O governo do estado autorizou o uso do fogo dentro de 55 fazendas para o manejo de pastagens até 10 de fevereiro. Dentre elas, análise da InfoAmazonia detectou que 19 propriedades continuaram queimando áreas dentro e fora de seus limites após o prazo, incendiando florestas que deveriam ser preservadas. A liberação da gestão de Antonio Denarium (PP) ocorreu durante seca intensa e a mais grave temporada de queimadas já registrada em Roraima, segundo dados do Inpe.
No início deste ano, o governo de Roraima liberou o uso de fogo no manejo de pastagens para 55 fazendas do estado. Os fazendeiros receberam o aval para queimar um total de 9.497 hectares (ha) até 10 de fevereiro, mas as queimadas continuaram mesmo após o fim da autorização. Um levantamento da InfoAmazonia, com base em análises do Greenpeace e informações públicas, detectou 19 casos em que o fogo nessas propriedades ocorreu fora do prazo autorizado, em alguns casos até 8 de abril, em áreas recentemente desmatadas e em florestas que deveriam ser preservadas.
A autorização da gestão de Roraima, do governador Antonio Denarium (PP), ocorreu em meio a mais grave temporada de queimadas já registrada no estado. Com a repercussão do problema e da estiagem, em 20 de fevereiro, o governador Denarium recuou e suspendeu o uso de fogo no estado, impedindo a renovação ou emissão de novas licenças. Mas as queimadas não pararam. Entre 1º de janeiro e 31 de março deste ano, o sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) contabilizou 4.093 focos de calor, maior número desde 1998. O principal pico ocorreu em 22 de março, quando 603 focos foram registrados pelo satélite de referência (Aqua-Tarde). O aumento é de 310% em relação ao mesmo trimestre do ano passado, quando foram registrados 997 focos.
Mais da metade dos focos (51%) de queimadas deste ano ocorreu em áreas de florestas primárias: A floresta primária, também conhecida como floresta clímax ou mata virgem, é a floresta intocada ou aquela em que a ação humana não provocou significativas alterações das suas características originais de estrutura e de espécies., segundo os dados do Inpe, que, por serem densas e úmidas, deveriam ser menos suscetíveis ao fogo. Em fevereiro, o Inpe emitiu uma nota técnica, indicando que o aumento das queimadas “provavelmente está sendo influenciado pela diminuição da precipitação no estado, que apresenta valores abaixo da média histórica”. A região está sob influência do El Niño, que provoca um período de estiagem mais severo acima da linha do equador. E, diferente dos demais estados da Amazônia brasileira, onde o verão amazônico terminou em outubro, em Roraima ele vai de dezembro a abril.
“É preciso lembrar que, no ano passado, a crise climática foi classificada pelos cientistas como a principal causa da seca na região. Não por coincidência, acabamos de sair do ano mais quente registrado na história, 2023, e ainda enfrentamos efeitos intensos do fenômeno El Niño”, diz Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace.
No entanto, os especialistas apontam outros fatores de influência regional em Roraima, que vão além do El Niño e do impacto global das mudanças climáticas no aumento dos registros de fogo neste ano: entre eles, o desmatamento ilegal e o uso não adequado do fogo para manejo de pastagens, como é o caso das fazendas que continuaram a queimar suas áreas mesmo após o período de autorização do estado.
“O fogo na área de floresta densa é mais difícil. Uma das explicações é a relação direta com as fazendas próximas, que fazem a retirada seletiva da madeira e deixam a floresta mais raleada. Com isso, ocorre mais entrada de luz e o substrato que está ali vai secando. Quando ele coloca fogo na pastagem o fogo acaba atingindo essas áreas”, explica Luis Maurano, tecnologista sênior do Inpe.
