Trechos asfaltados de seis rodovias estaduais conectadas à rodovia federal já impactam 34 TIs e 24 UCs, segundo análise inédita da InfoAmazonia; especialistas apontam que trechos planejados e abertura de novos ramais também devem ser considerados no licenciamento da rodovia federal.

Como analisamos o impacto das rodovias estaduais ligadas à BR-319 em TIs e UCs do Amazonas?


Cruzamos dados públicos de infraestrutura rodoviária e áreas protegidas que permitiram avaliar o impacto das rodovias ligadas à BR-319

A reportagem teve acesso, via Lei de Acesso à Informação (LAI), ao traçado das rodovias estaduais AM-254, AM-354, AM-356, AM-360, AM-364 e AM-366 planejadas pela Seinfra-AM.
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Com forte potencial de causar divisões internas na atual gestão de Luiz Inácio Lula da Silva,  a pavimentação da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), permanece no horizonte do Ministério dos Transportes mesmo projetando impactos em dezenas de terras indígenas e unidades de conservação.

Levantamento exclusivo da InfoAmazonia constatou que o impacto de seis rodovias estaduais previstas para se conectarem à BR-319, segundo o traçado disponível na base de dados rodoviários do DNIT, pode chegar a 40 terras indígenas (TIs) e 38 unidades de conservação (UCs). Sobre esses territórios tradicionais, estima-se uma população impactada de mais de 23 mil indígenas, segundo a base de dados Terras Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA).

Com quase 240 km de extensão, os trechos pavimentados desses 6 ramais: Um ramal rodoviário é uma ramificação de uma estrada principal da BR-319 representam cerca de 20% do traçado total – pouco mais de 1200 km – planejado pela Secretaria de Infraestrutura do Amazonas (Seinfra-AM) e já impactam diretamente 34 TIs e 24 UCs.

Ramais aumentam desmatamento às margens da BR-319. Foto: Cristie Sicsú/OBR-319

Em sua área de influência, os ramais acumulam desmatamento que equivale a quase metade da área do município de São Paulo 746 km², registrados  entre 2008 e 2022 pelo Prodes – sistema de monitoramento anual de perda de vegetação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O resultado vai ser um desmatamento muito intenso, irreversível, no coração de uma área muito importante do ponto de vista de equilíbrio ambiental e de proteção da biodiversidade. Vai explodir o desmatamento no estado do Amazonas inteiro. Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima.

Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima.

A reportagem teve acesso ao traçado das rodovias planejadas pela Seinfra-AM via Lei de Acesso à Informação (LAI). Com base nesses dados, analisamos os impactos dessas estradas, considerando a área de 40 km ao seu redor, estipulada pela Portaria Interministerial 60/2015 para determinar a área de influência de rodovias na Amazônia Legal e utilizada no estudo de impacto ambiental (EIA) da BR-319.

Também consideramos uma zona de amortecimento de 10 km ao redor das áreas protegidas, faixa utilizada para calcular o impacto de atividades econômicas e empreendimentos próximos que afetem negativamente a preservação desses territórios, assim como a vida e a cultura das populações que ali vivem. 

Questionada sobre a origem dessas estradas, a Seinfra-AM afirmou que “não há um documento oficial que apresente informações precisas sobre a inauguração e construção dessas vias”. Por meio de nota enviada à reportagem, a secretaria afirmou que “é possível inferir que todas as rodovias citadas já haviam sido construídas ou planejadas até o ano de 1986”, com base no decreto estadual nº 9885/1986, que estabelece diretrizes, normas e a extensão das faixas de domínio no Amazonas.

Suely Araújo considera que uma avaliação ambiental estratégica da região, feita em conjunto pelo governo federal, governo estadual e municípios, seria a medida mais adequada, do ponto de vista técnico, para avaliar os impactos da BR-319.“Toda essa região e os empreendimentos previstos nela, tanto do governo federal, quanto do governo estadual, deveriam ser objeto dessa avaliação, somando os efeitos negativos desses ramais, da liberação do trecho do meio e de outros empreendimentos previstos para a região, não necessariamente só rodovias. Essa licença tem que ser lida em seus efeitos regionais”.

