Nesta segunda-feira (5), o Supremo Tribunal Federal faz a primeira audiência da Comissão Especial que irá debater a constitucionalidade da Lei 14.701, que define o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Apib e organizações indígenas convocam protestos.

A primeira audiência de conciliação, parte de uma série prevista pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir a constitucionalidade da Lei 14.701, que estabelece o marco temporal para terras indígenas, ocorrerá nesta segunda-feira (5), a partir das 14h, no horário de Brasília. O ministro Gilmar Mendes determinou a formação de uma Comissão Especial para debater até dezembro deste ano a efetividade da lei, promulgada pelo Congresso em janeiro deste ano.

Em resposta, as sete organizações indígenas que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocaram manifestações presenciais e online para esta segunda-feira. Em Brasília, líderes indígenas estarão na Praça dos Três Poderes a partir das 14h. No mesmo dia, a Apib convocou mais uma manifestação, às 18h, mas ainda não divulgou o local. 

“O movimento indígena do Brasil se prepara para uma mobilização nacional e nos territórios. A Amazônia em si tem um posicionamento jurídico e político, e a partir desta semana nossas organizações estão se manifestando contra a tese do marco temporal. Essa via de conciliação afronta nosso direito constitucional e coloca em dúvida se nosso judiciário está guardando o que é de direito dos povos indígenas”, diz Alcebias Sapará, vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), uma das sete organizações que fazem parte da Apib.

A Associação Indígena Pariri, do povo Munduruku, do Médio Tapajós, no Pará, também terá representantes nas manifestações em Brasília. “Mais uma luta, dia 5 de agosto, estamos aqui. O STF, do ministro Gilmar Mendes, quer negociar nossos direitos”, disse Alessandra Munduruku, líder indígena da associação Pariri, em um vídeo publicado nas redes sociais.

Relembre a data das principais decisões sobre a tese:

2023

21 de setembro: STF define que a tese do marco temporal é inconstitucional
27 de setembro: Senado aprova PL 14.701, que fixa o marco temporal em 5 de outubro de 1988
23 de outubro: Lula sanciona  PL 14.701 com vetos parciais, retirando trecho que fixou o marco temporal no projeto
14 de dezembro: Deputado e senadores derrubam vetos de Lula e mantém data do marco temporal 
28 de dezembro: Partidos Liberal, Progressistas e Republicanos entram com ação no STF pedindo que Lei 14.701 seja validada

2024

2 de janeiro: Lei 14.701 é promulgada oficialmente em Diário Oficial
2 de janeiro: Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV) entraram com ação questionando a validade da Lei 14.701
22 de abril: Ministro Gilmar Mendes suspende ações dos partidos e determina audiências de conciliação
27 de junho: Ministro Gilmar Mendes determina datas de audiências entre os dias 5 de agosto e 18 de dezembro de 2024
8 de julho: Organizações indígenas que compõem a Apib discutem participar ou não das audiências 
10 de julho: Comissão de Constituição e Justiça discute a Proposta de Emenda à Constituição 48/2023
5 de agosto: primeira audiência de conciliação determinada por Gilmar Mendes

Como serão as audiências

O ministro Gilmar Mendes optou por utilizar os chamados “métodos autocompositivos”, nos quais o juiz não decide de imediato e sozinho uma ação de conflito, mas intima cidadãos interessados a participar de debates. Eles são levados a encontrar pontos em comum em suas ideias, por meio de mediação, conciliação e negociação. Mendes é o relator de cinco ações que questionam a lei. Partidos de esquerda e organizações indígenas (PSOL, Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil e Partido Verde) pedem que ela seja suspensa, enquanto partidos de direita (Partido Progressista, Partido Liberal e Republicanos) pedem que ela seja validada.

A Apib foi convocada por Mendes a participar das audiências com seis representantes. No entanto, até a publicação desta reportagem, não houve uma confirmação oficial sobre a participação da organização. Até a semana passada, ainda debatia a possibilidade de não comparecer.

Além da Apib, o ministro solicitou a presença de:

  • Três membros do Senado Federal; 
  • Três da Câmara dos Deputados; 
  • Quatro do governo federal, sendo que estes devem ser indicados pela Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério da Justiça (MJ), Ministério dos Povos Indígenas e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (MPI); 
  • Dois governadores; 
  • Um representante dos municípios, que deve ser indicado conjuntamente pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e Frente Nacional dos Prefeitos (FNP); 
  • Cinco pessoas indicadas pelos partidos e organizações que fazem parte das cinco ações. 

