Os dez anos de existência da Lei de Acesso à Informação (LAI) não foram suficientes para que cinco em cada seis prefeituras do Amazonas cumprissem a legislação que regulamenta o direito ao acesso, por qualquer cidadão, a dados de interesse público. 

Esse é o resultado do levantamento realizado pelo projeto Amazonas: mentira tem preço. De julho a setembro de 2021, a reportagem solicitou às prefeituras amazonenses alguns dados sobre a aplicação de recursos em publicidade institucional. Em tese, bastaria entrar no site de cada órgão público e encontrar o caminho para fazer o pedido, como determina a lei federal 12.527, em vigor desde 2012. A realidade foi outra. 

Dos 62 municípios que compõem o Amazonas, 16% responderam. São eles: Atalaia do Norte, Carauari, Coari, Eirunepé, Humaitá, Manaus, Maués, Parintins, Silves, Uarini. Os demais não deram retorno, mesmo depois de meses do primeiro contato. A legislação determina que os pedidos sejam respondidos em até 20 dias, prorrogáveis por mais 10 dias, em caso de apresentação de justificativa.  

Apesar de enviar a resposta, as prefeituras de Coari e Humaitá não respeitaram o prazo estabelecido pela LAI de, no máximo, um mês para atender às solicitações. Atalaia do Norte respondeu apenas parcialmente o que foi pedido e Manaus respondeu sem atender às especificações da solicitação. 

À época, nos municípios de Amaturá, Boca do Acre, Lábrea e Nhamundá nem sequer foi possível fazer o pedido. 

O primeiro passo foi a tentativa pelo site da prefeitura. Naquelas em que não havia o local destinado para o pedido ou o processo de solicitação não era completado, a equipe buscou contato por email e por telefone, mas não foi possível formalizar a solicitação ou não houve resposta.

Brenda Nieiworowski
Brenda Nierovski

Também houve casos de respostas que não atendiam integralmente o que foi pedido: por exemplo, foi informado o valor gasto com propaganda sem especificar quais empresas/CNPJs receberam os recursos, sendo que a necessidade desse dado estava expressa na pergunta. Contudo, para efeito de avaliação, foi considerado que, mesmo desrespeitando algumas regras, atenderam parcialmente à legislação. 

A LAI foi criada para garantir transparência na gestão pública e o acesso à informação de interesse coletivo. Qualquer pessoa, sem apresentar justificativa, pode, por exemplo, solicitar dados sobre os gastos e o funcionamento de instituições municipais, estaduais e federais. Segundo a Controladoria-Geral da União (CGU), a LAI é capaz de trazer benefícios, como a prevenção da corrupção, a melhoria da gestão pública e das tomadas de decisão e o fortalecimento da democracia.

“Uma década depois da promulgação da LAI é um absurdo que ainda existam estados e capitais sem um e-SIC (Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão) completo”, afirma Maria Vitória Ramos, diretora da agência de dados Fiquem Sabendo

O e-SIC permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, encaminhe pedidos de acesso à informação para órgãos e entidades do Poder Executivo Estadual. “A justificativa da ausência de orçamento e pessoal de tecnologia da informação também já não existe mais, desde que a CGU introduziu plataformas gratuitas  para qualquer estado ou município aderir”, afirma Maria Vitória.

Ela se refere ao FalaBR, uma plataforma on-line para disponibilizar dados e consultas públicas disponível para governos das esferas municipal e estadual e órgãos dos demais poderes desde 2020.

Sites com página do pedido fora do ar

Para fazer o pedido via LAI, é preciso acessar o Sistema Eletrônico de Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), espaço reservado no site do órgão público para encaminhar solicitações de documentos e dados. Em 34 cidades, o e-SIC apresentou a mesma página de erro (confira a imagem abaixo), deixando quem faz o pedido sem saber se a operação foi concluída e sem um número de protocolo.

Captura de Tela: Transparência Municipal de Japurá
Erro na tentativa de acesso pelo e-SIC realizada em 25 de julho de 2021 na página de Japurá (AM)

Todas as 34 cidades têm os sites administrados pela Associação Amazonense de Municípios (AAM), registrada em nome de Jair Aguiar Souto (MDB), prefeito de Manaquiri, localizada na região metropolitana de Manaus. Souto é também vice-presidente representante da Região Norte na Confederação Nacional dos Municípios. 

A reportagem procurou a AAM pela primeira vez em 19 de julho por telefone e demonstrou o problema ao funcionário do núcleo técnico da entidade. Por telefone, o funcionário admitiu o erro e, em trocas de e-mails nos meses posteriores, informou que o setor responsável estava ciente do problema, mas que não tinha uma resposta. 

Procurada diversas vezes por email e telefone desde então, a AAM não retornou. Os e-SICs seguiram fora do ar até a última consulta, em fevereiro deste ano. 