As fazendas que queimaram
Para entender como ocorreu o uso do recurso do fogo especificamente pelas fazendas liberadas pelo governo de Roraima, a InfoAmazonia analisou dados do sensor VIIRS: O VIIRS é um sensor desenvolvido pela National Oceanic Atmospheric Administration (NOAA) em parceria com a NASA e orbita a terra. Seus dados são usados para observar a superfície da Terra incluindo incêndios, gelo, oceano, cores, vegetação, nuvens e as temperaturas da terra e dos oceanos., que está a bordo do satélite NOAA-20, com precisão de 375 metros, para mostrar onde realmente queimou dentro e ao redor das áreas.
A análise foi complementada com informações do Greenpeace, que investigou os processos administrativos relacionados às 55 licenças emitidas em 2024, e identificou queimadas em pelo menos 10 fazendas autorizadas após 21 de fevereiro, quando foi decretada a suspensão para uso de fogo em todo o estado.
Para a organização, “é inaceitável que o governo estadual tenha concedido licenças para queimadas nessa situação, elevando os focos de calor na região, colocando em risco o meio ambiente e a saúde da população”.
Entre as 19 fazendas detectadas pela reportagem com focos a partir de 10 de fevereiro, está a Aurora, no município de Iracema, onde 150 focos foram registrados após o vencimento da licença, até 8 de abril. O fogo começou dentro da propriedade no mesmo dia do vencimento da licença, sobre uma área recentemente desmatada, e se expandiu para fora dos limites da propriedade.
Já na fazenda Guaporé, no município de Rorainópolis, mesmo com a proibição, o fogo foi usado logo após a derrubada da floresta. O sensor VIIRS registrou 30 focos de calor na propriedade, 29 deles após 10 de fevereiro. O desmatamento na área começou no segundo semestre de 2023 e se manteve ativo nos três primeiros meses de 2024. Segundo o Greenpeace, não foram encontradas autorizações para corte de vegetação nesta área.
Outra recordista em focos de calor foi a fazenda Amizade, com 58 registros entre janeiro e fevereiro deste ano. A fazenda licenciada para uso de fogo queimou áreas de pastagens no município de Caracaraí, um dos mais afetados no estado pelas queimadas.
Em todos os casos onde há registro de fogo além do limite das fazendas, ficou constatado que os incêndios começaram dentro das propriedades e depois se alastraram para fora, em diversos casos alcançando áreas de floresta ou desmatamentos recentes. As imagens de satélite do início deste ano mostram uma grande concentração dos focos de incêndio próximos das novas frentes de exploração agropecuária, onde as áreas de floresta estão mais vulneráveis e menos úmidas.
Apenas uma das áreas deixa dúvidas se o fogo teve início no interior da propriedade: a fazenda Olho D’Água, no município de Amajari, onde os focos ocorreram praticamente de forma simultânea dentro e fora da delimitação. Entre as áreas analisadas, é a terceira com maior número de focos após 10 de fevereiro.
Em uma nota pública, a Diocese de Roraima e 33 organizações sociais que atuam no estado e expressaram preocupação com o que chamaram de “descaso do governo estadual” diante da crise ambiental causada pelas queimadas. Segundo as organizações, a situação foi agravada pela falta de políticas eficazes para enfrentar a emergência climática e com as autorizações para mais queimadas durante esse período.
“Tais medidas tiveram como consequência o aumento dos focos de incêndio em diversos municípios do estado, por meio de fortes ventos e seca. Não houve qualquer medida mais eficaz de prevenção e controle, tendo gerado uma quantidade alarmante de fumaça, afetando diretamente a saúde dos povos ribeirinhos, indígenas, moradores da cidade e do campo”, diz trecho da nota.
Agropecuária em expansão
O governador Antônio Denarium, que também é fazendeiro e sócio no maior frigorífico do estado, tem apostado fortemente na expansão agropecuária no estado de Roraima. Sob a sua administração, o número de cabeças de gado cresceu 60%, saindo de 750 mil cabeças para um rebanho de 1,2 milhão de bovinos.
No mesmo período, a área de pastagem aumentou 25%, saindo de 804 mil hectares, em 2019, para mais de 1 milhão de hectares, em 2022, segundo dados da rede MapBiomas.