Governo de Roraima comprou carne de frigorífico do qual governador é sócio, através de empresário investigado por fraudes em licitações; Frigo10 também fechou contrato com governo federal na gestão Bolsonaro para fornecer 8 toneladas de contra-filé para o Exército. Organização de transparência vê ‘evidente conflito de interesses’ nas transações.

A H. S Neves se tornou um fenômeno nas licitações do governo de Roraima. Fornecendo de bolas de futebol a mobiliário para escritório e alimentos, a empresa fechou mais de R$ 138 milhões em contratos públicos com o governo do estado desde 2020. A InfoAmazonia teve acesso a documentos que apontam uma série de falhas e questionamentos nessas licitações. 

A empresa é administrada por Ednaldo Barbosa de Araújo, empresário investigado em sete ações na Justiça Federal, incluindo fraudes em licitações e desvio de verbas destinadas às prefeituras de Roraima. As denúncias estão relacionadas com as empresas Powercomp, Eba Comércio e  D. L. M. Nunes Eireli, registradas em nome de Araújo ou administrada por ele. 

Ascom/RR
Venda de carne do Frigo10, frigorífico que tem o próprio governador Antonio Denarium (PP) como sócio

Mesmo assim, o empresário assinou diversos contratos com o governo de Roraima como representante legal da H. S Neves – entre eles um de venda de carne do Frigo10, frigorífico que tem o próprio governador Antonio Denarium (PP) como sócio

No último 17 de março, Ednaldo Araújo assinou, como representante da H. S Neves, contrato no valor de R$ 3,1 milhões, que inclui o fornecimento de 68 mil quilos de carne do Frigo10.

Reprodução
Documento com proposta de venda da H.S. Neves

Neste mesmo dia, outro contrato firmado por Ednaldo Araújo foi publicado no Diário Oficial. Desta vez, no valor de R$ 52 milhões, para o fornecimento de 300 mil cestas básicas ao governo de Roraima. Nos dois casos, a contratação ocorreu pela Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (SETRABES).

A H.S Neves foi criada em março de 2020. Dois meses depois, firmou o primeiro contrato com o governo de Roraima, com licitação dispensada, para fornecer materiais de higiene em ações de prevenção à Covid-19 do Tribunal de Contas do Estado.

Secom/RR
Homem carregado de bicicleta cesta básica fornecida pelo governo do estado de Roraima

A firma está registrada no nome de Helvercio Sevalho Neves Junior, de 26 anos. Nos contratos e documentos da H. S Neves não há muitas informações sobre o dono da empresa. O pouco que se sabe sobre o  jovem Helvercio é que concluiu o ensino fundamental na Escola Estadual Lobo D`Almada, na capital Boa Vista, em 2016 e que, apesar dos contratos milionários,  recebeu auxílio emergencial do Governo federal durante a pandemia.

Cristiano Pavini, analista sênior de transparência da Transparência Brasil, organização que atua pela transparência e controle social do poder público, avaliou as informações levantadas pela InfoAmazonia nos contratos da H.S Neves e afirmou que “chama a atenção quando uma empresa recém-criada consegue contratos vultosos com o poder público, principalmente se assinados mediante dispensa de licitação”. 

Chama a atenção quando uma empresa recém-criada consegue contratos vultosos com o poder público, principalmente se assinados mediante dispensa de licitação

Cristiano Pavini, analista da Transparência Brasil

A organização, que atua no controle externo da administração pública, reforça que os indícios de fraude exigem maior rigor dos órgãos de controle para esse tipo de contratação.

“É necessário especial atenção dos órgãos de controle externo, como Ministério Público e Tribunal de Contas, para verificar se ela cumpriu com as obrigações exigidas nos editais e se as informações prestadas, como capacidade técnica, liquidez, balanços financeiros e relação societária, correspondem à realidade. Deve-se verificar, também, eventual flexibilização indevida das exigências nos editais que permitiram a participação da empresa no certame”.

14 contratos e R$ 138 milhões dos cofres públicos

A InfoAMazonia identificou 14 contratos entre a empresa e o governo de Roraima, que já empenharam R$ 138 milhões dos cofres públicos.

A idoneidade das licitações vencidas pela H. S Neves tem sido questionada, principalmente, pelas suas oponentes. No último pregão em que a empresa participou, em 8 de março, seis concorrentes contestaram o resultado e um deles levantou suspeitas sobre o edital por observar “fortes indícios de um processo licitatório direcionado”. Os empresários apontam que a H. S “se encontra suspensa de licitar” com o poder público e que  “o balanço da empresa não condiz com a realidade”.

O pregão foi concluído sem análise das intenções de recursos das outras empresas. O juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública de Roraima, Guilherme Versiani Gusmão Fonseca, concedeu mandado de segurança que obriga a Comissão de Licitações a analisar os recursos dos outros licitantes. Mas o Estado não cumpriu a decisão da Justiça.

