Parlamentares apontam manobra dos irmãos Batista para concentrar poder por meio da J&F, que teve como consultor jurídico o novo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski; a denúncia afirma que ‘a JBS está ligada a mais destruição de florestas do que qualquer outra empresa no Brasil’ e que depois de uma década envolvida em casos de corrupção, agora, quer se beneficiar com dinheiro dos investidores norte-americanos.
Senadores americanos apresentaram uma denúncia à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA: A Comissão de Valores Mobiliários é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda e que, juntamente com a Lei das Sociedades por Ações, disciplina o funcionamento do mercado de valores mobiliários e a atuação de seus responsáveis. (SEC, na sigla em inglês) contra a tentativa da JBS, maior companhia produtora de carne do mundo, de lançar ações na bolsa de Nova York. O documento é assinado por 15 parlamentares, entre republicanos e democratas, e aponta “histórico de corrupção, abusos de direitos humanos, monopolização do mercado de frigoríficos, bem como riscos ambientais” e pede anulação da proposta apresentada pela empresa brasileira. Esta é a quinta reclamação registrada contra a entrada da JBS no mercado de capitais norte-americano.
Os parlamentares acusam os irmãos Joesley e Wesley Batista de tentarem uma manobra para reestruturar o poder de voto dos acionistas e deter domínio absoluto sobre as decisões da companhia por meio da J&F, empresa controladora da JBS que teve como consultor jurídico o agora ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.
A proposta de reestruturação consta no mesmo pedido da empresa frigorífica para ingressar na Bolsa de Nova York. A mudança concentraria as ações com maior poder de voto na J&F. Para isso, a nova estrutura prevê a criação de uma empresa, a JBS NV, na Holanda, da qual a J&F, por meio da LuxCo, vai deter 100% das chamadas ações classe B, que têm menos liquidez, e dá direito a 10 votos por ação. Isso faria com que os acionistas detentores das ações Classe A, que têm peso de 1 voto por ação, tenham direito a dividendos, mas pouco poder de decisão — veja gráfico de como deve ficar a estrutura da JBS e a relação entre poder de voto e ações da companhia.
Com essa engenharia, os irmãos Batista continuariam sendo donos de 48% da empresa, mas teriam 85% do poder de decisão. O restante das ações seriam redistribuídas da seguinte forma: 20,81% para o Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), com 6,09% dos votos; e 30,36% para outros acionistas, com 8,88%.
O prospecto apresentado pela JBS à SEC afirma que os investidores minoritários não terão qualquer influência sobre decisões da empresa, como mostra o seguinte trecho: “os acionistas controladores finais [os irmãos Batista] deverão ter influência sobre a condução dos nossos negócios e poderão ter interesses diferentes dos vossos”. No entanto, os senadores destacam o passado recente da família, envolto em casos de “corrupção flagrante e sistêmica”.
Os parlamentares afirmam que a reestruturação concentra poder nas mãos dos irmãos Batista: “Dessa forma, as opções legais dos investidores americanos seriam substancialmente limitadas no caso de os acionistas majoritários agirem de forma conflitante ou se prejudicassem seus interesses”, alegam os parlamentares, apontando que a JBS tem um “histórico de enganar os investidores em seus registros corporativos”.
Delações e multas
Em delação premiada firmada com a Justiça brasileira, os irmãos Batista admitiram terem pago propina para 1.900 políticos em uma década. O escândalo, deflagrado a partir de 2017, chegou ao ponto do então presidente da República, Michel Temer (MDB), ser gravado por Joesley Batista. A empresa é alvo de diversas investigações no Brasil e nos EUA, onde também assinou acordos de confissão.
Vale lembrar que, em outras ocasiões, o conselho da JBS já tomou decisões controversas para os irmãos Batista, como a de cobrar deles uma multa por exposição da companhia nos escândalos de corrupção.
Além disso, os senadores lembram que a empresa já é alvo de outra denúncia na SEC por suposta prática de greenwashing com a venda de títulos verdes para investidores nos EUA e que a companhia não demonstra que vai adotar medidas para frear o desmatamento ilegal na Amazônia para criação de gado em sua cadeia de abastecimento.
“Dezenas de reportagens e relatórios de ONGs mostraram que a JBS está ligada a mais destruição de florestas e outros ecossistemas do que qualquer outra empresa no Brasil. A empresa tem prometido repetidas vezes que eliminará o desmatamento, mas não tomou medidas significativas para fazê-lo, apesar de seu conhecimento direto do extenso desmatamento em sua cadeia de suprimentos”, escrevem os senadores.
Informações apresentadas pela própria JBS à SEC, uma exigência do órgão americano para demonstrar transparência sobre riscos a que potenciais empresas investidoras estão sujeitas, mostram que a companhia estima que sua exposição criminal atual é de US$ 463,5 milhões e de US$ 2,1 bilhões em ações judiciais civis, tributárias e trabalhistas em andamento.
“Essas são cifras surpreendentes para uma empresa que agora busca se beneficiar do privilégio de ter suas ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York”, diz outro trecho do documento enviado pelos senadores.
