A Proposta de Emenda à Constituição 48/2023, que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, será debatida nesta quarta-feira pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Especialista entrevistada pela InfoAmazonia afirmou que a proposta tem o poder de alterar a Constituição e, portanto, ao contrário de um Projeto de Lei, se tornaria oficialmente parte da mais alta norma jurídica do país.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, que institui o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, começará a ser discutida nesta quarta-feira (10) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Esse é mais um capítulo do embate sobre a tese, que desde o ano passado já foi julgada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, em contraponto, também teve um Projeto de Lei aprovado pela ala anti-indígena do Congresso.
Agora, a PEC é a alternativa que esses parlamentares encontraram para aprovar definitivamente o marco temporal. A professora de direito constitucional Priscilla Cardoso, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), explica que a proposta tem o poder de mudar a Constituição e, por isso, diferentemente de um Projeto de Lei, o marco temporal se tornaria oficialmente parte da mais alta norma jurídica do país.
“Existe uma hierarquia entre essas normas, é como se você pegasse uma pirâmide, e quem está mais no alto vai mandar sobre o que está embaixo. Lá no alto de tudo está a Constituição Federal. Um Projeto de Lei está abaixo da Constituição. A PEC é um projeto de emenda à Constituição. Ou seja, ela pode alterar a própria Constituição. Por isso que eles [deputados e senadores] querem criar uma PEC, porque aí ninguém pode falar que é inconstitucional, nem o STF”, explica a professora.
Cardoso afirma que, no entanto, a PEC está em desacordo com a própria Constituição, que garante as cláusulas pétreas, aquelas que não podem ser alteradas de forma alguma. “O ministro Edson Fachin [como relator da tese do marco temporal] reconheceu os direitos territoriais indígenas como direitos fundamentais. Ou seja, se eles são direitos fundamentais, eles entram aqui no inciso 4, que são os direitos e garantias individuais, que não podem ser alterados nem mesmo por emenda constitucional”, diz.
Apesar disso, ela avalia que as normas brasileiras não estão sendo respeitadas por parte do Congresso Nacional, o que gera instabilidade e incerteza sobre como o processo irá caminhar. “O Legislativo descumpre o que o STF determina, o Legislativo descumpre o que o Executivo determina. Então, a gente vê que é uma guerra política mesmo. É uma queda de braço do Congresso com os outros poderes que é muito perigosa”, diz.
Mobilização indígena e o que vem por aí
Ainda há algumas etapas a serem seguidas até a decisão final sobre a PEC. Depois de passar pela CCJ, a proposta segue para uma comissão especial e será votada em dois turnos. Em cada um deles, é necessário obter ⅗ dos votos favoráveis. Se aprovada, a proposta é então enviada à Câmara dos Deputados, que segue o mesmo rito. Caso ambas as casas aprovem, a PEC é promulgada pelo Congresso.
Como a tramitação não depende do STF ou de sanção presidencial, desde já as organizações que integram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) veem a PEC como uma grande ameaça. Na segunda-feira (8), a Apib reuniu mais de 100 representantes de todas as regiões do país para debater as estratégias a serem seguidas. Nesta semana, eles planejam ações coordenadas nas redes sociais, com tuitaços e ajuda de influenciadores e artistas. A cantora Anitta, por exemplo, é uma das pessoas que, na segunda-feira, publicou um post contra a PEC 48/2023. Nesta terça-feira (9), o cantor Xamã também apareceu em uma postagem no Instagram, se posicionando contra a proposta.
O vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Alcebias Sapará, explicou que os riscos para as terras indígenas que estão em processo de demarcação, e até para aquelas já demarcadas, são grandes, porque é aberta a possibilidade de se questionar os limites territoriais delas. “Os nossos direitos não estão sendo respeitados. Isso fere a Constituição Federal, no seu artigo 231: De acordo com o artigo 231, são reconhecidos aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.. Esse pacote não é só para rever a demarcação de terras indígenas, mas também para explorar a natureza e fazer mineração. Isso, para a gente, é uma afronta”, disse.
Caso a PEC seja aprovada, a professora Priscilla Cardoso avalia que as organizações indígenas podem buscar e precisar de apoio internacional, já que o Brasil assinou compromissos com outros países para garantir os direitos indígenas e, por isso, pode ser responsabilizado.
“A Convenção 169 da OIT, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas são exemplos de diversos tratados que foram ratificados pelo Estado. Esses acordos permitem que as organizações indígenas recorram, por exemplo, à Corte Interamericana de Direitos Humanos ou à ONU, para reivindicar o retorno à garantia de seus direitos fundamentais”, explica.
