Apesar do desmatamento geral na Amazônia continuar em queda, análise exclusiva da InfoAmazonia mostra que as áreas mais desmatadas entre janeiro e junho de 2024 estão nos municípios onde houve redução na aplicação das multas do Ibama, um efeito colateral do movimento de paralisação dos servidores ambientais. Número de autuações no primeiro semestre deste ano é 16% menor que os patamares atingidos na gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Entre janeiro e junho deste ano, a aplicação de multas contra infratores ambientais na Amazônia apresentou uma queda de 67,3% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo análise da InfoAmazonia com base nos registros do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama: É função do Ibama fazer a fiscalização, o monitoraramento e o combate a atividades como desmatamento, garimpo e caça ilegal. É o órgão que emite as autuações dos crimes ambientais.). Foram 1.543 autuações neste primeiro semestre, contra 4.723 no mesmo período em 2023. Esse baixo número do governo Lula (PT) em 2024 é 16% pior que os patamares atingidos na gestão de Jair Bolsonaro (PL), quando o país amargou alguns dos piores indicadores para proteção e gestão ambiental.
A redução das autuações na Amazônia ocorre em meio à queda de braço entre o governo federal e os servidores da carreira ambiental, que se arrasta desde outubro do ano passado, quando iniciou-se uma negociação para reestruturação das carreiras no Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Desde então, os servidores têm realizado operações padrão, com paralisações pontuais e manifestações. Em julho deste ano, a categoria chegou a decretar greve em 24 estados e no Distrito Federal, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a retomada das atividades (leia mais no intertítulo Impasse entre governo e servidores).
Márcio Santilli, sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), alerta que a dificuldade de negociação com os servidores ambientais pode comprometer a ambição climática do Brasil. Santilli lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a União implemente ações para zerar o desmatamento até 2030, em uma ação proposta pelo ISA e outras 10 organizações: “protelar essa questão só beneficia aqueles que desmatam e descumprem a legislação”.
“Por mais que a previsão seja de redução no desmatamento, se essa questão não for resolvida, até os bons indicadores podem piorar. É uma reivindicação justa [a dos servidores]. Se não pode ser atendida de uma vez, que ao menos haja uma proposta para que esse objetivo seja alcançado gradualmente”, afirma Santilli.
Ainda não é possível determinar com precisão o impacto que a queda nas autuações terá na proteção da Amazônia. Por enquanto, o desmatamento geral da Amazônia Legal segue em queda: nos primeiros seis meses deste ano, foram detectados 1.642 km² de área com alertas de desmatamento, segundo o Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), contra 2.648,72 km² no mesmo período do ano passado. A redução é de 38% no desmatamento em 2024.
O cenário muda quando se observa especificamente os municípios mais afetados pelo desmatamento neste ano, mesmo que o quadro geral na Amazônia ainda apresente uma queda.
A InfoAmazonia cruzou os dados das infrações do Ibama com os alertas de desmatamento do Deter, concluindo que as áreas mais desmatadas entre janeiro e junho de 2024 estão nos municípios onde houve redução na aplicação das multas, um efeito colateral do movimento de paralisação dos servidores. Entre os 50 municípios mais desmatados neste ano, 25 tiveram mais de 60% de redução de multas aplicadas — já nos 7 municípios mais desmatados, a redução foi de ao menos 78%.
Em Itaituba, no Pará, onde o desmatamento aumentou nos seis primeiros meses deste ano em relação ao mesmo período de 2023, a aplicação de multas ambientais caiu 58% (de 75 para 31). Já em Porto Velho, capital de Rondônia, que está entre as mais desmatadas da Amazônia em 2024, as autuações caíram quase 78% no primeiro semestre; em São Félix do Xingu, as autuações diminuíram 88%.
O município com maior área desmatada no primeiro semestre deste ano foi Novo Aripuanã, no Amazonas, onde as autuações caíram 84% em relação ao mesmo período do ano passado.
Apesar de estarem entre os mais desmatados este ano, em alguns desses municípios o desmatamento ainda é inferior quando comparado ao mesmo período do ano passado, como em Porto Velho, São Félix do Xingu e Novo Aripuanã.
Desmatamento avança à sombra da fiscalização no rio Manicoré
Em Manicoré, no Amazonas, oitavo município mais desmatado na Amazônia entre janeiro e junho deste ano, uma frente de exploração de madeira, que havia sido interrompida no ano passado, foi retomada este ano e segue a todo vapor. As multas aplicadas caíram 85% em comparação com 2023. Moradores relatam que cerca de 70 pessoas estão acampadas na floresta, serrando madeira.
Em maio, uma ação conjunta do Ministério do Trabalho e do Ibama resgatou 50 trabalhadores em condições análogas à escravidão, mas os criminosos retornaram poucos dias depois. “Nos últimos dias começaram a descer barcos com toras e um grande incêndio se formou na região”, diz Maria Cléia Delgado Campina, presidente da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM).
O desmatamento ocorreu dentro da área de uso coletivo da comunidade extrativista do rio Manicoré, que teve seu território oficialmente reconhecido em março de 2022. Na época, a InfoAmazonia esteve na região que já sofria uma grande invasão madeireira.
Jolemia Chagas, articuladora da Rede Transdisciplinar da Amazônia (RETA) e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirma que o movimento de balsas retirando madeira dentro da área de uso coletivo é intenso e viola os direitos das comunidades, “que conservam a região para sustentabilidade de suas atividades na agricultura e extrativismo”.
