Plenária ‘Justiça de Transição, reparação e não repetição dos crimes pela ditadura contra os Povos Indígenas’, que ocorreu nesta sexta-feira (26), último dia de ATL, resgatou histórias de como a colonização e a ditadura militar contribuíram para a desterritorialização dos povos indígenas no Brasil.
Procuradores da República criticaram a falta de uma Comissão Indígena da Verdade e pediram reparação pelos danos da colonização e da ditadura militar causados aos povos indígenas no Brasil. As cobranças ao governo ocorreram durante a plenária “Justiça de Transição, por reparação e não repetição dos crimes cometidos pela ditadura contra os povos indígenas”, que ocorreu nesta sexta-feira (26), último dia do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília.
Para o procurador Marlon Alberto Weichert, o governo recuou nas medidas que garantem reparação pelas violações que ocorreram durante a ditadura militar. “Esse tema parecia que poderia entrar na pauta política, mas, nós vimos agora, desde o início do ano, que o governo recuou de toda pauta de justiça de transição e é evidente que a pauta pela instituição de uma Comissão Indígena da Verdade não terá, ao menos neste momento, o protagonismo do Estado brasileiro”, disse.
Desde o ano passado, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) pede pela criação da comissão, que é uma demanda das organizações indígenas. Em dezembro do ano passado, o MPI realizou o “Seminário Cultura e Justiça de Transição Indígena” e publicou uma nota informando que a previsão é de que a Comissão Indígena da Verdade seja instalada neste ano.
Os procuradores, no entanto, afirmam que o Estado ainda não reconheceu a importância de visibilizar e reparar as violações que ocorreram contra os indígenas durante a colonização e a ditadura militar. “Até 1988, o governo brasileiro colonizou os povos indígenas, porque até o direito de ir e vir era regulado pela Funai [Fundação Nacional do Povos Indígenas]. Todas as mazelas que todos os povos indígenas têm hoje estão conectadas com as violações que os povos indígenas sofreram. Os suicídios, o alcoolismo, é fruto desse processo de colonização e o governo brasileiro precisa fazer essa reparação”, disse o procurador Marco Antônio Delfino.
Weichert sugeriu que seja criado um fórum que reúna representantes do Ministério Público Federal (MPF), dos ministérios, das universidades e das organizações civis. O objetivo é investigar os casos de violência contra indígenas ocorridos durante regimes autoritários no Brasil. “Mostrar ao Estado brasileiro que uma Comissão Indígena da Verdade é importante, é oportuna e necessária. Aí, trabalhando esses elementos, quem sabe chegamos no próximo ano, chegamos numa próxima eleição, com isso sendo uma pauta inafastável para fazer avançar a garantia de um processo de reparação”, disse.
Marco temporal e reparação
Os especialistas explicaram que a colonização (entre 1500 e 1815) e o período da ditadura (entre 1964 e 1985) foram os dois momentos em que os indígenas tiveram os mais graves ataques aos seus direitos territoriais, e que a luta contra o marco temporal se associa à justiça de transição e reparação.
“A ideia da ditadura militar era: ‘vamos desterritorializar os povos indígenas’, porque dentro desse pensamento míope da ditadura, desenvolver era produzir bens de consumo. Vocês podem ver nas propagandas mais antigas das empresas, que elas faziam propaganda com chaminés soltando fumaça, aquela era a lógica do desenvolvimento. Então, não era um desenvolvimento como aquele defendido pelos povos originários que respeita os modos tradicionais de vida e o desenvolvimento verdadeiramente sustentável”, explica o procurador Edmundo Antônio Dias.
Edmundo citou a instalação do “Reformatório Krenak”, presídio criado para punir indígenas, entre os anos de 1968 a 1973, durante a ditadura militar. Quando voltaram ao território de origem, os integrantes do povo Krenak já haviam perdido boa parte de suas terras e só em 1993 conseguiram, na Justiça, retirar os posseiros que estavam ocupando o local e que tiveram permissão do órgão ambiental do próprio governo estadual para isso.
