Terra indígena com maior área queimada fica próxima a ramal, estrada secundária ligada à rodovia BR-319; trechos de quatro ramais analisados pela reportagem têm impacto sobre 35 terras indígenas e 24 unidades de conservação.

O Amazonas atingiu uma área recorde de queimadas em setembro. O fogo se propagou ao longo da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, e estradas secundárias, os ramais, conectadas à rodovia (AM-254, AM-354, AM-364 e AM-366). Além disso, áreas protegidas: Regiões tuteladas pela legislação ambiental em terra, águas doces e marinhas. são afetadas pelo avanço das chamas nessas vias estaduais. 

Segundo as estimativas: Os dados de área queimada de 2023 do LASA são uma estimativa com base no monitoramento dos alarmes. Esses dados são consolidados ao final de cada ano. do sistema ALARMES: O Sistema ALARMES é uma plataforma desenvolvida pelo LASA/UFRJ, em parceria com o IDL/ULisboa, para servir de alerta rápido e ágil sobre o avanço da área afetada pelo fogo, de forma a apoiar órgãos ambientais nas ações de combate aos incêndios florestais. O sistema combina imagens de satélite, focos de calor e inteligência artificial para identificar diariamente a localização e extensão das áreas queimadas., do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período de 1º de janeiro a 26 de setembro, o estado alcançou o recorde da série histórica iniciada em 2012, com 10.506 km² de área queimada. A alta no estado se reflete também na Amazônia Legal, que registrou um aumento em relação ao ano passado – a área queimada em 2023 foi de 47.430 km², contra 45.075,5 km² no mesmo período de 2022, um aumento de aproximadamente 5%. 

Esse resultado de 2023 no Amazonas foi puxado especialmente por setembro, que registrou 5.310 km² de área queimada até o dia 26, pior resultado para o mês mesmo antes do encerramento. Em 12 de setembro, já com o recorde de fogo nos primeiros dez dias, o governador Wilson Lima decretou estado de emergência ambiental, com o objetivo de reduzir os impactos do desmatamento ilegal e de queimadas em todo o estado.

BR-319: uma protagonista

Neste ano, as queimadas se propagaram com intensidade ao longo da BR-319 e de seus ramais. Localizada no coração da Amazônia, a rodovia cruza uma região repleta de áreas protegidas. Na área de influência: A área de influência direta de uma rodovia é a região que é diretamente afetada pela sua construção e operação. Isso inclui a faixa de domínio da rodovia e uma faixa ao seu redor, que pode variar dependendo das características da região. Essa área é utilizada para calcular e minimizar seus impactos negativos sobre o meio ambiente e as comunidades locais. da rodovia, considerando 40 km ao redor do seu traçado integral, foram detectados pelo satélite de referência monitorado pelo Inpe 1.842 focos de calor até 26 de setembro deste ano, cerca de 13% do total registrado no estado. Em comparação com 2022, houve uma diminuição dos focos ao longo do traçado, e foram registrados 2.123 focos de calor ao longo da rodovia no mesmo período.

Por outro lado, em relação aos quatro ramais ligados à BR-319 – AM-254, AM-354, AM-364 e AM-366 – o número de focos de calor deste ano mais que dobrou em comparação com o mesmo período de 2022. No ano anterior, foram registrados 805 focos de calor, enquanto em 2023, foram registrados 1.753. Essa análise da InfoAmazonia foi feita com base nos alertas do Inpe e, também, via Lei de Acesso à Informação. Na área de influência direta dessas estradas, estão localizadas 35 terras indígenas e 24 unidades de conservação. 

Entre os ramais analisados, o maior registro de fogo ocorreu na AM-254, com pavimentação em mais da metade do traçado. Os trechos asfaltados, que cortam os municípios de Careiro, Autazes e Nova Olinda do Norte, acumulam 873 focos de calor em 2023, ou seja: metade do que foi detectado entre as quatro estradas. A área de influência dos trechos da AM-254 tem impacto sobre 18 terras indígenas habitadas pelos povos Munduruku, Mura e Sateré-Mawé e seis unidades de conservação.  

Já a AM-354, também conectada à BR-319 no município de Careiro, tem a sua extensão de 42,81 km pavimentada até o município de Manaquiri. O monitoramento do Inpe registrou 254 focos de calor este ano dentro de sua área de influência, que impacta diretamente seis terras indígenas, onde vivem os povos Apurinã e Mura, além de duas unidades de conservação. 

Desmatamento no entorno da BR-319 cresce acima da média do desmatamento da Amazônia, em região cercada por terras indígenas e unidades de conservação. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

O governo federal, por meio do Ministério dos Transportes e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), planeja a pavimentação de 405 quilômetros da estrada, o chamado Trecho do Meio, com início na divisa entre os municípios Borba e Beruri e, o final, em Humaitá, onde está a estrada até Porto Velho (RO).

Com a iminência do asfaltamento do Trecho do Meio, que teve a licença prévia emitida no último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), Jolemia Chagas, da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta), aponta que a devastação “está ocorrendo forte”.  

“É um trecho que ficou muito vulnerável. Mesmo não tendo a licença de operação, as coisas foram ocorrendo, a boiada foi passando”, aponta. “Fazem a retirada da madeira, depois abrem pasto, garimpo. Na BR-319, está acontecendo tudo ao mesmo tempo”, afirma. 

Fazem a retirada da madeira, depois abrem pasto, garimpo. Na BR-319, está acontecendo tudo ao mesmo tempo.