Segundo Chagas, diante da falta de ação mais contundente para conter o desmatamento denunciado pela comunidade, além da retomada da frente de retirada de madeira, outros pontos do rio Manicoré também foram invadidos desde maio.
“Como os equipamentos não foram inutilizados [prática comum da fiscalização do Ibama, que é autorizado a destruir o material encontrado em campo], eles voltaram a usar os mesmos equipamentos e levaram mais três tratores para a região”, afirma Chagas. “Com isso, outras frentes se sentiram no direito de entrar também”.
Impasse entre governo e servidores
As conversas entre os servidores federais da área ambiental se iniciaram em outubro do ano passado, mas a paralisação começou apenas em janeiro deste ano, mantendo ainda os trabalhos administrativos e parte das ações em campo. Os funcionários pedem melhorias nas gratificações, nos salários e na perspectiva de carreira.
Depois de quatro rodadas de negociações sem acordo com o governo, os trabalhadores chegaram a decretar a greve em 1º de julho, mas mantiveram serviços essenciais, como o combate às queimadas e o atendimento de denúncias de crimes ambientais. Em resposta, a Advocacia Geral da União (AGU) ingressou com uma ação e conseguiu a decisão do STJ para cumprimento de 100% do serviço em diversas atividades, como licenciamento ambiental, gestão das unidades de conservação, resgate e reabilitação da fauna, controle e prevenção de incêndios florestais e emergências ambientais. A Corte fixou multa diária de R$ 200 mil em caso de descumprimento.
À InfoAmazonia, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), que negocia com os servidores, informou que a proposta dos trabalhadores pede aumento de “quase 40% na folha, o que torna a inviável em vista das restrições orçamentárias”. Já o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Ibama não responderam aos nossos questionamentos até a publicação desta reportagem.
Lorena Souza, presidente da Associação dos Servidores da Carreira de Especialistas em Meio Ambiente no Pará (Asibama-PA), diz que a decisão do STJ enfraquece o movimento dos trabalhadores: “Continuamos literalmente apagando incêndios, enquanto o governo vira as costas para nós”. Sobre as ações de fiscalização, ela diz que os servidores estão “cumprindo o mínimo das metas, sem deixar de atender às decisões judiciais ou denúncias”.
Souza também afirma que há uma contradição entre as promessas do governo de reduzir o desmatamento e “a falta de fortalecimento dos órgãos ambientais”. Ela mencionou que, apesar de Lula ter inicialmente se mostrado aberto ao diálogo e ter levantado a bandeira do desmatamento zero até 2030, as negociações com os servidores ambientais foram insatisfatórias: “foi uma surpresa muito desgostosa para nós”, disse.
A servidora argumenta que os esforços durante o primeiro ano desta gestão Lula, com um incremento considerável na fiscalização ambiental, reduziram o desmatamento. Segundo ela, houve um esforço dos servidores, apesar de condições de trabalho precárias: “temos prédios caindo aos pedaços e falta de material de apoio. Nós ajudamos a eleger este governo também por causa da bandeira ambiental”.
“O desmatamento continua em queda porque nós estamos fazendo os atendimentos emergenciais e porque, em 2023, tivemos um crescimento muito grande na fiscalização ambiental”, explica.
Cleberson Zavaski, presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do PECMA (ASCEMA: A ASCEMA representa os servidores ativos, inativos e pensionistas da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (CEMA) e do Plano Especial de Cargos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ibama (PECMA), lotados no Ibama, no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e no MMA.), informou à reportagem que os servidores contestam a definição do STJ sobre os serviços essenciais e que os trabalhadores vão organizar novas assembleias nos estados para discutir uma nova contraproposta ao governo federal.
No caso da gestão das unidades de conservação, que é função do ICMBio, a decisão obriga praticamente o retorno de 100% dos funcionários. Inclusive para postos que atendem exclusivamente o turismo, como em alguns parques.
Entre os pedidos ao governo, a categoria solicita equiparação dos salários com os dos servidores da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que fazem um trabalho semelhante ao dos servidores ambientais, mas têm salários mais altos. E também reinvindicam que a remuneração dos funcionários da carreira seja 70% de salário e no máximo 30% em gratificações, reduzindo a dependência das chamadas funções gratificadas para comporem seus salários.
Outra demanda é a criação de uma gratificação para estimular agentes do Ibama e do ICMBio a ocuparem postos em áreas remotas e marcadas por conflitos violentos, cargos que sofrem com alta rotatividade e falta constante de servidores.
COMO ANALISAMOS A QUEDA DE FISCALIZAÇÃO NA AMAZÔNIA
. Nesta reportagem, coletamos e analisamos dados de alerta de desmatamento, do Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (DETER), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e registros de infrações ambientais, da base do Ibama, na Amazônia Legal brasileira.
. Foram considerados na análise os seis primeiros meses de 2024, comparados com o mesmo período dos anos anteriores, janeiro a junho de 2019 a 2023. Como desmatamento foram consideradas as três classes adotadas pelo DETER, são elas: Desmatamento, Desmatamento com Vegetação e Mineração.
. Alguns casos foram excluídos da análise:
– Multas: do total de 27.722, 468 foram excluídas por não terem número de processo.
– Embargos: do total de 31.397, 3.269 foram excluídos por não terem número de processo.
. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Fábio Bispo
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori