Institutos federais foram financeiramente desmantelados ano a ano desde 2019. Como resultado, a devastação da Amazônia atingiu o maior patamar em 15 anos. Presidente de associação dos servidores ambientais denuncia intimidações e aparelhamento das instituições por policiais militares.

Cortes de verbas, desmobilização de servidores e interferência do governo federal. Esse é o cenário vivido há quase quatro anos pela gestão socioambiental no Brasil. O tamanho do tombo orçamentário para as políticas ambientais foi de 71% entre 2014, quando os repasses atingiram o maior patamar da história (R$ 13,3 bilhões), e 2021, que contou com apenas R$ 3,7 bilhões.

É o que mostra o relatório “O financiamento da gestão ambiental no Brasil: uma avaliação a partir do orçamento público federal“, publicado em agosto pelo Instituto Socioambiental (ISA) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O documento analisa a evolução dos repasses socioambientais no país desde 2005.

As reduções atingiram em cheio os órgãos-chave para o combate ao desmatamento na Amazônia, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama: Autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente responsável por fiscalização, licenciamento e outras funções na área ambiental.), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio: Autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente responsável por ações ligadas ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação.) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe: O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais é o órgão federal responsável por monitorar e divulgar dados de desmatamento e queimadas para auxiliar no controle dos crimes ambientais).

O orçamento do Ibama vem sendo reduzido sistematicamente ano a ano, assim como sua execução, que teve queda de 21% desde 2008. Em relação aos gastos discricionários: O orçamento dos órgãos públicos traz despesas obrigatórias, que o governo não pode deixar de pagar, como o pagamento de funcionários, e as despesas discricionárias, sobre as quais o gestor responsável tem a liberdade de decidir. Apesar de o segundo tipo ser mais flexível, ele é fundamental para implementação de políticas públicas e ampliação de projetos., o ano de 2021 contou com apenas 57% do valor gasto em 2008.

Além dos cortes nos orçamentos socioambientais, há também diminuição na execução deles. O PlenaMata apurou, junto ao Observatório do Clima, que apenas 41% do orçamento para fiscalização no Ibama foi executado no ano passado. Nos três anos anteriores a Bolsonaro (2016 a 2018), o uso da verba variou de 86% a 92%. Além disso, em 2021 o governo deixou de usar 30% dos recursos destinados à prevenção e controle de incêndios florestais.

O ICMBio, órgão que gerencia mais de 300 unidades de conservação, também não escapou da tesoura do atual governo e registrou, em 2020, a menor despesa discricionária desde sua criação, com apenas R$ 185 milhões, o que representa somente 44% do orçamento de 2010. O relatório do ISA e da UFRJ informa que os repasses para a autarquia se mantiveram estáveis ao longo dos anos, mas não acompanharam o aumento do número de UCs criadas – apenas em 2010, 115 novas UCs saíram do papel.

As ações de Monitoramento da Cobertura da Terra e do Risco de Queimadas e Incêndios Florestais do Inpe, órgão responsável por divulgar dados de desmatamento e queimadas para auxiliar no controle do crime ambiental, registraram, entre 2019 e 2021, os três menores valores executados desde 2005, com pouco mais de R$ 1,1 milhão por ano. O montante representa apenas 20% do orçamento liquidado nos anos de 2013 e 2014.

As ações de Monitoramento da Cobertura da Terra e do Risco de Queimadas e Incêndios Florestais do Inpe registraram, entre 2019 e 2021, os três menores valores executados desde 2005, com pouco mais de R$ 1,1 milhão por ano. O montante representa apenas 20% do orçamento liquidado nos anos de 2013 e 2014.

Os enxugamentos no instituto quase puseram fim, no ano passado, ao programa de monitoramento do Cerrado e quase desligaram o supercomputador Tupã, responsável por dados climáticos enviados ao governo. Os cortes impactaram o pleno funcionamento do órgão, como explica a doutora em Química Luciana Gatti, pesquisadora na instituição.

“Quando há um corte institucional, em primeiro lugar ele afeta toda a base e a infraestrutura, como serviços de limpeza e manutenção dos equipamentos. Isso impacta a capacidade operacional do órgão”, lamenta. Despesas com transporte, publicação de estudos científicos e contratação de pessoal também foram reduzidas com o corte de verbas.

“Os docentes e cientistas deixam de fazer pesquisa para secretariar o programa de pós-graduação, por exemplo, porque muita gente foi demitida por falta de recurso. Já tivemos ofertas externas de financiamento, mas o governo põe vários empecilhos burocráticos. Ou seja, o problema não é verba, mas a crença de que o Brasil conserva demais e que parte da Amazônia precisa virar dinheiro para o agronegócio”.

Os docentes e cientistas deixam de fazer pesquisa para secretariar o programa de pós-graduação, por exemplo, porque muita gente foi demitida por falta de recurso. Já tivemos ofertas externas de financiamento, mas o governo põe vários empecilhos burocráticos. Ou seja, o problema não é verba, mas a crença de que o Brasil conserva demais e que parte da Amazônia precisa virar dinheiro para o agronegócio.