Em outra licitação, realizada em agosto de 2022, para compra de alimentos da merenda escolar, a H. S Neves foi contratada para o fornecimento de oito itens das refeições, mais uma vez incluindo o Frigo10 como fornecedor de carne.

O resultado também foi contestado na Justiça. A primeira colocada no pregão, a empresa Cantal & Miranda, que foi desclassificada pela Comissão de Licitações por supostamente não se enquadrar como empresa de pequeno porte (EPP),  pediu anulação do ato do pregoeiro e abertura de investigação do MPF por considerar “má-fé e total parcialidade” na condução da licitação, pedindo que o órgão investigue “possíveis condutas ilícitas”. 

A Justiça chegou a conceder liminar para suspender a licitação, mas a decisão foi anulada, sob alegação de que a Cantal & Miranda não juntou no processo a íntegra do processo licitatório.

Nesse contrato, que segue em vigor, a H. S Neves já forneceu 80 toneladas (80 mil quilos) de carne adquiridas do Frigo10, totalizando R$ 2,9 milhões faturados em carne.

Reprodução/TJRR
Mandado de Segurança da empresa Canta & Miranda cobra investigação do MP para investigar “possíveis condutas ilícitas”.

Sócio oculto, entregas e reclamações trabalhistas

Ednaldo Araújo e suas empresas Powercomp, Eba Comércio e  D. L. M. Nunes Eireli respondem a pelo menos sete ações na Justiça Federal.

Em um dos processos em que responde por declarações falsas às autoridades fazendárias, a esposa de Araújo afirmou que “cedeu seu nome para a constituição da empresa” D. L. M. Nunes Eireli, mas quem administrava era o marido por meio de procuração. Os contratos da D. L. M foram alvos da Operação Libertatem. Segundo a CGU, a empresa foi beneficiada em licitações da prefeitura de Normandia, em Roraima. 

Algumas empresas de Araújo são acusadas de descumprir contratos públicos. Em 2020, a H. S Neves não entregou “equipamentos e materiais permanentes” para atender a Unidade de Assistência e Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), motivo pelo qual havia sido contratada. O mesmo ocorreu com o Instituto de Previdência de Roraima, onde os materiais não foram entregues. Ele foi multado pelo TCU.

Em 2021, a H.S Neves chegou a ter o direito de participar de licitações públicas suspenso por descumprir  contrato com o Corpo de Bombeiros de Roraima. Mas a decisão foi revista pelo comandante-geral, e a punição foi retirada.

O relatório do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) que pedia a punição da empresa reincidente mostra o descaso de Araújo com os prazos para entrega de produtos de atendimento pré-hospitalar (APH). Em conversa com servidor do Corpo de Bombeiros, anexada ao relatório, o empresário reclama dos valores do edital ao ser cobrado pela entrega dos produtos: “Problema são os preços. Defasados demais”.

Reprodução/PAD
Em conversa com funcionário do Corpo de Bombeiros que cobrou por produtos licitados não entregues, Araújo reclama de preços defasados.

Na Justiça do Trabalho, a H. S Neves é alvo de reclamação trabalhista por utilizar mão de obra de venezuelanos sem respeitar os direitos “tais como pagamentos de salários, férias mais o terço constitucional, 13o salários e FGTS (depósitos regulares), dentre outros”. Em alguns casos, os trabalhadores chegavam a ficar 13 horas na empresa preparando cestas básicas dos contratos com o governo do estado.

Apesar do volume de recursos contratados com o poder público, a H. S Neves não tem nenhum funcionário com carteira assinada.

8 toneladas de contra-filé

Em agosto de 2019, o Frigo10 fechou contrato com o governo federal, através de pregão eletrônico, para fornecimento de carne para a Base da Força Aérea de Boa Vista. Em 10 meses, o frigorífico forneceu oito toneladas de contra-filé para o batalhão.

A InfoAmazonia solicitou cópias do contrato entre a empresa em que o governador é sócio e o governo federal via Lei de Acesso à Informação, o Comando da Aeronáutica pediu duas vezes adiamento do prazo e quando respondeu não apresentou os contratos. Nós recorremos, e ainda aguardamos acesso a estes documentos.

Platô Filmes/Divulgação
Vista aérea da Planta do Frigo10

Apesar da relação de proximidade entre Denarium e o ex-presidente Jair Bolsonaro —os dois foram aliados nas eleições de 2018 e em 2022 defendendo o agronegócio como plataforma de governo—, não há impedimento legal para realização de contrato entre o governo federal e a empresa de qual o governador estadual é sócio, segundo o advogado Emerson Moura, vice-presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

“O ato administrativo ilegal quase sempre se reveste de legalidade, é necessário um escrutínio muito cuidadoso, porque a ilegalidade nunca é patente, por isso que para verificar ilegalidade na administração pública é necessário ser bastante cuidadoso”, afirma Moura.

