O Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração denuncia lobby de entidades ligadas a empresas de mineração e garimpos para aprovação, a toque de caixa, do Projeto de Lei (PL) 191 que abre terras indígenas para exploração de minérios e atividades do agronegócio. A proximidade do presidente Jair Bolsonaro (PL) com mineradoras e garimpeiros está descrita em um relatório inédito, publicado nesta sexta-feira, 4, em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O relatório “Quem é Quem no debate sobre Mineração em Terras Indígenas” traça um histórico de perseguição aos povos indígenas e mostra como entidades e representantes de empresários e grandes garimpeiros se articularam para excluir suas lideranças e outras organizações do debate sobre mineração em território indígena.
Esta semana, o presidente foi buscar na guerra da Ucrânia o argumento que faltava. Em tom de alarde, anunciou nas redes sociais que o agronegócio brasileiro corre o risco de ficar sem fertilizantes, citando especialmente o potássio e as reservas que estão nos territórios indígenas como argumento para aprovação da proposta no Congresso. Por trás do pretexto encontrado por Bolsonaro, estão fiéis e históricos defensores dessa pauta e uma intensa agenda de encontros.
Como efeito das declarações recentes do presidente, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), iniciou uma espécie de calvário atrás das171 assinaturas necessárias para aprovar um requerimento de urgência e levar o PL 191 direto ao plenário, sem passar por debate em comissões ou realização de audiências públicas, como manda o regimento interno.
“Se o líder está coletando assinaturas é porque já tem algo costurado nos bastidores. A argumentação é totalmente frágil, essa necessidade da celeridade da votação por conta da guerra da Rússia e Ucrânia é uma grande falácia”, afirma Jarbas Vieira, do MAM – Movimento pela Soberania Popular na Mineração, uma das sete organizações que integra o Comitê Frente à Mineração.
O relatório denuncia a relação histórica da família Bolsonaro com a mineração e a questão indígena, e como o assunto vem pautando sua vida política desde o passado garimpeiro, passando por sua atuação no Congresso até a chegada à Presidência da República.
Ainda na campanha eleitoral de 2018 para presidente, segundo o documento, representantes da multinacional britânica Anglo American estiveram entre os seus “parceiros estratégicos”, reunidos pelo embaixador do Reino Unido no Brasil, Vijay Rangarajan, em encontros com Bolsonaro e os generais Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e o vice-presidente Hamilton Mourão. O próprio Bolsonaro prometeu aos garimpeiros de Serra Pelada que buscará uma “alternativa” para o garimpo que foi fechado em 1992. “Se tiver amparo legal eu coloco as Forças Armadas lá”, disse na época.
Logo no início do mandato, o governo indicou que levaria a cabo a regulamentação da mineração em terras indígenas e um dos primeiros a levantar essa bandeira para as gigantes do setor foi o ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia. Em março de 2019, o ministro participou de um dos maiores eventos internacionais do setor mineral, a Convenção Anual do Prospectors & Developers Association of Canada (PDAC). Na ocasião, afirmou que a administração de Bolsonaro pretendia avaliar “a possibilidade de ampliar o acesso aos recursos minerais existentes em áreas restritivas à mineração, como terras indígenas e faixas de fronteira”.
Bento Albuquerque também recebeu representantes empresariais e do garimpo, além de parlamentares, prefeitos e vereadores pró-garimpo em agendas em Brasília. Assim como Albuquerque, o juiz federal, Alexandre Vidigal, à frente da Secretaria De Geologia, Mineração e Transformação Mineral (SGM), pasta estratégica para o setor, também manteve uma agenda de encontros com as principais entidades da mineração ao longo de 2019, como o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), a Associação Brasileira do Alumínio (Abal), a Associação Brasileira de Cimento Portland, a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral e Mineração (ABPM) e a Agência para o Desenvolvimento e Inovação do Setor Mineral Brasileiro (ADIMB).