“A questão territorial tem tudo a ver com a questão da ditadura militar e ela se faz presente hoje na discussão do marco temporal. Os próprios Krenak voltam para uma área diminuta de 44 hectares. Somente em 1993 o STF anula os títulos que tinham sido concedidos, mas a questão territorial é chave. Veja bem, se essa decisão do STF é de 1993, em 5 de outubro de 1988, os Krenak não estavam na integralidade do seu território, como não estão ainda hoje”, explica o procurador.
A jurista Deborah Duprat também lembra que a ditadura militar implementou o projeto “Desenvolvimento e segurança na região ao norte das calhas dos rios Solimões e Amazonas: Projeto Calha Norte“, de 1985, que transferiu agricultores do Sul para o Norte do país. “Eles entendiam que os povos indígenas não eram capazes nem de gerar uma atividade produtiva, nem de defender as fronteiras nacionais. Levando essas pessoas, o que começaram a fazer foi conceder terras, geralmente terras que eram de posse exclusiva de povos indígenas”, explica.
Duprat também citou a história do povo Panará, que em 1973 foi retirado de seu território, no Mato Grosso, e transferido para o Parque Indígena do Xingu. Os integrantes só conseguiram retornar em 1997. “Eles foram colocados juntos com grupos inimigos e os Panará anotaram todas as mortes, conseguiram uma coisa que poucos povos conseguiram: retornar ao seu território tradicional depois de muitos anos”, contou a jurista.
‘Precisamos demandar isso’
A antropóloga Braulina Baniwa, que também esteve na plenária, explicou que existe uma necessidade das organizações e dos parentes indígenas abordarem mais sobre o tema em suas reuniões e assembleias, levando o debate para dentro dos territórios e criando espaços de compartilhamento de memórias.
“Todos os povos indígenas durante a colonização sofreram algum tipo de violência e violação dentro dos territórios. Então, não tem como falar dessa pauta de forma isolada. Esse trabalho só vai avançar se a gente dialogar com diferentes instituições e nós, povos indígenas, falarmos dessa dor, porque falar dessa violência é rememorar as dores que foram sentidas por quem nos antecederam, porque, quando são romantizadas aquelas histórias de ‘minha avó foi pega no laço’, você está falando de uma violência”, explicou.
Ela contou aos indígenas presentes na plenária que, na semana passada, quando o presidente Lula reativou o Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI), essa foi uma das pautas apresentadas. As organizações lutam pela criação da Comissão Indígena da Verdade, mas também pela formalização de grupos que estejam debatendo o assunto.
“Assim como falamos de educação, saúde e demarcação, a pauta da memória e justiça precisa ser falada, porque, para que se torne um grupo de trabalho, um decreto, uma lei, precisam demandar isso para os procuradores federais, precisamos demandar isso para os nossos ministros, precisamos colocar a importância dessa pauta”, afirmou a antropóloga.
Anistia coletiva
No início deste mês, o país concedeu, pela primeira vez, a anistia coletiva e um pedido de desculpas formal aos indígenas Krenak, do leste de Minas Gerais, e aos Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. A solicitação por reparação foi feita em 2015, pelo procurador Edmundo Antônio Dias, que também estava na plenária. “Começa por um ato de reparação simbólica, que não quer dizer tudo, mas que é um meio importante, que é o pedido de desculpas. O pedido de desculpas significa em primeiro lugar o reconhecimento do Estado brasileiro dessas graves violações que foram cometidas”, afirma Dias.
Em março, o MPF recomendou que, em até 60 dias, o governo recrie a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticas, que foi extinta no final de 2022. Desde o início do novo governo, um decreto de recriação está tramitando internamente e ainda não foi assinado. O documento está na Casa Civil. A comissão tem por objetivo investigar os desaparecidos durante o período da ditadura militar.
A jurista Deborah Duprat afirmou que a anistia coletiva e o pedido de desculpas são pontos positivos, mas que é preciso continuar pressionando pelas medidas que visam resgatar a memória. “Esse reconhecimento como vítimas da ditadura tem o poder de fortalecer também a luta de mortos e desaparecidos que está muito enfraquecida no momento. Estamos no momento de reunir lutas, cada vez mais alianças, porque sozinhos pouco avançaremos”, disse.