O documento conta com assinaturas do democrata Bernie Sanders, conhecido por sua militância no movimento dos direitos civis na década de 1960, mas também do republicano Marco Rubio, um crítico do casamento gay e contrário ao aborto que acredita que a “lei de Deus” está acima dos homens. Assim como de Elizabeth Warren, democrata conhecida por seu trabalho em questões financeiras e regulatórias; Sherrod Brown, defensor ferrenho dos trabalhadores e das questões econômicas; Cory A. Booker, conhecido por seu ativismo por justiça social; Peter Welch, defensor da agricultura familiar e da introdução de mais orgânicos na economia; entre outros.
As críticas dos parlamentares americanos se juntam a outras quatro manifestações contra a entrada da JBS no mercado de capitais dos EUA, apresentadas em 2023 pelas organizações não governamentais Mighty Earth, Rainforest Action Network (RAN), World Animal Protection e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Todas elas pedem o cancelamento da Oferta Pública Inicial: Tipo de oferta em que as ações de uma empresa são vendidas ao público em geral numa bolsa de valores pela primeira vez. (IPO, na sigla em inglês) por envolvimento do frigorífico no desmatamento da Amazônia e em casos de violações de direitos humanos e dos povos indígenas, além do envolvimento dos irmãos Batista em escândalos de corrupção.
Uma das manifestações, a enviada pela RAN, levou em consideração uma reportagem publicada pela InfoAmazonia em junho do ano passado, que analisou 500 mil registros de gado de duas plantas da JBS em Rondônia e identificou que animais de ao menos 46 fazendas com origem na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau foram parar nos frigoríficos da companhia. Após a apresentação das evidências colhidas na reportagem, a JBS confirmou a ilegalidade e prometeu suspender os fornecedores identificados.
A SEC poderá reconhecer ou não as reclamações contra a JBS. Se a nova denúncia dos senadores americanos for aceita, a companhia poderá ser obrigada a apresentar defesa, promover alterações no prospecto ou ser inabilitada para ingressar no mercado dos EUA. A SEC não comenta pedidos de ingresso na bolsa nem suas eventuais contestações.
Lewandowski atuou na banca de advogados da J&F
Em maio de 2023, a companhia contratou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, como consultor sênior do Grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, segundo noticiou o UOL.
O ministro passou a atuar na equipe jurídica da J&F menos de uma semana depois de sua saída do Supremo por ter atingido a idade de aposentadoria compulsória. Em sua principal tarefa, Lewandowski teria atuado na briga judicial dos Batista com os indonésios da Paper Excellence pelo controle da Eldorado Papel e Celulose, que possui uma megaplanta para exportação em Três Lagoas (MS).
Não há informações sobre como o ministro-consultor orientou os Batista nas acusações na SEC, nem se ele atuou diretamente na defesa que deverá ser apreciada pelo órgão americano.
Em dezembro do ano passado, a defesa da J&F conseguiu anular no STF uma multa de R$ 10,3 bilhões de acordos de leniência: O acordo de leniência ou programa de leniência chamado por programa de clemência é um acordo de natureza administrativa celebrado entre infratores confessos e entes estatais com base, por exemplo, na Lei de Defesa da Concorrência ou na Lei Anticorrupção. assinados durante a Operação Lava Jato. A decisão foi do ministro Dias Toffoli, cuja esposa Roberta Rangel também integra a banca de advogados da J&F.
Em 2021, quando ainda era ministro do STF, Lewandowski suspendeu um processo do Tribunal de Contas da União (TCU) contra o empresário Joesley Batista. A ação pedia o ressarcimento de R$ 670 milhões por supostas irregularidades cometidas em uma operação do BNDES para compra de ações do frigorífico Bertin, que depois foi incorporado à JBS.
O ex-ministro do Supremo foi anunciado por Lula em 11 de janeiro para suceder Flávio Dino (PCdoB-MA), que ocupará uma cadeira no STF. Por motivos pessoais, Lewandowski não pode assumir de maneira imediata, sendo empossado oficialmente no último 1º de fevereiro.
“Eu sabia das atividades privadas dele, conheço a família dele. Ganha o Ministério da Justiça, ganha o Supremo, ganha o povo brasileiro”, disse Lula durante o anúncio.
Com a posse no Ministério da Justiça, Lewandowski teve que deixar o cargo de consultor na J&F e abandonar as causas milionárias devido a Lei de Conflitos de Interesses, que barra que um ministro de Estado atue como consultor ou assessor de interesses privados em qualquer um dos poderes da União, mesmo que informalmente.
A InfoAmazonia tentou contato com o ministro Lewandowski por meio da assessoria de imprensa do Ministério da Justiça e nos telefones de seu escritório, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
A J&F não quis se manifestar sobre as denúncias apresentadas à SEC e não informou qual foi o papel desempenhado por Lewandowski na empresa.
Senadores apontam omissão em crimes ambientais
Recentemente, o Comitê de Finanças do Senado dos EUA: É um dos comitês permanentes do Senado dos Estados Unidos. Ele é responsável por tratar de questões relacionadas a finanças, tributação, comércio internacional, assistência social e segurança social. conduziu uma investigação sobre os vínculos da JBS com o desmatamento na Amazônia e apontou que a empresa prejudica o mercado internacional com suas práticas. O presidente da comissão, Ron Wyden, disse que a empresa estava “fechando os olhos enquanto partes de sua cadeia de suprimentos queimavam a Amazônia”.
Os senadores lembraram que a empresa promete há anos acabar com ilegalidades na sua cadeia de abastecimento, mas nunca demonstrou de fato interesse em cumprir essas promessas. Em resposta ao Senado americano, a JBS alegou não ter controle sobre seus fornecedores indiretos.
“No entanto, investigadores externos que não dispõem dos consideráveis recursos da JBS conseguiram analisar registros que comprovam a existência de desmatamento na cadeia de fornecimento da empresa”, apontaram os senadores, em referência às investigações de jornalistas e organizações independentes.
Governo brasileiro silencia sobre denúncias
O governo brasileiro, que é dono de 20% das ações da JBS por meio do BNDES, mantém silêncio diante das acusações contra a empresa. Organizações ambientais cobram a retirada do dinheiro público da companhia por sua relação com crimes ambientais e casos de corrupção.
Desde 2016, uma norma interna prevê que o banco público só deveria investir e financiar negócios com rebanhos “rastreados de forma ininterrupta, desde o nascimento”. Apesar de a JBS não cumprir essas normas, o governo federal mantém R$ 8,1 bilhões em ações da companhia e mais R$ 9,5 bi em linhas de crédito. Em valores atualizados, são R$ 32,5 bilhões em recursos federais aplicados na JBS.
Em novembro de 2023, quando o ingresso da JBS na Bolsa de Nova York foi alvo de denúncias, o BNDES informou à reportagem que não comenta sobre o ingresso da companhia na bolsa americana e que fará sua manifestação diretamente na assembleia de acionistas, que estava prevista para ocorrer ainda em 2023, mas ainda não foi realizada.
Sobre as denúncias que apontam desmatamento e violações de direitos na cadeia de abastecimento da companhia, o banco disse à época, em nota, que “a posição de acionista minoritário estabelece certas limitações para sua atuação nas investidas” (leia nota do BNDES na íntegra).
A JBS tenta listar suas ações na bolsa norte-americana desde 2016, quando teve intenção vetada pelo BNDES. Na última tentativa, em 2017, os planos foram frustrados pelos escândalos de corrupção envolvendo os irmãos Wesley e Joesley Batista.
No mesmo ano, os Batista foram multados em US$ 27 milhões nos Estados Unidos por pagamento de suborno na compra da produtora de carne americana Pilgrim’s Pride em 2009.
JBS renova promessas ambientais e diz que empresa mudou desde 2017
Ao detalhar a proposta para abertura das ações nos EUA, a JBS afirma que tem adotado uma série de mecanismos para evitar novos casos de corrupção e que os irmãos Batista estariam comprometidos com uma série de acordos firmados no Brasil e EUA.
Por meio de assessoria de imprensa, a companhia apontou à InfoAmazonia que a listagem na Bolsa de Nova York “aumentará ainda mais o escrutínio da já robusta governança da JBS, aderindo aos padrões da Securities and Exchange Commission (SEC) e da Bolsa de Valores de Nova York (Nyse). Stakeholders genuinamente interessados no desenvolvimento e crescimento da Companhia e de toda a sua rede de valor apoiam a listagem das ações da JBS em Nova York”.
Sobre a reestruturação das ações, a empresa respondeu: “as questões relativas à estrutura acionista são prematuras até que os investidores exerçam o direito de fazer a escolha no seu melhor interesse”.
Por fim, a JBS voltou a afirmar que mantém sistema de monitoramento de rebanhos como forma de evitar a relação de seus fornecedores com desmatamento ilegal. “Por meio de imagens de satélite e consulta a listas públicas oficiais, são constantemente verificados critérios como desmatamento ilegal, embargos ambientais, invasão de terras indígenas ou unidades de conservação e práticas análogas à escravidão. Atualmente, mais de 14.000 potenciais fornecedores estão bloqueados”.
Em outras oportunidades, a empresa confirmou à InfoAmazonia que faz somente o controle dos fornecedores diretos, sem verificar os mesmos critérios de sustentabilidade para os demais fornecedores da sua cadeia, onde se concentram os casos de ilegalidades.
Uma das manifestações, a enviada pela RAN, levou em consideração uma reportagem publicada pela InfoAmazonia em junho do ano passado, que analisou 500 mil registros de gado de duas plantas da JBS em Rondônia e identificou que animais de ao menos 46 fazendas com origem na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau foram parar nos frigoríficos da companhia. Após a apresentação das evidências colhidas na reportagem, a JBS confirmou a ilegalidade e prometeu suspender os fornecedores identificados.