Estes encontros gestaram a minuta do PL 191, que foi apresentado por Albuquerque e pelo então ministro da Justiça na época, Sérgio Moro. O esboço da proposta foi elaborado com a participação da Funai, do Ministério de Minas e Energia (MME), do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), entre outros órgãos, como Casa Civil e o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
O Ibram, que representa as principais mineradoras no país, como Anglo, Vale e Votorantim, foi uma das entidades que mais ganhou espaço na SGM e no Congresso, justamente quando as discussões sobre mineração em terras indígenas esquentaram.
A SGM também se reuniu com entidades ligadas ao garimpo, como a Associação Nacional do Ouro (Anoro) e a Associação Brasileira de Metais Preciosos (Abramp), além de encontros com garimpeiros acompanhados por figuras políticas – entre eles, Telmário Mota (PDT-RR) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA), respectivamente, atual e ex-senadores.
Outra entidade que também ganhou espaço no governo de Bolsonaro foi o Instituto do Desenvolvimento da Mineração (IDM), organização que se apresenta como órgão técnico e científico da Frente Parlamentar da Mineração.
O potássio suspenso pela Justiça
O relatório do Comitê Frente à Mineração revela que a maioria dos encontros com as entidades do setor mineral em 2019 debateu o projeto para mineração de potássio na Amazônia, que é liderado pela mineradora canadense Brazil Potash, controladora da Potássio do Brasil.
Ao abordar a possível falta de fertilizantes por conta da Guerra da Ucrânia, Bolsonaro compartilhou um vídeo dele de 2016 onde já falava da proposta da canadense na Terra Indígena Jauary.
O projeto tem como principal financiador o banco canadense Forbes & Manhattan, que se aproximou do governo Bolsonaro para erguer um complexo de exploração de potássio no município de Autazes, a 110 km de Manaus (AM), onde vivem 14 mil indígenas da etnia Mura, e que ocupam 44 aldeias na região. O projeto ganhou atenção especial do governo, e as tratativas são negociadas diretamente com o vice-presidente Hamilton Mourão.
O projeto de potássio em Autazes está suspenso desde 2017 por um acordo firmado na Justiça Federal do Amazonas que obriga a consulta livre, prévia e informada da comunidade indígena. Mesmo com o licenciamento suspenso, sem garantias reais de que a exploração seria possível, Mourão manteve agendas com representantes do grupo canadense, como mostrou reportagem da Agência Pública.
Em maio de 2021, o InfoAmazonia e o Diálogo Chino revelaram que a Potássio do Brasil descumpriu as decisões da Justiça brasileira e omitiu informações de investidores para abrir capital do projeto do potássio em Autazes na Bolsa Americana. No apagar das luzes de 2020, a Potássio do Brasil firmou um acordo com a construtora chinesa CITIC, em contrato de US$ 1,94 bilhão para as obras do projeto de extração do minério, mesmo com o processo de licenciamento suspenso.Na época, o procurador da República Fernando Soave, informou ao InfoAmazonia que a mineradora perfurou a área em Autazes sem autorização federal.
O próprio Mourão passou a divulgar a necessidade do Brasil ser autossuficiente na produção de Potássio, o que aumentou ainda mais a pressão sobre as comunidades indígenas no entorno da área requerida pela canadense. Em julho de 2020, ao ser cobrado por investidores estrangeiros sobre a preservação dos direitos das comunidades indígenas, o general defendeu que o indígena deve ser “mais integrado” à sociedade.
O Projeto Potássio Autazes, que prevê investimentos da ordem de US$ 2,3 bilhões, pretende extrair no total 770 milhões de toneladas de potássio, minério essencial na produção de fertilizantes. O mega empreendimento inclui uma mina de quase mil metros de profundidade e oito mil metros de comprimento, uma usina para a produção do insumo agrícola e a infraestrutura do entorno, como uma estrada e um porto na bacia do rio Madeira. Mais de um terço da área do complexo se sobrepõe à terra indígena Jauary, uma área de 45 mil hectares.
