A InfoAmazonia conversou com um vendedor que ofereceu uma balsa na região do rio Madeira, que em 2021 chamou atenção do país por imagens de garimpo ilegal dominando o curso das águas. Em fevereiro, o MPF abriu inquérito para investigar venda de mercúrio líquido em plataformas de comércio online, entre elas, a OLX e o Mercado Livre.
Mercúrio, equipamentos e balsas para garimpagem estão sendo vendidos em plataformas de comércio online que atuam no Brasil. A InfoAmazonia encontrou anúncios das embarcações no site OLX, com preços entre R$ 25 mil e R$ 400 mil. Em fevereiro, o Ministério Público Federal (MPF) abriu dois inquéritos para apurar a venda do mercúrio na internet, comercializado também no Mercado Livre.
Em um dos anúncios da plataforma de comércio eletrônico OLX, o vendedor oferecia uma embarcação “de garimpo” no rio Madeira, município de Humaitá, Amazonas, mesma região em que, em 2021, a imagem de uma fila de balsas garimpeiras dominando o curso das águas chamou a atenção do país. Ao entrar em contato com o dono do anúncio, a InfoAmazonia confirmou que a balsa estava à venda, além de receber vídeos e fotos do produto.
“Boa tarde, a senhora se interessa de comprar essa balsa? Eu tô vendendo ela. Tá seminova essa balsa. Bonita hã… bem grandona, ela tem 12, ela é 12 por 6, tem um motor, tá completo, completo mesmo, tem com motor, com tudo, o maquinário completo”, disse o vendedor.
‘A senhora se interessa de comprar essa balsa? Eu tô vendendo ela’, diz vendedor à reportagem da InfoAmazonia.
A venda online de produtos e maquinários para uso no garimpo entrou na pauta dos órgãos federais no início deste ano. Em 15 de fevereiro, o Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) instaurou um inquérito civil para investigar a venda de mercúrio líquido na OLX. Já em 22 de fevereiro, o órgão abriu um outro inquérito para investigar o site Mercado Livre pelo mesmo motivo.
“Chegou ao conhecimento deste órgão do Ministério Público Federal que o sítio eletrônico OLX tem sido utilizado para o comércio de mercúrio líquido sem qualquer controle sobre a procedência do material e as partes envolvidas nas transações”, diz o documento.
O MPF afirma que há uma preocupação porque o mercúrio está “intrisicamente relacionado à atividade do garimpo ilegal” e que, para venda legal da susbtância, é necessário que o comerciante esteja registrado no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e/ou Utilizadores de Recursos Ambientais (CTF/APP), de acordo com norma do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
No caso da OLX, existem regras dentro de sua política interna para anúncios que proibem esse tipo de comercialização: “[são proibidas] Substâncias químicas perigosas (como por exemplo acetona, ácidos perigosos, venenos, cloro, amônia, mercúrio, “cola de sapateiro” etc); Preparações cosméticas ou químicas perigosos, inclusive escova progressiva, cosméticos usados”, diz o texto disponível na plataforma. Também é proibida a venda de produtos “sem a homologação, aprovação e registro de órgãos governamentais ou agências regulamentadoras”, diz a OLX.
No Mercado Livre, a política interna também proíbe a venda: “não é permitido anunciar e/ou solicitar: precursores químicos, substâncias controladas e/ou produtos químicos ou industriais cuja venda esteja sujeita a licença de venda controlada”, diz a plataforma em sua página sobre as regras para venda dos produtos.
Em 2021, a InfoAmazonia já tinha mostrado como funcionam as vendas de mercúrio e áreas de garimpo na internet, mas especificamente em grupos do Facebook. A reportagem encontrou anúncios de lotes sendo vendidos dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, em Itaituba, no Pará. Neles, garimpos operavam sem a documentação exigida. Os valores chegavam aos R$ 120 milhões por uma área.
Fiscalização e o direito do consumidor
A fiscalização da venda de produtos online segue as mesmas leis existentes para o offline. O advogado Lucas Marcon, do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), explica que o consumidor tem o direito de entrar numa plataforma e não ser exposto a produtos que ofereçam danos à pessoa ou ao ambiente.
“No Código de Defesa do Consumidor, existe mais de uma previsão de que as pessoas têm que ser protegidas de comprar produtos ou serviços que são considerados perigosos. Aí tem a responsabilidade da pessoa que coloca o produto à venda, mas também da plataforma que vai expor o marketplace: Mercado online que funciona como um shopping, em que vendedores e compradores fazem negócio. desse produto para as pessoas”, explica Marcon.
O advogado diz que a responsabilidade das plataformas está sendo discutida por especialistas no Brasil, fóruns, congressos, organizações, e que, por enquanto, é necessário ter uma boa interpretação da lei.
“Se você pega pelo Código de Defesa do Consumidor, é claro que não podem ser oferecidos produtos nocivos à vida. O artigo 18 fala que não se pode expor produtos que são impróprios ao uso e consumo, entre eles aqueles que oferecem risco, como o mercúrio, além daqueles que estão em desacordo com normas regulamentares de fabricação e distribuição. Então, produtos de garimpo no geral podem ser enquadrados dentro dessa norma”, explica.