Em março, houve uma nova tentativa, desta vez pela assessoria de imprensa, pedindo um posicionamento sobre os custos operacionais do sistema que não funciona. Contudo, a justificativa foi de que os gestores estavam indisponíveis, por causa de outros compromissos. 

No dia 18 de março, a AAM respondeu por email a tentativa de contato feita pela reportagem, mas não apresentou nenhuma informação sobre valores ou solução para os problemas apresentados.“Informo-vos que está funcionando normalmente a plataforma do Portal da Transparência dos Municípios do Estado do Amazonas seguindo os parâmetros da Lei Complementar nº 131/2009 e Lei Federal nº 12.527/2011.”

Alegou, ainda, que o problema do acesso poderia estar no computador. “Sugerimos que leve o equipamento para avaliação de um profissional de tecnologia para avaliar se não por ventura seja um problema no aparelho ou infecção por algum software malicioso”. A equipe provou que o computador estava conectado e funcionando em datas distintas. A AAM não retornou.  

Divulgação: Associação Amazonense de Municípios
Atualmente, 48 cidades no Amazonas tem e-SIC via AAM

A AAM não foi a única a silenciar sem resolver o problema, à época. A reportagem contatou as 34 prefeituras, por e-mail e telefone, informando o erro e solicitando a resposta. Quatro responderam o e-mail enviado diretamente: Eirunepé, Maués, Silves e Uarini. Até início de fevereiro, as páginas continuavam com o problema. Hoje, data que a reportagem foi publicada, o sistema deles está funcionando normalmente.

O levantamento encontrou outros problemas que dificultam a realização do pedido de LAI, como impossibilidade de acessar o sistema depois do cadastro, ausência do protocolo, que comprove que o pedido foi computado e será avaliado, e de formas para pedir recurso.  

Quem se depara com esses impedimentos e insiste, tentando contato por e-mail, por exemplo, pode ainda ter que encarar barreiras impostas pelos funcionários responsáveis pelo Portal da Transparência das cidades, que, em tese, deveriam estar cientes do funcionamento da LAI. 

Foi o caso de um pedido feito ao funcionário responsável pela prefeitura de Atalaia do Norte. Após a solicitação citando a LAI, o servidor pediu, por e-mail, “dados complementares da requerida” (pessoa que fez a solicitação) para que pudessem responder à solicitação “com autenticidade e respaldo jurídico”.

Reprodução: e-mail do Portal da Transparência de Atalaia do Norte

De acordo com a lei, o cidadão não é obrigado a fornecer informações pessoais para fazer um pedido e obter resposta via LAI. Está previsto na legislação que a solicitação pode ser feita de modo que os dados pessoais não precisem ser disponibilizados ao servidor que responderá o pedido.

Transparência das prefeituras do Amazonas na UTI

Das 62 cidades do Amazonas, 60  têm prefeituras com grau de transparência deficiente ou crítico, segundo o Ranking de Transparência do Ministério Público de Contas do Amazonas. Criado em 2020, o ranking monitora o grau de acesso à informação que os cidadãos têm das prefeituras. Apenas Tefé foi classificado com grau mediano; e Manaus, elevado. 

Em Tefé, porém, o pedido da reportagem não foi respondido, o que aponta para limitações do ranking. Uma delas é não verificar se o e-SIC de cada prefeitura funciona de fato. Ou, por exemplo, se o cidadão que solicitar uma informação pessoalmente terá seu pedido atendido e se esse atendimento cumpre os prazos previstos em lei.

A deficiência do ranking é clara ao verificar como as duas cidades mais bem avaliadas retornaram os pedidos feitos pela reportagem – Tefé não respondeu e Manaus respondeu sem atender às especificações da solicitação. 

Em entrevista, Evelyn Freire de Carvalho, procuradora do Ministério Público de Contas do Amazonas e responsável pelo ranking, reconheceu as limitações da classificação. Segundo Evelyn, por falta de equipe. Hoje, diz, um profissional na coordenadoria está dedicado exclusivamente ao ranking. “Falta mão de obra para isso”.

Uma forma de suprir essa falta, segundo a procuradora, é “fazendo controle social”. Quando o cidadão busca informação ou tenta fazer qualquer tipo de controle e identifica um problema, ele pode denunciar tanto ao Ministério Público de Contas como ao Tribunal de Contas. A partir disso, os órgãos podem agir para averiguar a situação.

Cidades amazonenses não cumprem pedidos da Procuradoria da República no Amazonas e do Ministério Público Federal

Por descumprimento da LAI, a Procuradoria da República no Amazonas informou, por nota, que em 2016 ingressou com uma ação civil pública e uma de improbidade administrativa contra as cidades Manicoré e Humaitá, respectivamente.