Os procedimentos das audiências de conciliação estão divididos em três etapas. A primeira será dedicada a esclarecer o funcionamento e as regras. Na segunda etapa, os participantes discutirão textos importantes relacionados à pauta, como trechos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, a Constituição Federal de 1988, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, e as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesta etapa, também será analisada a jurisprudência da Ação Civil Originária (ACO) 312, que tratou da regularização da Terra Indígena (TI) Caramuru/Paraguassu, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, assim como a do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, julgado em setembro do ano passado pelo STF e que determinou a nulidade do marco temporal. Na última etapa, serão apresentadas propostas de alteração da Lei 14.701.

Protesto contra o Marco Temporal em Brasília, em abril de 2023. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Tentativas frustradas 

Em julho, a Apib tentou impedir a realização das audiências por meio de um recurso enviado ao STF. A articulação argumentou que as reuniões não deveriam ocorrer porque os direitos territoriais indígenas são inalienáveis e, portanto, não devem ser objeto de discussões utilizando métodos de autocomposição. “O Art. 231 da Constituição: O art. 231 da Constituição Federal reconhece aos índígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. é, assim, cláusula pétrea […] restando proibida qualquer iniciativa que possa promover modificações tendentes a retroceder, abolir ou dificultar o exercício dos direitos decorrentes do comando constitucional sobre direitos indígenas”, afirmou a Apib.

Além disso, a Apib tentou tirar das mãos do ministro Gilmar Mendes a decisão sobre a Lei 14.701, pedindo que o relator seja o ministro Edson Fachin, mas não houve resposta por parte do Supremo. Fachin foi o ministro relator do Recurso Extraordinário 1.017.365, apreciado pelo STF no ano passado e que rejeitou a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. 

A organização indígena também questionou a forma como o representante da Procuradoria Geral da República (PGR), que integra o Ministério Público Federal (MPF), será tratado nas audiências. De acordo com o ministro Gilmar Mendes, o representante não terá voz na discussão e será apenas um “observador”. Apesar do incômodo da Apib, segundo A Pública, o procurador da República Paulo Gonet já aceitou ser um espectador do processo e decidiu aguardar os resultados das audiências para definir sua posição sobre a Lei 14.701. A informação foi confirmada pela reportagem da InfoAmazonia.

“Essa câmara de conciliação visa discutir de modo consensual os direitos indígenas, só que para nós está um pouco obscuro como vai se dar essa discussão. No nosso entendimento, a gente entende que os direitos indígenas são inegociáveis”, disse o advogado Maurício Terena, em vídeo publicado nas redes sociais da Apib. Também devem participar como observadores as organizações ligadas ao agronegócio e aos direitos humanos. 

Pressão de todos os lados

A Lei 14.701 estabeleceu o marco temporal, determinando que só podem ser consideradas terras indígenas as áreas ocupadas na data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. As audiências de conciliação irão discutir ações contrárias e a favor dessa tese, propostas por diferentes entidades e partidos políticos.

“Isso é um jogo político de mediação de força para que seja decidido o nosso futuro. A Constituição de 1988 deu cinco anos para que o Estado brasileiro pudesse resolver a situação da demarcação dos nossos territórios, e agora estamos novamente vendo o Estado negar mais uma vez os nossos direitos, através de um juiz, Gilmar Mendes, que é um juiz que se mostra totalmente anti-indígena”, diz Alberto Terena, coordenador da executivo da Apib, em vídeo publicado nas redes sociais. 

Além da lei e das audiências, os indígenas devem enfrentar neste ano a PEC 48/2023, que busca oficializar o marco temporal como constitucional. Em julho, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal paralisou a tramitação do documento e decidiu esperar os resultados das audiências de conciliação. A votação deve retornar em outubro.

Todos esses imbróglios jurídicos já estão afetando a demarcação de novas terras indígenas. O Ministério da Justiça, responsável por publicar as portarias declaratórias que regularizam os territórios, informou à InfoAmazonia que a Lei 14.701 é um dos motivos que estão impedindo o encaminhamento dos processos. 

No momento, existem 26 processos sendo analisados, oito deles referentes a terras indígenas localizadas na Amazônia Legal. São elas: TI Jauary (AM), TI Menkü (MT), TI Apiaká do Pontal e Isolados (MT), TI Paukalirajausu (MT), TI Sawré Muybu (PA), TI Cobra Grande (PA), TI Maró (PA) e TI Kanela Memortumré (MA). A última vez que uma terra foi demarcada ocorreu em abril deste ano, quando o presidente Lula homologou dois territórios. 

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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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