Luciana Gatti, doutora em química e pesquisadora do Inpe

Perseguições

Um dos episódios mais emblemáticos da interferência do governo federal no Inpe aconteceu em 2019, quando o então diretor Ricardo Galvão foi demitido ao divulgar o aumento do desmatamento na Amazônia naquele ano. Bolsonaro criticou a publicação dos dados científicos e acusou o pesquisador de estar a serviço de alguma ONG.

Na semana passada, o caso voltou à tona após o professor da Universidade de São Paulo (USP) revelar, nas redes sociais, os bastidores de sua demissão. Segundo Galvão, o governo passou a investigá-lo secretamente com o intuito de encontrar algo que justificasse sua queda.

“Nessa época, recebi a ligação de uma funcionária do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações]. Ela estava chorando, e disse que um grupo de trabalho do governo estava levantando toda minha vida. Ela também disse que até meu telefone estava grampeado. Não encontraram nada e foram obrigados a me demitir, passando pela vergonha de ser um governo que agride a ciência”, escreveu.

O presidente da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema) e funcionário do ICMBio, Denis Rivas, também foi alvo de pressões. Em entrevista ao PlenaMata, ele citou o aparelhamento dos órgãos de comando e controle por policiais militares sem experiência em gestão ambiental como parte do processo de intimidações.

Em 2019, quando o programa de teletrabalho no ICMBio foi descontinuado pelo governo, ele precisou retornar à unidade de conservação na qual é lotado, no Rio de Janeiro, e foi recebido pelo então presidente do órgão, coronel Homero Cerqueira, e por outro militar de igual patente, que o teriam intimidado. Na época, a Ascema denunciava Bolsonaro por ter sugerido a “ponta da praia” a servidores que atrapalhassem o licenciamento ambiental. Ponta da praia era um termo usado na ditadura militar para se referir a uma base da Marinha na Restinga de Marambaia (RJ), onde presos políticos eram torturados e mortos pelo regime.

“A gente cogitou fazer uma denúncia na ONU porque entendemos que houve uma ameaça à nossa integridade física. Antes, tínhamos entregado uma carta para o [então presidente da Câmara dos Deputados] Rodrigo Maia. Daí os dois coronéis me chamaram para uma sala e começaram a fazer perguntas do tipo ‘você vai mesmo denunciar Bolsonaro?’, ‘o que querem com essa carta para o Rodrigo Maia?'”.

Rivas lembrou também que os policiais revelaram terem conhecimento sobre o que os servidores conversaram nos grupos internos. “Eles disseram ‘nós sabemos que vocês nos chamam de milicos’”. Os militares teriam alertado ainda, em tom intimidatório, que estavam em todos os lugares e sabiam tudo o que os funcionários faziam e falavam.

“Essa é a exata função dos militares nos órgãos: intimidar. Já vimos chefe de unidade de conservação ser conduzido por quatro horas em uma viatura por ter apreendido armas de caçadores. Isso deslegitima a fiscalização e empodera o crime ambiental”, lamenta.

Essa é a exata função dos militares nos órgãos: intimidar. Já vimos chefe de unidade de conservação ser conduzido por quatro horas em uma viatura por ter apreendido armas de caçadores. Isso deslegitima a fiscalização e empodera o crime ambiental.

Denis Rivas, presidente da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema) e funcionário do ICMBio

Desmatamento como consequência

Luciana Gatti e Denis Rivas são categóricos ao afirmarem que os aumentos expressivos do desmatamento na Amazônia a partir de 2019 são resultados da política de desmonte dos órgãos de monitoramento e fiscalização. O Ibama conta hoje com o menor quantitativo de fiscais da história, segundo a Ascema, com pouco mais de 500 agentes, uma redução de 55% em dez anos. Já o quadro de servidores passou de 3,5 mil em 2016 para 2,5 mil.

Na era Bolsonaro, o desmatamento na região subiu 73% na comparação com o governo anterior e 125% em relação ao primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014), do PT, chegando aos mesmos patamares de 15 anos atrás.

"A partir de 2019, a gente passou a ver um nível de destruição absurdo", afirma a pesquisadora do Inpe. "Lembro que naquele ano a gente chegava de avião na Amazônia e via várias balsas cobertas com lonas, estacionadas nas beiradas dos rios, esperando os navios chegarem para embarcar madeira ilegal".

Já Rivas destaca o descontrole sobre as unidades de conservação como um dos principais efeitos do desmonte. "Os servidores têm medo de irem a campo fazer seu trabalho porque os riscos de violência aumentaram. Em Roraima, por exemplo, tem áreas protegidas que estão ocupadas por facções criminosas nesse contexto do garimpo, que abriu um nicho extremamente lucrativo. O crime ambiental organizado está ganhando muito dinheiro neste governo e há indícios de que esteja financiando campanhas eleitorais”, alerta.

E continua: "Eu acho difícil pensar numa unidade de conservação que não é afetada quando os ataques vêm da Presidência da República. Não tem precedente na história órgãos do Estado serem atacados rotineiramente pelo próprio presidente. A gente entende que um eventual segundo mandato de Bolsonaro vai representar de vez o fim das políticas de meio ambiente, o que seria um risco enorme para a Amazônia. A situação desse bioma hoje é gravíssima e nós estamos perdendo o controle do desmatamento".


Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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