O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), vinculado à Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Amazonas (Sema), autorizou a exploração de gás natural de um empreendimento da Eneva S.A., próximo a territórios indígenas, com base em um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) realizado anos antes por outra empresa.

O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão vinculado à Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Amazonas (Sema), autorizou um empreendimento em 2019 com base em um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) antigo, datado de 2013, feito pela Petrobras. Os processos de licenciamento foram expedidos para a Eneva S.A., que comprou o Campo do Azulão da petrolífera em 2017. 

Entenda o caso:

  • A Petrobras vendeu o Campo Azulão em 2017 para a empresa Eneva S.A.;
  • Em 2019, a Eneva recebeu a primeira licença de instalação e, em 2021, a de operação, para explorar gás natural no Amazonas;
  • Para obter os licenciamentos, a Eneva precisava da autorização do Estado, representado pelo Ipaam;
  • Após a compra, a empresa Eneva não apresentou um novo EIA/RIMA e obteve mesmo assim suas licenças; 
  • Isso ocorreu porque, para liberação do empreendimento, o Ipaam utilizou um estudo apresentado pela Petrobras, em 2013, ou seja, 6 anos antes da Eneva S.A. começar de fato a explorar gás na área;
  • O empreendimento fica localizado próximo a territórios indígenas do povo Mura, que alegam estar perdendo caça e pesca devido aos impactos ambientais;
  • Em entrevista à InfoAmazonia, a assessora técnica do Ipaam Maria do Carmo afirmou que o órgão está seguindo a legislação.
Campo do Azulão entrou em funcionamento em 2021

Na semana passada, a InfoAmazonia mostrou que indígenas do povo Mura entraram com uma Ação Civil Pública pedindo que as licenças da Eneva sejam suspensas, porque o empreendimento estaria causando impacto em seus territórios, que são demarcados. “Os peixes que nós encontrávamos quando íamos pescar não encontramos mais. É tanto barulho na estrada que as nossas caças também estão fugindo”, contou o cacique Jonas Mura.

A reportagem também explicou que, em junho deste ano, a Eneva apresentou um novo EIA, e que ele não estava público no site. O Ipaam informou, posteriormente, que a empresa não apresentou EIA/RIMA antes porque não foi necessário, visto que o órgão teve como base o estudo da Petrobras, datado de 2013.

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é um documento que deve trazer todas as informações para a instalação de um grande empreendimento. Ele é uma análise complexa em que a empresa mostra quais são os riscos: possíveis populações atingidas, espécies de animais e plantas que existem no local, além de outros fatores físicos e biológicos.

Já o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) é um resumo do EIA. Nele, devem estar as principais informações do EIA, mas de uma forma mais clara e objetiva para entendimento do público em geral. Os dois são documentos que precisam estar lado a lado e, juntos, formam o EIA/RIMA. 

Novos e antigos estudos

Além disso, entre uma empresa demonstrar o interesse de explorar uma área e ela começar a exploração, ela precisa receber três licenças: licença prévia, licença de instalação e licença de operação. Cada uma complementa a outra. Na primeira, a empresa apresenta o EIA-RIMA e, depois, vai oferecendo novos estudos.

A Eneva S.A. recebeu licenciamento ambiental para instalação em 2019, e, em 2021, recebeu também para operação. O Ipaam informou à reportagem que utilizou o EIA/RIMA da Petrobras, um documento datado de 2013, para dar continuidade aos procedimentos da nova empresa. De acordo com o órgão, foram solicitados estudos complementares com atualizações de informações populacionais e que não havia a necessidade de um novo EIA/RIMA completo.

“O EIA elaborado serve mesmo sendo de 2013? Serve porque a geologia não muda, os recursos hídricos não mudam, a vegetação não muda. A dinâmica populacional pode ter mudado, aí é que pedimos para atualizar apenas essa parte”, explicou Maria do Carmo, que é assessora técnica da presidência do órgão, dirigido por Juliano Valente. 

Por outro lado, o gestor ambiental Renan Andrade, que trabalha na organização 350, especializada em exploração de petróleo, afirma que nunca viu um órgão utilizar um estudo ambiental feito por uma empresa para conceder licenças para outra empresa. 

“Eu desconheço casos nesse sentido, de pegar um EIA/RIMA anterior, não é um procedimento que seja comum. Também desconheço licenças expedidas sem que o estudo de impacto ambiental seja divulgado antes das audiências públicas. Ali existe questão de exploração, transporte e usina. Isso tudo foi feito à revelia da legislação. Desconheço todos esses procedimentos que a Eneva tem empregado ali, com conveniência do Ipaam”, afirmou. 

Eu desconheço casos nesse sentido, de pegar um EIA/RIMA anterior, não é um procedimento que seja comum. Também desconheço licenças expedidas sem que o estudo de impacto ambiental seja divulgado antes das audiências públicas. Ali existe questão de exploração, transporte e usina. Isso tudo foi feito à revelia da legislação.

Renan Andrade, gestor ambiental

No momento, a Eneva S.A. tem um plano de desenvolvimento que vai até 2043. Em junho deste ano, a empresa apresentou o primeiro EIA/RIMA. Agora, ela quer instalar um gasoduto (rede de tubulação) no Campo do Azulão e, por isso, o Ipaam solicitou um novo EIA/RIMA completo, que foi apresentado em audiência pública e está em análise por uma comissão. No momento, o transporte do gás é feito por meio de caminhões — o gasoduto deve permitir, portanto, que o processo seja feito de maneira mais rápida. 

Cacique Jonas Mura pede reparação por danos ambientais (Foto: Lucas Landau/350)

Segundo a assessora Maria do Carmo, o Ipaam está cumprindo a legislação, porque o empreendimento não está dentro das terras indígenas. “Nós consideramos as terras indígenas criadas e homologadas e a legislação fala em 10 km de distância. Quando georreferenciados em 2022, não encontramos nada neste raio, então estamos respondendo à legislação”, disse. 

Já a socióloga Sila Mesquita, da Rede Grupo de Trabalho Amazônico (Rede GTA), acompanha o caso e afirma que os limites territoriais não deveriam ser exatos quando se fala sobre impacto ambiental em território indígena. “Esse raio que eles dizem que está longe há 5 km a 10 km para os povos indígenas não significa nada. Do ponto de vista antropológico, é importante reconhecer que os povos indígenas têm o território para pesca, para caça, para moradia, tudo é um espaço deles. Não é uma questão técnica, é uma questão social”. 

O caso está judicializado. Em primeira instância, a Justiça determinou que as licenças da Eneva fossem suspensas, mas a empresa conseguiu reverter alegando que isso iria afetar significativamente o fornecimento de energia do estado de Roraima, que recebe a produção do Campo do Azulão.

A reportagem procurou a Petrobras para verificar as informações dadas pelo Ipaam, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.  

‘Não é comum’

O EIA-RIMA apresentado pela Petrobras, em 2013, tinha como objetivo o licenciamento da Usina Termelétrica Azulão, localizada na mesma região, com cinco motogeradores a gás natural, cinco caldeiras de recuperação de calor e um turbogerador a vapor, com utilização de 15 toneladas por hora de gás natural, que deveria ser tratado em uma Unidade de Recebimento e Tratamento de Gás Natural. 

Já o empreendimento atual da Eneva, que utilizou o EIA/RIMA da Petrobras, é diferente. A Agência Nacional de Petróleo (ANP) aprovou um plano que prevê a criação de uma Unidade de Tratamento de Gás Natural, com a presença de um cluster (aglomerados de poços) e uma Unidade de Liquefação de Gás Natural (UGNL). Prevê também a criação de um gasoduto, onde o gás deve ser liquefeito, armazenado e transportado. 

Maria do Carmo, do Ipaam, afirma que, de fato, existem mudanças, mas que elas ocorreram para melhoria tecnológica e redução de impactos. “Ao longo dos tempos, se tenta evoluir essa geração de energia. A termelétrica a óleo é altamente poluidora. É uma diferença de tecnologia para aumentar a geração com menos impacto. Esse impacto também tem um custo para o empreendedor, porque ele vai precisar monitorar e isso tudo tem um custo”, afirmou. 

O advogado Francisco Pinto, que há 20 anos desenvolve trabalhos com a pauta ambiental, afirma que o procedimento não é ilegal, mas que seria necessário uma atualização das informações prestadas e que o ideal seria fazer um novo EIA/RIMA da nova empresa. “O EIA/RIMA serve para que se tenha uma uma noção do grau de impacto social, econômico, cultural, ambiental. Então, subentende-se que o estudo tem que ser do momento. Eu não tenho a menor sombra de dúvida de que não tem como ser a mesma coisa de dez anos atrás. Não é comum e diria que é temerário”, disse.  