O ato administrativo ilegal quase sempre se reveste de legalidade, é necessário um escrutínio muito cuidadoso, porque a ilegalidade nunca é patente

Emerson Moura, vice-presidente da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

Sobre o fornecimento de carne através do Frigo10, frigorífico em que o governador é sócio, Pavini, da Transparência Brasil, destaca: “há evidente conflito de interesses quando um agente político contrata, mesmo que indiretamente, sua própria empresa para prestar serviços ou fornecer produtos para o ente público que comanda”, afirma.

Servidores do Estado fizeram consulta de preços com a Frigo10 por WhatsApp. Reprodução/Diretoria de Triagem

Para o analista, “a transparência já é regra na administração pública, mas deve ser especialmente amplificada nesses casos, de modo a garantir o exercício do controle social na fiscalização da tramitação dos processos licitatórios, dos preços praticados e da execução contratual”, completa.

Há evidente conflito de interesses quando um agente político contrata, mesmo que indiretamente, sua própria empresa para prestar serviços ou fornecer produtos para o ente público que comanda.

Cristiano Pavini, analista da Transparência Brasil

Em 2021, a Diretoria de Triagem, que analisa a legalidade dos termos de referência para as licitações do governo, alertou que servidores do governo do estado de Roraima fizeram consulta de preços de carne com o Frigo10 por WhatsApp, ignorando qualquer tipo de formalidade necessária para abertura de licitação. 

A consulta foi incluída no Banco de Preços, que é utilizado como referência para as licitações do governo. E, para todos os itens, o Frigo10 apresentou valores abaixo da média de preços dos demais fornecedores cadastrados.

Negócio próspero

Inaugurado em 2017 por um grupo de empresários do agronegócio liderado por Antonio Denarium, o Frigo10 foi o primeiro no estado com Serviço de Inspeção Federal (SIF) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), responsável por garantir a qualidade de produtos de origem animal em todo o país.

Na época, Denarium disse que o  Matadouro e Frigorífico Industrial de Roraima (Mafir), então administrado pelo governo do Estado, não dava conta da demanda local, motivo pelo qual ele e os demais empresários decidiram construir seu próprio matadouro particular.

Secom/RR
Eleito em 2018 e reeleito 2022, Denarium teve como bandeira a defesa do agronegócio

Em 2018, o mesmo grupo de empresários escolheu Denarium para concorrer ao governo do estado. Colado em Jair Bolsonaro, o governador foi eleito pelo PSL tendo como plataforma o investimento no agronegócio.

Após eleito, Denarium fechou de vez o Mafir e demitiu os funcionários, descumprindo uma promessa da campanha de 2018 de que não fecharia o frigorífico público

A gestão de Antonio Denarium priorizou setores do agronegócio como pecuária e a produção de grãos, principalmente para produção de ração animal que alimenta os rebanhos. O número de cabeças de gado no estado cresceu mais de 40% em quatro anos e, mesmo sem o abatedouro público, o Frigo10 é capaz de atender a demanda do estado, podendo abater até 700 animais por dia.

Mas enquanto o gado engordou e o milho cresceu, os povos indígenas de Roraima mergulharam em uma profunda crise humanitária, em grande parte motivada pelo avanço do desmatamento e do garimpo ilegal, que em diversos momentos teve apoio explícito da gestão do governador Denarium.

Em uma série de reportagens sobre a situação em Roraima, a InfoAmazonia revelou que um dos sócios de Denarium no Frigo10, o pecuarista Ermilo Paludo, está associado ao desmatamento em terras indígenas para criação de gado. Ele teve áreas embargadas na Terra Indígena Yanomami, onde resistiu por anos criando gado ilegalmente. No final do ano passado, Paludo recebeu uma área de floresta pública a título de doação do estado de Roraima para criar gado e explorar ouro.

A InfoAmazonia também mostrou que outro sócio de Denarium, o ex-deputado e pecuarista José Lopes Primo, foi contratado para o projeto de grãos em terras indígenas, que tem como objetivo atender demandas do agronegócio local com abertura de lavouras nos territórios. O programa foi executado com uso de sementes transgênicas, o que é proibido pela legislação brasileira. Organizações indígenas questionam a legalidade do processo, que foi implantado sem consulta adequada às comunidades.

Ministério Público pede informações à reportagem

O Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR), por meio da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público, informou que não foi constatada nenhuma ação da promotoria contra a H. S Neves. “Há um procedimento instaurado recentemente, o qual a parte pede a impugnação da H. S. Neves em processo licitatório por inobservância de requisitos legais em sua habilitação”. 

A Promotoria afirmou ainda que “tem interesse nos fatos narrados [pela InfoAmazonia]” e solicitou compartilhamento das informações apuradas por esta reportagem “a fim de analisar o material e adotar as providências cabíveis”.

A reportagem enviou perguntas para a assessoria do governo do estado de Roraima e para o governador Antonio Denarium, mas não obteve respostas. Também enviamos perguntas para Ednaldo Barbosa de Araújo, para o conselheiro Wellington Feitoza dos Santos e para o Tribunal de Contas de Roraima, nenhum deles respondeu nossos questionamentos.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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