No ano seguinte,  denunciou o então prefeito de Careiro, Hamilton Alves Villar (PMDB), por não divulgar informações sobre orçamento e prestações de contas e gestão fiscal durante o seu mandato. Preso naquele mesmo ano, Villar foi condenado em 2018 a 27 anos de prisão pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) por desvio de verba da prefeitura e fraude em licitações

Em 2020, o Ministério Público do Amazonas ajuizou ação civil pública contra a prefeitura de Nhamundá pedindo que a Justiça determinasse a implantação do Portal de Transparência. 

Entre julho e agosto de 2021, época em que as solicitações de informação foram feitas pelo projeto Amazonas: mentira tem preço, o município continuava sem a página web. Recentemente, a prefeitura abriu o e-SIC e um portal com alguns dados sobre os recursos e gastos da cidade a partir da infraestrutura da Controladoria-Geral da União.  

Procurada novamente ao final da apuração sobre o descumprimento da LAI nos demais municípios citados, a Procuradoria Regional do Amazonas não respondeu até o momento desta publicação.

Outro lado

A reportagem procurou os poderes executivos municipais em busca de explicações sobre o descumprimento da LAI, seja pela impossibilidade de fazer os pedidos, seja pelas respostas não encaminhadas. O questionamento incluía tanto o conteúdo solicitado (os gastos com propaganda institucional) como o posicionamento pela desobediência à lei de acesso. 

Contudo, as dificuldades começaram para conseguir contatos. Em sites de várias prefeituras, não havia formas de contato, ou os endereços de email e os números de telefone indicados não foram suficientes para estabelecer comunicação. Mesmo a procura em buscadores da internet ou até mesmo com moradores locais não resultou em meios possíveis de contato. O espaço segue aberto, caso os governos municipais das cidades citadas desejem se pronunciar. 

Mesmo em municípios em que o pedido de explicações foi efetivado, houve silêncio. É o caso da prefeitura de Manaus, que não retornou até o fechamento desta reportagem. 

Em contato telefônico com a prefeitura de Atalaia do Norte, um funcionário alegou dificuldades com computadores e acesso à internet, e também para conseguir verificar documentos referentes à gestão anterior. Já a prefeitura de Eirunepé informou que estava “em fase de aprimoramento para disponibilização dos arquivos convertidos em diversos formatos”. 

Durante o período de apuração desta reportagem, a cidade de Amaturá, até então sem portal da transparência, passou a integrar a AAM. E a cidade de Nhamundá abriu um site.

*Colaboraram Dirce Quintino e Jéssica Botelho

Transparência e acesso à informação: onde conseguir dados públicos?

A Lei de Acesso à Informação é uma forma de empoderar a população. Serve para que qualquer pessoa possa conseguir dados de órgãos públicos, sem dar justificativas. A legislação foi aprovada no Brasil há 10 anos, após muita pressão social, e décadas depois de outros países estabelecerem seus mecanismos de controle popular.

É uma forma de colocar em prática o que diz a Constituição, que determina que todo cidadão tem direito a receber informações. Mas antes de 2011, não havia clareza sobre como essa entrega seria nem quem seria responsabilizado caso essa premissa não fosse cumprida. 

Assim, um morador passa a ter um canal para cobrar explicações para o poder público. Ou um servidor que sabe de algo errado pode juntar documentos e outras provas para embasar uma denúncia. Essas são apenas algumas das vantagens da LAI, que é um instrumento para aumentar a transparência da gestão governamental. 

Para isso acontecer, é preciso que os caminhos estejam acessíveis e que os pedidos feitos sejam efetivamente respondidos. O correto seria que as solicitações pudessem ser feitas pelos sites dos órgãos públicos – por meio de um cadastro simples, sem burocracias ou barreiras – e que o retorno fosse rápido e preciso. 

Caso tenha problemas com a LAI, comunique a Controladoria-Geral da União (CGU). Esse órgão público federal acompanha a execução da LAI e tem um painel com dados sobre a questão. 

Para saber mais sobre esse importante direito, confira estas iniciativas que monitoram o funcionamento da legislação.

O site Achados e Pedidos é uma iniciativa de várias organizações, como a Transparência Brasil e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Além de relatos sobre o funcionamento, há um repositório de solicitações feitas – o que você procura pode já ter sido respondido. 
O site Brasil.io é um repositório de dados públicos disponibilizados em formato acessível. 
A Fiquem Sabendo é uma agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI). Ela tem a  newsletter Don’t LAI to me e recentemente lançou o WikiLai, com várias dicas, inclusive modelos de pedidos. 
O Foco na Amazônia é um projeto do Política Por Inteiro que  monitora os poderes executivo e legislativo nos estados da Amazônia Legal diariamente.
O PlenaMata, iniciativa do InfoAmazonia, do MapBiomas, e da Natura e do hacklab contra o desmatamento, reúne dados, análises, reportagens e iniciativas sobre a preservação da floresta. 

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