Dos ministros, nove votaram contra e um a favor da tese que limitava o direito à demarcação de terras indígenas baseada na exigência de ocupação dos territórios em 5 de outubro de 1988. Congresso aposta no avanço da PEC 48, que busca inserir o marco temporal diretamente na Constituição.

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria, nesta quinta-feira (18), para derrubar a tese do marco temporal, ao declarar inconstitucionais trechos da Lei 14.701/2023. Dos ministros, nove votaram contra e um a favor da tese que limitava o direito à demarcação de terras indígenas baseada na exigência de ocupação dos territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

A votação iniciou na segunda-feira (15) e o ministro André Mendonça foi o único a divergir, ao defender a validade do marco temporal e sustentar que o critério deveria ser mantido em respeito à decisão do Congresso Nacional. Ele acompanhou os demais pontos do voto do relator Gilmar Mendes, como oferta de terras alternativas como compensação aos indígenas em “casos de utilidade pública”  – veja abaixo como votou cada ministro.

A decisão pela derrubada do marco temporal ocorre em meio a uma disputa institucional entre o Congresso e o STF. No último dia 9 de dezembro, o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 48, de 2023, que busca instituir o marco temporal na Constituição. Agora, a proposta segue para a Câmara dos Deputados.

A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), formada por 50 senadores e 303 deputados federais, já sinalizou que deve seguir com os trabalhos para que a tramitação da PEC seja concluída, mesmo com a rejeição da tese no Supremo. “A FPA manifesta preocupação com a retirada do trecho da lei que trata diretamente do Marco Temporal. Esse ponto é central para dar previsibilidade e evitar disputas fundiárias no país”, argumentou.

Para Júnior Nicácio, do povo Wapichana, advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e representante do WWF-Brasil como amicus curiae: Uma pessoa, entidade ou instituição que não é parte do processo, mas é admitida pelo tribunal para oferecer informações técnicas, especializadas ou representativas que possam ajudar no julgamento de questões relevantes na ação do STF, o cenário é desafiador, principalmente devido à forte presença da bancada ruralista no Congresso, que enxerga os territórios indígenas como “improdutivos”. Ele já adiantou que, caso a PEC seja aprovada, organizações indígenas irão judicializar no STF.

“O Congresso ali é muito forte nesses segmentos, inclusive o agronegócio, que tem interesse nos territórios. Então o lobby deles, o de empresários, tanto do agronegócio quanto da mineração, tem influência nos deputados, como tiveram no Senado”, disse.

O lobby deles, o de empresários, tanto do agronegócio quanto da mineração, tem influência nos deputados, como tiveram no Senado.

Júnior Nicácio, do povo Wapichana, advogado do Conselho Indígena de Roraima.
Júnior Nicácio, do povo Wapichana, participou de sustentação oral no plenário do STF. Foto: Antonio Augusto/STF Crédito: Antonio Augusto

Mesmo com a derrubada do trecho do marco temporal, organizações indígenas avaliam que outros pontos dos votos mantêm fragilidades que podem gerar insegurança jurídica e impactar processos de demarcação de terras indígenas. Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) avaliou que os trechos “continuam ameaçando o direito originário” dos povos indígenas.

Para Nicácio, a derrubada do marco é uma “vitória importante”, mas o voto do relator ainda gera preocupação. Um dos pontos críticos é o prazo de 10 anos para finalizar as demarcações.

“Depende muito da boa vontade do Executivo. Às vezes, não há recursos suficientes para avançar no processo de demarcação e homologação do território. Além disso, depende bastante do contexto político e da situação envolvida porque pode ser que um governo muito anti-indígena, como já tivemos antes com o governo Bolsonaro”, avaliou.

Depende bastante do contexto político e da situação envolvida porque pode ser que um governo muito anti-indígena, como já tivemos antes com o governo Bolsonaro

Júnior Nicácio, do povo Wapichana, advogado do Conselho Indígena de Roraima.

Voto a voto

O relator Gilmar Mendes votou pela derrubada do marco temporal e afirmou que fixar a data da promulgação da Constituição como critério para demarcações não garante segurança jurídica. Ele também destacou que a lei impõe uma “prova impossível” aos povos indígenas, que à época tinham fragilidade na defesa de seus direitos. Mendes reconheceu ainda o direito à consulta prévia, mas defendeu que ela não implica obrigação de consentimento das comunidades, especialmente em atividades econômicas.

