ser vendida na bolsa de valores, adquirida por pessoas físicas ou jurídicas. 

A diretora executiva do Instituto Arayara, Nicole Oliveira, cuja organização está presente na COP28 e monitora os projetos de petróleo e gás na Amazônia, afirma que subsídios como os liberados para a Eneva e outros societários podem adiar a transição energética do país. “Enquanto os governos optarem pelos rios de subsídios às empresas de petróleo e gás, vamos adiando a transição, vendo extremos climáticos se tornarem cotidiano nos jornais. Além disso, é insensato produzir subsídios ao fracking [técnica usada em perfurações de até mais de 3,2km de profundidade] no meio do coração da Amazônia. Se esses planos se concretizarem, certamente teremos consequências para a maior floresta tropical do mundo”, disse. 

Enquanto os governos optarem pelos rios de subsídios às empresas de petróleo e gás, vamos adiando a transição, vendo extremos climáticos se tornarem cotidiano nos jornais.

Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Arayara

O Campo foi citado na programação brasileira da COP28, em 4 de dezembro, na mesa “Adiar ou acelerar o fim do mundo? A ameaça neocolonial do petróleo e do gás na Amazônia”: “o gás está sendo perigosamente colocado como combustível para transição energética, como combustível renovável, verde, sustentável, porque ele teria menos emissão que o petróleo e o diesel. Isso não poderia ser mais falso. O gás ocupa um espaço que as energias renováveis já estão ocupando e poderiam ocupar plenamente. Devemos ter térmicas no Azulão que não vão operar emergencialmente, mas em tempo integral. Quando uma térmica opera em tempo integral, ela coloca a eólica e solar para o fim da fila”, disse Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). 

Devemos ter térmicas no Azulão que não vão operar emergencialmente, mas em tempo integral. Quando uma térmica opera em tempo integral, ela coloca a eólica e solar para o fim da fila.

Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente

De acordo com a portaria, o empreendimento recebeu os benefícios fiscais com base no artigo 2, da lei nº 12.431, de 24 de junho de 2011, que trata sobre a incidência do imposto de renda para projetos de infraestrutura que desejam emitir debêntures incentivadas. O documento também cita outra portaria, a de nº 252, de 17 de junho de 2019, publicada no primeiro ano do governo Bolsonaro pelo ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. O texto incluiu como prioritários os projetos de tratamento e processamento de gás natural. À época, o ministro da Economia era Paulo Guedes, que foi fundador do Banco BTG Pactual. A empresa tem 22% das ações do Campo do Azulão. 

Processo na Justiça

A Eneva, gestora do Campo do Azulão, responde por uma Ação Civil Pública movida pela Associação de Silves Pela Preservação Ambiental (ASPAC). A associação alega que o empreendimento está afetando a vida de populações indígenas e ribeirinhas e que não houve divulgação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA): Documento em que a empresa mostra quais são os riscos para populações atingidas, espécies de animais e plantas que existem no local, além de outros fatores físicos e biológicos para a concessão das licenças de operação. 

Nesta quarta-feira (5), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou relatório denunciando que cinco lideranças estariam sob ameaça. “É uma violação de direito muito grave contra esses povos e também ao meio ambiente. E não ocorre somente da parte da empresa. Está sendo cometida também pelo Estado”, diz Jorge Barros, da CPT. 

Em um evento em Manaus na sexta-feira (1º), o procurador Fernando Merloto, do Ministério Público Federal (MPF-AM), também falou sobre o Campo do Azulão: “o fato mais grave é que a Eneva já está operando e a estratégia é sempre jogar para o órgão licenciador do estado. O governo federal abre as mãos e joga para o estado, que tem toda a pressão do próprio estado para aprovar aquilo e muitas vezes passa por cima mesmo de todo aquele espaço necessário para os próprios povos mesmo e vão tocando mesmo”, disse o procurador.  

Em julho, a InfoAmazonia mostrou que a Eneva obteve suas licenças de operação, em 2019, com base em um EIA de 2013, da antiga gestora do Campo do Azulão, a Petrobrás. Em novembro, também publicou reportagem mostrando que o cacique Jonas Mura entrou no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), e que está fora de seu território após sofrer ameaças. O MPF acompanha o caso.

Protestos da sociedade civil 

A COP28 está sendo marcada por protestos da sociedade civil contra a exploração de petróleo e gás na Amazônia. As organizações apontam principalmente os riscos da exploração na Foz do Amazonas, que o governo federal é favorável. No domingo (3), o Engajamundo e Greenpeace realizaram a intervenção “Boto Alerta: Queremos nadar na água, não no petróleo!”. 

Protesto feito por jovens ativista mostra pessoas e botos sujos de manchas pretas, que simbolizam o petróleo. Foto:@engajamundo

“Esses jovens dão um recado importante: não há futuro virtuoso para a Amazônia com o avanço do petróleo na região. A abertura dessa nova fronteira pode ficar marcada como o pior legado socioambiental do presidente Lula. É preciso que o governo cumpra com o que prometeu e defenda a Amazônia, seus povos e enfrente a crise climática de forma responsável”, afirmou Marcelo Laterman, do Greenpeace. 

Não há futuro virtuoso para a Amazônia com o avanço do petróleo na região. A abertura dessa nova fronteira pode ficar marcada como o pior legado socioambiental do presidente Lula. É preciso que o governo cumpra com o que prometeu e defenda a Amazônia.

Marcelo Laterman, do Greenpeace

Na segunda-feira (4), o país recebeu o ‘antiprêmio’ Fóssil do Dia, por ter entrado na Opep+, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Ele é concedido pela Climate Action Network (CAN), que reúne 1,9 mil organizações, de 130 países diferentes. 

Representante brasileiro recebeu o “Fóssil do dia”, após o país ingressar na Opep+ Foto: Jaré Pinagé/Engajamundo

Lula justificou a entrada na Opep+ afirmando que será apenas observador e que o Brasil deve tentar convencer os outros países a reduzirem o uso do combustível. “Da Opep+, acho importante a gente participar, porque a gente precisa convencer os países que produzem petróleo que eles precisam se preparar para o fim dos combustíveis fósseis”, disse o presidente. 

Para Natalie Unterstell, presidente do  Instituto Talanoa, o Brasil está “queimando o filme” durante a COP28. “Nossos negociadores estão defendendo com unhas e dentes o objetivo de limitar a temperatura em 1,5ºC. Mas queimaram nosso filme com o combo de leilões de mais de 600 blocos de petróleo, a  entrada na Opep+ e potencial anulação dos resultados de mitigação de florestas pela exploração fóssil”, disse. 

Alexandre Prado, líder de Mudanças Climáticas do WWF-Brasil, aponta que o país tem uma postura contraditória e que a premiação foi um marco para mostrar que a imagem do país não é boa. “Embora o Brasil almeje o protagonismo climático, sua postura contraditória ao entrar na OPEP+ reduziu os trunfos angariados com a redução do desmatamento e os planos e políticas climáticas anunciados. A premiação deixa claro que a imagem do Brasil não está tão boa como esperado e é um sinal de alerta para todo o mundo sobre o real comprometimento do país que sediará a COP30, quando todos os países deverão apresentar novos compromissos de corte nas emissões”, disse.

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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