O EIA/RIMA serve para que se tenha uma uma noção do grau de impacto social, econômico, cultural, ambiental. Então, subentende-se que o estudo tem que ser do momento. Eu não tenho a menor sombra de dúvida de que não tem como ser a mesma coisa de dez anos atrás.

Francisco Pinto, advogado

A advogada Caroline Santos, que trabalhou na Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas, órgão vinculado ao Ipaam, afirma também que não encontra ilegalidade, mas que o ideal seria fazer um novo estudo. “São quase dez anos, não é comum isso ocorrer, porque existem mudanças. O mais adequado é que tivesse sido feito um novo EIA. Às vezes, muda o curso de um rio, aparece uma espécie diferente, tem uma questão indígena, então o mais certo era fazer um novo EIA”. 

Inquérito civil 

Em maio deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) abriu inquérito para acompanhar o processo de licenciamento da Eneva. A procuradora Ana Carolina Haliuc Bragança usou como justificativa para dar início ao processo as faltas de respostas do Ipaam e do Ibama aos ofícios que foram encaminhados por ela. A reportagem solicitou entrevista com o MPF, mas o órgão informou que as investigações ainda são iniciais, “portanto não considera oportuno falar sobre o assunto neste momento”. 

A reportagem teve acesso a um parecer assinado pela procuradora, também em maio deste ano, em que afirma haver falta de clareza nos procedimentos feitos para os licenciamentos da empresa. O MPF atua acompanhando o caso judicialmente. No parecer, Bragança elenca várias questões que estão em torno desse licenciamento.  

 “O MPF sublinha, particularmente, não haver clareza alguma quanto a quais empreendimentos compõem o chamado ‘Complexo do Azulão’, que envolve a produção (clusters) e escoamento de petróleo e gás natural e a operação de usina termelétrica; quais os procedimentos administrativos de licenciamento para cada um desses empreendimentos; se o EIA que acompanharia o RIMA trazido aos autos refere-se à totalidade desses empreendimentos, ou a alguns deles em específico. Essa obscuridade é notória do comportamento da própria empresa, que, em sua manifestação, afirma que o RIMA dizia respeito a empreendimentos diversos daquele que seria objeto de audiência pública, mas não informa que outros empreendimentos seriam esses”, disse a procuradora.

À época, a procuradora questionava o mesmo que a reportagem da InfoAmazonia: se o EIA/RIMA apresentado em junho era sobre outra fase e, caso seja, como ocorreu o licenciamento da fase anterior. 

“Se a produção por poços é objeto do RIMA, e se há poços com exploração já em andamento no Complexo do Azulão, com licença de operação emitida, como demonstrado pela parte autora, cabe à empresa provar tratar-se de empreendimentos objeto de licenciamento distinto, em que cumpridas devidamente todas as fases do devido processo administrativo”, diz a procuradora. 

O advogado Rafael Moya, que é um dos responsáveis pela ação civil movida contra a Eneva, afirma que os procedimentos são ilegais. “É ilegal o que eles estão fazendo, como você faz um novo empreendimento com estudo antigo, sem algo mais detalhado? Eles estão fazendo uma série de licenciamentos fatiados. Deveria ter sido feito um único EIA/RIMA para o projeto. O impacto é único, é de todo o projeto, não é um impacto por fases, de fase uma, fase duas, fase três. Você olha e diz ‘não é possível que estejam fazendo isso’ “, afirma o advogado. 

Uma audiência de tentativa de conciliação entre as partes deve ser feita nesta sexta-feira (21). O advogado avalia que o caso deve continuar judicializado. 

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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1 comment

  1. Parabéns à Infoamazonia e à jornalista Jullie Pereira. Uma reportagem com conteúdo técnico, com opiniões de quem entende. Enfim, com isenção e profissionalismo.
    Que bom se fosse feito uma matéria no mesmo estilo, abordando a BR 319.
    Já foram feitos vários estudos pelo Ministério dos Transportes, pela UFAM, pelo DNIT, mas ainda paira o mistério:
    porque é tão difícil resolver a questão da recuperação dessa rodovia ?!
    Se não houver uma resposta plausível,nós, os amazonenses, só seremos lembrados mesmo é na hora do voto, e nada mais.

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