Jolemia Chagas, da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta)

Os municípios que são diretamente afetados apresentaram algumas das maiores taxas de desmatamento registradas no estado do Amazonas em 2022. São eles: Lábrea, Canutama, Humaitá, Tapauá, Manicoré, Beruri, Borba, Manaquiri, Careiro, Autazes, Careiro da Várzea e Manaus. Juntos, eles contabilizaram 1.457 km² de desmatamento registrado pelo Prodes: Sistema do Inpe que realiza o mapeamento oficial das perdas anuais de vegetação nativa na Amazônia Legal., do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre agosto de 2021 e julho de 2022 – 56% do que foi desmatado no estado nesse período. 

E o que está queimando na BR-319?

A Terra Indígena (TI) Barreira da Missão, onde vivem os povos Kaixana, Kambeba, Miranha, Ticuna e Witotono, no município de Tefé, é a área protegida do Amazonas com a maior porcentagem de área queimada: mais de 50% da TI foi consumida pelo fogo entre 1 de janeiro e 26 de setembro deste ano, segundo os dados do LASA.

Em 2015, uma portaria interministerial, com assinatura dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, trouxe a definição, entre outros pontos, sobre a área de influência das rodovias na Amazônia Legal: um raio de 40 quilômetros ao redor. 

Na área de influência do trecho asfaltado da AM-366 em Tefé, a menos de 4 km do limite da TI Barreira da Missão, o Inpe registrou 424 focos de calor até 26 de setembro deste ano.

Sete propriedades privadas

No município de Manicoré, foram identificadas sete propriedades localizadas ao longo da AM-364, outro ramal da BR-319, que estão relacionadas às queimadas ocorridas nos meses de agosto e setembro deste ano. Os alertas do LASA registraram uma área afetada pelo fogo dentro dessas áreas privadas. 

Além disso, o fogo também foi detectado pelo monitoramento do Inpe, que registrou 19 focos de calor ativo na mesma região dessas propriedades durante agosto e setembro. Elas estão localizadas próximas à Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Amapá e à RDS do Rio Matupiri, onde está situado o assentamento do Incra PAE Jenipapo.

“A gente fica preocupada porque fica atrás da nossa reserva, do nosso assentamento. A gente fica com medo do que essa situação pode nos causar, são situações que podem afetar a gente”, disse à reportagem Niracleide Barros, da Comunidade de São José do Miriti, do PAE Jenipapo, localizado na RDS do Rio Matupiri.

Para garantir que as populações locais e tradicionais da região sejam ouvidas, Jolemia Chagas, da Reta, diz que está “trabalhando os protocolos de consulta nessas regiões”. Ela diz que a medida serve para “caso esses empreendimentos venham afetar a vida deles, para que eles possam solicitar a consulta prévia, livre e informada que garantirá esse direito a eles”. 

Ela está se referindo à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que estabelece a consulta às populações afetadas antes de implementar qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida. Os protocolos de consulta são um instrumento que garante aos povos originários e tradicionais o direito de serem ouvidos durante o processo de licenciamento. 

Três dessas áreas privadas ao longo da AM-364 foram embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em abril deste ano, por destruir floresta nativa da Amazônia: a Fazenda Babaçu e a Fazenda Piracema (que representa duas propriedades, com dois registros de Cadastro Ambiental Rural: Registro eletrônico obrigatório, feito por autodeclaração e voltado à regularização ambiental de imóveis rurais de todo o país.). 

O desmatamento começou em 2022, ano em que o Prodes registrou 1,45 km² de área desmatada dentro delas. Em imagens de satélite, é visível o avanço do problema: em outubro de 2021, as áreas estavam com a floresta intacta; quase um ano depois, em setembro de 2022, é possível detectar a perda de floresta, assim como o aumento das áreas degradadas. 

Renata Libonati, coordenadora do LASA, afirma que mesmo em situações de seca prolongada e severa, como as agravadas pelo El Niño neste ano, o aumento das queimadas está relacionado principalmente com o desmatamento. 

“A gente só vai ter fogo se realmente estiver acontecendo taxas de desmatamento muito altas, se estiver acontecendo a ignição. É uma característica do El Niño trazer a seca para essa região e o desmatamento está acontecendo. Então, está tendo muito fogo”, diz a especialista.

Ela aponta, ainda, que o aumento da degradação da floresta nos últimos anos, favorece a propagação do fogo no período seco. “Se antes eu tinha uma floresta natural intacta, que passou por uma seca e sofreu desmatamento nas bordas, o fogo tem mais dificuldade de adentrar. A partir do momento que boa parte da floresta está degradada, já nessa adjacência de desmatamento por fogo recente, quando acontecer um incêndio isso vai se propagar muito mais fácil”.

A partir do momento que boa parte da floresta está degradada, já nessa adjacência de desmatamento por fogo recente, quando acontecer um incêndio isso vai se propagar muito mais fácil.

Renata Libonati, coordenadora do LASA

Em 2022, o sul do Amazonas já havia se destacado pelas altas taxas de desmatamento. A InfoAmazonia noticiou, no início de dezembro do ano passado, que o estado foi o único a registrar aumento da taxa do Prodes. Além disso, no início do ano passado, a abertura de novos ramais a partir de rodovias federais e estaduais no sul do Amazonas já era um dos principais motores para o avanço da devastação da floresta. 

No entanto, no primeiro semestre deste ano, o Amazonas apresentou uma queda expressiva nos alertas de desmatamento, de acordo com o Deter, sistema do Inpe. Neste ano, há uma diminuição de 55,2% em relação ao mesmo período de 2022.


Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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