Sobre a venda de balsas para garimpo, Marcon explica que as plataformas devem ter responsabilidade e saber se estão vendendo produtos legalizados ou não. De acordo com o advogado, como o garimpo é uma atividade controlada pelo Estado, os produtos que estejam sendo comercializados para esse fim precisam ser fiscalizados.
“Pelo Idec, entendemos justamente que as plataformas possuem responsabilidade de monitorar os produtos que são disponibilizados, não podendo oferecer produtos ilegais ou que apresentem riscos aos humanos e ao meio ambiente — o que já está presente no Código de Defesa do Consumidor. Claro que existem produtos legais que podem ser utilizados de forma inadequada pelo usuário e causar dano ambiental, mas produtos de garimpo são necessariamente utilizados para essa atividade controlada e podem impactar o ecossistema. Então, deveriam existir regras específicas da empresa para limitar ou controlar a venda, se não quiserem proibir”, diz.
A InfoAmazonia questionou a OLX e o Mercado Livre sobre a abertura dos inquéritos e quais são as formas de verificação dos produtos vendidos dentro das plataformas, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
Os riscos do mercúrio
Em 2017, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução proibindo a venda de termômetros com coluna de mercúrio. O risco é a quebra do objeto, que pode provocar o derrame do produto e causar intoxicação, problemas no coração, rins e danos nos sistemas nervoso, digestivo e imune.
Se uma pequena quantidade de mercúrio nas mãos já apresenta um risco, o produto em maior quantidade pode ser ainda mais perigoso. No inquérito, o MPF alega que a gravidade é maior na Amazônia, onde a substância é usada no processo da extração de ouro. O metal líquido é usado para separar o ouro de outros sedimentos – quando derretida, a substância forma amálgamas, evapora e o ouro é obtido.
Depois, a parte do mercúrio que sobra e entra em contato com o rio acaba sendo absorvida por partículas orgânicas e, depois, é transformada por bactérias em metilmercúrio, que serve de alimento para microalgas, larvas de peixes e insetos, que vão servir de alimento para os peixes, até chegar na mesa do consumidor. Em maio de 2022, a InfoAmazonia publicou reportagem mostrando como funciona o caminho do mercúrio, desde o uso no garimpo até a contaminação de indígenas Munduruku, no Pará.
“O mercúrio é um contaminante extremamente perigoso em função de: a) sua grande capacidade de mobilização entre diferentes compartimentos ambientais (atmosfera, solo, corpos d’água, plantas e animais); b) sua longa persistência no ambiente; c) sua capacidade de penetrar na cadeia alimentar, atingindo principalmente os peixes, que constituem fonte essencial de nutrientes para todos os povos que vivem na Amazônia, originários ou não”, disse o MPF.
Convenção de Minamata
O Brasil é signatário da Convenção de Minamata sobre Mercúrio da Organização das Nações Unidas (ONU), que tem como objetivo proteger a saúde humana e o meio ambiente dos riscos provocados pelo uso da substância. A convenção foi firmada em 2013, e, entre os fatos que a fundamentaram, está a história dos moradores da cidade de Minamata, no Japão, que apresentarem sintomas de perda de consciência, febre, surtos e convulsões devido à intoxicação por meio do consumo de peixe na década de 50.
Os animais foram contaminados por água residual da indústria química Chisso, que utilizava a substância e descartava resíduos na Baía de Minamata. O artigo nº 12 da convenção diz que os países devem se comprometer a criar estratégias para identificar e avaliar as áreas contaminadas com mercúrio ou compostos de mercúrio.
O advogado Maurício Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirma que as metas da convenção precisam ser cumpridas pelas autoridades. “Essa convenção, assim como alguns outros tratados internacionais que o Brasil é signatário, como por exemplo a Convenção nº 169 da OIT, é uma convenção que sistematicamente é ignorada pelo próprio Estado brasileiro. A gente percebe, atuando dentro da pauta indígena, que o Brasil não tem um costume político de fazer com que esses mecanismos, esses tratados internacionais, sejam de fatos observados. A Convenção de Minamata é um importante instrumento no qual foi proibido a utilização do mercúrio para a produção e industrialização do mercúrio”, afirma.
Maurício explica que, a proposta do tratado é dificultar o acesso ao item, o que vai contra a comercialização em plataformas digitais. “O mercúrio deveria ser uma substância de difícil acesso, não deveria ser algo que qualquer pessoa poderia ter”, diz o advogado.
Para ele, o Brasil precisa discutir a responsabilidade das plataformas digitais. Ele avalia que há um entrave no Congresso Nacional, que impede o avanço de políticas de punição e fiscalização.
“A gente enquanto sociedade está passando por um momento em que não está dando mais para ignorar o impacto das plataformas, dentro de diversos segmentos. A partir do momento em que essas plataformas são utilizadas pelo crime organizado ou por pessoas que atuam de maneira isolada para cometer crimes, essas plataformas em alguma medida estão sendo cúmplices com esse ilícito”, afirma.