Lei 14.701 e marco temporal
A PEC 48/2023 é uma resposta à falta de definição sobre a tese após a aprovação do PL 14.701, promulgado em janeiro deste ano pelo Congresso, que determinou o marco temporal. O PL está em desacordo com a decisão do STF, que julgou a tese inconstitucional no ano passado.
Assim, com duas decisões contrárias – uma do STF e outra do Congresso –, partidos de esquerda (PSOL, Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil e Partido Verde), junto com organizações indígenas (Apib), e pediram a anulação do PL 14.701, enquanto partidos de direita (Partido Progressista, Partido Liberal e Republicanos) pediram a validação do projeto. Os dois lados protocolaram ações no STF para definir se o PL segue ou não.
Em meio ao imbróglio político e jurídico, o ministro Gilmar Mendes paralisou todas as ações e determinou um período de conciliação, que começará com uma audiência em 5 de agosto e terminará em 18 de dezembro deste ano. Segundo Cardoso, a decisão do ministro do STF abre a possibilidade de revisão do que foi decidido até agora.
“É muito perigoso. Não é uma outra composição do STF que está julgando, são os mesmos ministros que vão julgar novamente a mesma coisa e isso aí sim fere a segurança jurídica. Eu não sei o que que vai sair daí, porque o STF no final é quem decide. O que ele [Gilmar Mendes] está fazendo é postergar isso para poder analisar diversas propostas de entendimento sobre essa questão”, explicou.
marco temporal: do stf até a Pec
Relembre a data das principais decisões sobre a tese:
2023
– 21 de setembro: STF define que a tese do marco temporal é inconstitucional
– 27 de setembro: Senado aprova PL 14.701, que fixa o marco temporal em 5 de outubro de 1988
– 23 de outubro: Lula sanciona PL 14.701 com vetos parciais, retirando trecho que fixou o marco temporal no projeto
– 14 de dezembro: Deputado e senadores derrubam vetos de Lula e mantém data do marco temporal
– 28 de dezembro: Partidos Liberal, Progressistas e Republicanos entram com ação no STF pedindo que Lei 14.701 seja validada
2024
– 2 de janeiro: Lei 14.701 é promulgada oficialmente em Diário Oficial
– 2 de janeiro: Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV) entraram com ação questionando a validade da Lei 14.701
– 22 de abril: Ministro Gilmar Mendes suspende ações dos partidos e determina audiências de conciliação
– 27 de junho: Ministro Gilmar Mendes determina datas de audiências entre os dias 5 de agosto e 18 de dezembro de 2024
– 8 de julho: Organizações indígenas que compõem a Apib discutem participar ou não das audiências
– 10 de julho: Comissão de Constituição e Justiça discute a Proposta de Emenda à Constituição 48/2023
Apib nas audiências de conciliação
As organizações indígenas ainda não decidiram qual posição devem tomar nas audiências e sequer se irão participar delas. O coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá, disse em uma reunião com comunicadores, na noite desta segunda-feira, que as discussões estão em curso, mas por enquanto a equipe jurídica da Apib avalia que seria desfavorável integrar o debate proposto pelo ministro.
“Na nossa análise técnica e jurídica, que ainda está sendo concluída, hoje a posição da Apib é que não dá para entrar numa discussão sendo que os povos indígenas são os principais prejudicados. Ou seja, a gente vai entrar numa mesa de conciliação já perdendo”, disse.
De acordo com Dinamam, as organizações só participarão das mesas de conciliação caso a Lei 14.701 tenha sua aplicabilidade suspensa. “O que nós peticionamos foi um requerimento junto à corte. Se querem criar uma mesa de negociação, então, para que possamos participar igualmente com todos os negociadores nessa mesa de conciliação, é necessário que a aplicabilidade da lei seja suspensa. Com essa suspensão, nós sentamos na mesa para dialogar, porque aí nós vamos estar todos no mesmo patamar de discussão”, explicou o coordenador.
Além do marco temporal em si, as organizações também temem a possibilidade de exploração de recursos naturais dentro dos territórios indígenas, algo que foi incluído na Lei 14.701. A Apib entrou com uma ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) para impedir essas explorações. Essa ADO é uma das ações que devem ser decididas pelo ministro Gilmar Mendes.
“Talvez seja o maior perigo dentro de todas essas questões que estão envolvendo as ações. Isso porque quando a gente fala do marco temporal, a gente já teve uma manifestação do Supremo lá atrás, que declarava a inconstitucionalidade dele. Agora, quando a gente fala de exploração de recursos minerais, isso vai poder ser aberto para discussão [pela primeira vez] dentro dessa câmara de conciliação”, explicou o advogado Ricardo Terena, da Apib.