O Forbes & Manhattan também está por trás do projeto da mineradora Belo Sun para implantação da maior mina de ouro a céu aberto na Volta Grande do Xingu (PA). Um projeto que prevê uma barragem de rejeitos maior que a da Vale rompida em Mariana (MG). O projeto é alvo de sete ações pedindo a nulidade de licenças e a suspensão do Licenciamento Ambiental. Pelo menos 11 requerimentos da Belo Sun impactam as terras indígenas Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá.
Em abril de 2021, durante uma live organizada pela Associação Comercial e Empresarial de Minas (ACMinas), o secretário Alexandre Vidigal, da SGM, enalteceu o Canadá como um exemplo a ser seguido na mineração em terras indígenas. No encontro, o CEO brasileiro da Fort McKay First Nation apresentou as formas de atuação da empresa naqueles territórios no país da América do Norte.
Construindo a narrativa
A mobilização realizada por conta da efeméride do Dia do Índio de 2021 foi mais um exemplo de como essa articulação se desenvolve. Nesse dia, 130 indígenas, segundo os pesquisadores, aliciados pelo movimento pró-garimpo, viajaram até Brasília para endossar o PL 191. Entre os apoiadores financeiros estava Roberto Katsuda, representante da Hyundai no Brasil e revendedor de máquinas pesadas para garimpagem.
José Altino Machado, liderança histórica do garimpo, e Dirceu Santos Frederico Sobrinho, presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro) e dono das empresas D’Gold, Mineradora Ouro Roxo e F. D’Gold – uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), também aparecem como articuladores no debate sobre a mineração em terras indígenas. Em 2019, os dois se reuniram em encontros com o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni para apresentar “propostas de soluções para a questão da regularização fundiária e da exploração mineral em terras indígenas”.
Em 2018, Sobrinho candidatou-se a 1º suplente do ex-senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), mas foi derrotado. Na época, declarou uma fortuna de R$ 20,3 milhões. O empresário do garimpo acumula denúncias na Justiça por “esquentar” ouro ilegal no Pará, na região onde as terras dos povos Mundurukus são invadidas por garimpos ilegais.
Sobrinho também é réu em processo por danos ambientais em Itaituba (PA) e já foi acusado de lavagem de dinheiro com ouro retirado de garimpos ilegais em unidade de conservação. O empresário é figura cativa nas reuniões do Congresso sobre mineração.
Outro nome importante é o do geólogo, ex-deputado federal e ex-superintendente do antigo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM), Antônio da Justa Feijão. Preso em 2017, acusado de chefiar um esquema de venda de licenças de mineração no Amapá, Feijão é figura conhecida nas reuniões entre garimpeiros e membros do alto escalão do Executivo e do Legislativo. Em setembro de 2019 esteve no encontro fora da agenda com o ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (Dem-AP), ao lado de Altino Machado, Dirceu Sobrinho e Flexa Ribeiro.
Em março de 2021, Bolsonaro recebeu João Sidnei Gessi, sócio do ex-deputado e cantor Sérgio Reis (PRB-SP) na Cooperativa Kayapó Ltda, acompanhado de indígenas Kayapó acusados de serem aliciados para defender publicamente a exploração de suas terras. Em um áudio vazado após o encontro, Gessi, que é madeireiro, pressionou os representantes indígenas diante do chefe do Poder Executivo: “não tenho mais tempo para perder com fofoca […]. Estamos envolvendo o presidente da República, querendo ajudar, ministros, eu tenho que escutar essas ladainhas de cooperativa? A paciência acabou. Querem ficar com ONG? Maravilha, fiquem com essas malditas ONGs, só que lembrem-se: estão dentro do Brasil. General Mourão, Polícia Federal, vão para cima”, disse aos indígenas.
“Essa mobilização para aliciar indígenas cumpre um papel fundamental na construção de certa legitimidade da liberação do garimpo em terras indígenas. Forjado a partir do desprezo a qualquer processo de seleção representativa pelas comunidades, o aliciamento é realizado não só em virtude das promessas de enriquecimento econômico, mas do oferecimento de possibilidades de ascensão política dentro de associações”, destacam as organizações no relatório.