Já sobre o processo de demarcação, Gilmar votou para que os antropólogos sigam as mesmas regras de impedimento e parcialidade aplicadas a juízes em processos judiciais. Ele deu ainda o prazo de 60 dias para que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) publique uma lista dos pedidos de demarcação de terras indígenas que já estão em andamento.

O ministro definiu ainda que comunidades indígenas podem desenvolver atividades econômicas em seus territórios e contratar trabalhadores não-indígenas. Ele também manteve válido o trecho da lei que permite parcerias para atividades, inclusive agrícolas e pecuárias, desde que respeitadas algumas condições, como resultados que gerem benefício para toda comunidade.

Entre os pontos criticados pelas organizações indígenas estão a possibilidade não-indígenas permanecerem no território até receberem indenização e a previsão de que, em casos de áreas de “utilidade pública ou interesse social”, o Estado possa substituir a devolução do território tradicional pela oferta de terras alternativas ou pelo pagamento de indenização. Acompanharam integralmente o voto do relator os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux.

Votação foi virtual e ocorreu após ministros ouvirem sustentação oral dos interessados na ação. Foto: Antonio Augusto/STF Crédito: Antonio Augusto

Já os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, André Mendonça e Nunes Marques acompanharam o voto do relator com ressalvas. No caso de Dino, o ministro defendeu a hierarquia da posse indígena sobre unidades de conservação e rejeitou o questionamento sobre a imparcialidade de antropólogos. Ele foi o segundo a registrar o voto.

Também considerou inconstitucionais as parcerias econômicas com não indígenas, posição acompanhada por Cármen Lúcia e Edson Fachin. Dino ainda propôs ampliar para 180 dias o prazo para que a Funai organize as reivindicações, sugestão que recebeu o apoio de Dias Toffoli, Nunes Marques, Cármen Lúcia e Fachin.

Zanin, Fachin e Cármen Lúcia seguiram Dino na posição de que a posse indígena tem prioridade sobre unidades de conservação, diferente do relator, que votou para que os órgãos ambientais e comunidades adotem um “regime de gestão compartilhada”.

Cármen Lúcia e Fachin divergiram do relator ao votar pela anulação total de diversos artigos centrais da lei, como a que prevê indenizações e oferta de terras alternativas. Entre outros pontos, os ministros criticaram a decisão do relator de incluir estados e municípios desde a fase de estudo. Para Cármen, a medida “contraria a regra da razoável duração do processo, o princípio da finalidade e o da eficiência”.

Marco temporal no STF

A votação dos quatro processos, ADIs 7582, 7583 e 7586 e a ADC 87, iniciou na última segunda-feira (15), após a Corte encerrar a fase de sustentação oral. Na semana anterior ao julgamento, o STF escutou as partes interessadas na ação, como partidos e organizações ambientais e indígenas. A sustentação oral iniciou na quarta-feira (10) e encerrou na quinta-feira (11)

Na ocasião, lideranças indígenas ouvidas pela InfoAmazonia reclamaram da ausência dos ministros do STF durante a fala dos advogados indígenas na plenária. Além disso, as organizações pediram para que a votação fosse presencial, mas o relator Gilmar Mendes.

Em 2023, o STF já havia declarado o marco temporal como inconstitucional. Antes da publicação do acórdão, o Congresso aprovou a Lei nº 14.701/2023, restabelecendo a tese. O presidente Lula (PT) vetou 23 dos 33 artigos da proposta, mas eles foram derrubados pelos parlamentares, fazendo a lei entrar em vigor. Isso gerou um conflito entre a decisão do Supremo e a atuação do Legislativo. Partidos e organizações recorreram novamente ao STF, por isso o tema voltou à discussão.

As quatro ações estão em curso desde dezembro de 2023. Elas passaram por uma discussão ampliada numa Câmara de Conciliação conduzida pelo relator Gilmar Mendes durante sete meses. Outra ação discutida na câmara foi a ADO nº 86, quepede o reconhecimento de exploração de recursos naturais nas terras indígenas, como a mineração, mas não entrou nesta votação. A expectativa, segundo Júnior Nicácio, é que a ADO volte a discussão em 2026.


Imagem de abertura: Indígenas acompanham sustentação oral no plenário do STF. Foto: Antonio Augusto/STF

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Samantha Rufino

Jornalista roraimense formada pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e editora-assistente no InfoAmazonia. Atua em jornalismo ambiental, com experiência em reportagem e comunicação comunitária.

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