Em 2020, ao voltar à Convenção Anual da mineração no Canadá, uma delegação formada por entidades empresariais como a Adimb, Ibram e a ABPM, ao lado de órgãos governamentais como a SGM e ANM e da mineradora Nexa Resources produziu um documento para o “Brazilian Mining Day . O texto destacava o Brasil como um país com “muito a ser explorado, uma verdadeira arca do tesouro esperando ser aberta”.
O relatório também destaca a participação do ex-ministro Ricardo Salles, Meio Ambiente, que se reuniu com garimpeiros no começo de agosto de 2020 durante uma operação de fiscalização em garimpos no Pará. Um dia após a visita a Jacareacanga (PA), o ex-ministro mobilizou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para levar garimpeiros ao seu encontro em Brasília. O MPF abriu uma investigação para apurar o vazamento da operação e o transporte ilegal de garimpeiros ao Distrito Federal.
Outra estratégia do governo federal, segundo o relatório, é o lobby político que se criou para que o Brasil se retire da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e que obriga a consulta livre, prévia e informada das comunidades afetadas por grandes projetos como os de mineração e infraestrutura. A medida tem apoio da bancada do agronegócio.
Mineração vai aumentar desmatamento em 20%
O Brasil tem atualmente 725 terras indígenas em diferentes fases de processo demarcatório, que ocupam uma extensão de 851 milhões de hectares, ou 13,8% do território brasileiro, segundo o Instituto Socioambiental. Essas áreas são, em sua grande maioria, preservadas e sem exploração intensiva. Do ponto de vista da mineração, com exceção de poucas localidades onde existe mineração ou garimpo, os subsolos das terras indígenas continuam nada ou pouco conhecidos para fins de extração.
Atualmente estão registrados na ANM 2.621 requerimentos para mineração em terras indígenas. Os yanomamis e os kayapós são os povos mais atingidos por esses pedidos, segundo mostram dados do projeto Amazônia Minada.
“Os povos indígenas, se aprovado o PL como está proposto, apenas poderão aceitar os projetos mineradores, uma vez que não lhes consta direito a veto sobre a instalação de empreendimento em suas áreas. Isso é, não se considerou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário”, destacam os pesquisadores.
Do ponto de vista ambiental, a legalização da extração mineral intensificaria o desmatamento na Amazônia com um padrão de incremento do desmatamento numa proporção doze vezes maior que a área da lavra. Segundo o relatório, a abertura da mineração industrial em TIs elevará em 863 mil km2, ou em 20%, o desmatamento, afetando 222 grupos indígenas.
Os territórios dos povos Kayapó, Munduruku e Yanomami foram os que apresentaram maior área desmatada, respectivamente, 7,6 mil hectares, 1,6 mil hectares e 414 hectares no mesmo ano. Essas terras são justamente as que enfrentam os piores conflitos com garimpeiros e grandes mineradoras.
“A regularização vem sendo colocada como a solução para acabar com a ilegalidade e incorporar práticas adequadas de extração seja pelo garimpo ou pela mineração. Contudo, a afirmação não tem comprovação empírica, uma vez que a possibilidade de regularização ou a presença de mineradoras não exclui a existência de atividades ilegais”, destaca o relatório.
Vim pesquisar sobre uma possível exploração de do cloreto de potássio, cai aqui após ler a reportagem do ano passado sobre a mineradora. Parabéns pela coragem e pelo trabalho. É impressionante como as pessoas tratam como se o índio não tivessem direito a terra que é deles de direito. As pressões serão enormes agora.
Excelente matéria. Acredito na viabilidade da convivência do garimpo artesanal com as comunidades indígenas demarcadas. Existem as dificuldades operacionais ambientais e de gestão de pessoas, mas a simples proibição não é a forma adequada de resolver o problema, já que há que se considerar a limitação do aparato estatal para fazer valer a lei…