BR-319, trecho do meio. Foto: Divulgação

A ex-presidente do Ibama observa problemas jurídicos na licença prévia da BR-319 e defende sua revisão pelo órgão ambiental, uma vez que as condicionantes previstas não têm elementos para controlar o desmatamento que vai ser gerado pela reativação da rodovia.“Esse conjunto todo vai levar a um desmatamento absolutamente descontrolado e inaceitável. Você teria que primeiro resolver essa situação antes de liberar a licença prévia, que é um atestado jurídico de viabilidade ambiental de cada empreendimento”, avalia Suely Araujo.

Apesar da licença prévia ter sido autorizada ao final do mandato de Jair Bolsonaro (PL), os estudos de viabilidade e sustentabilidade ambiental do projeto seguem válidos, aguardando serem analisados por um grupo técnico criado no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)  para decidir sobre o seu início. 

A próxima etapa do processo é a obtenção da licença de instalação, emitida com base no Plano Básico Ambiental que será apresentado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama).  

Estudo sobre Trecho do Meio considerou apenas 5 terras indígenas

Localizada no coração da Amazônia, a BR-319 cruza uma região repleta de áreas protegidas e planeja a pavimentação de 405 km no chamado Trecho do Meio, com início na divisa entre os municípios Borba e Beruri e final em Humaitá, onde se liga ao trecho asfaltado que segue até Porto Velho (RO).

Estrada aberta na Resex do Lago Grande Capanã. Foto: Divulgação/OBR 319

“O EIA-Rima é muito incompleto, não considera os impactos secundários da obra, ignora todo o processo de ocupação e as estradas estaduais planejadas, que impactam terras indígenas e unidades de conservação, nada disso foi considerado”, aponta Fernanda Meirelles,  secretária-executiva do Observatório da BR-319, formado por uma rede de organizações da sociedade civil, pesquisadores e associações indígenas.

A pesquisadora Ivani Faria, professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) que participou do Estudo de Componente Indígena (ECI) no EIA-Rima anterior da BR-319, realizado em 2008, destaca que esse tipo de estudo precisa considerar as rodovias estaduais, mesmo aquelas que estão apenas planejadas, mas não foram abertas.

“Em um estudo de impacto, a gente também faz a previsão de cenários. Essas rodovias tinham que ter entrado, porque um dia elas podem vir a ser executadas. A gente faz o estudo para prever os impactos e, assim, definir as medidas mitigadoras”, comenta Ivani.

Em um estudo de impacto, a gente também faz a previsão de cenários. Essas rodovias tinham que ter entrado, porque um dia elas podem vir a ser executadas.

Ivani Faria, professora da Ufam

Como funciona o licenciamento estadual no Amazonas

A secretária-executiva do Observatório da BR-319 classifica as estradas estaduais planejadas para se conectarem à rodovia federal como o “anúncio do desastre”. “Se a BR-319 já representa um desastre ambiental e social, os trechos de rodovias planejadas vão propiciar uma situação ainda mais preocupante caso as obras sejam concretizadas, porque o licenciamento estadual é mais fraco, com menos recursos para produzir estudos”, alerta Fernanda.  

As rodovias total ou parcialmente pavimentadas, precisam passar por estudos de viabilidade e impacto ambiental previstos no processo de licenciamento estadual, dividido em três etapas: licença prévia, licença de instalação e licença de operação. O órgão responsável pelo licenciamento no estado é o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). 

O traçado pré-determinado das rodovias planejadas, classificação que indica trechos fisicamente inexistentes, está sujeito a modificações a partir do momento que for iniciado o projeto básico para a sua execução. Enquanto não houver esse projeto, elas estão dispensadas do processo de licenciamento, assim como as rodovias em leito natural, estradas abertas que não sofreram intervenções de grande porte em infraestrutura.

De acordo com a Seinfra-AM, essas vias em leito natural podem receber intervenções como terraplenagem ou aplicação de brita ou materiais similares para dar resistência e aderência ao tráfego de veículos. Constam como planejadas pela secretaria, as rodovias AM-356, com ligação prevista à rodovia federal no município de Careiro, e AM-360, que se ligaria ao trecho em pavimentação da BR-319 no município de Beruri. 

A AM-364, ligada ao Trecho do Meio da rodovia federal no município de Manicoré, tem todo o seu traçado em leito natural. 

Ramal da Democracia, Manicoré (AM)- Foto: Cristie Sicsú/OBR – 319 Credit: Cristie Sicsú Credit: Cristie Sicsú

Rodovias levam desmatamento para áreas de proteção

Na área analisada pela reportagem, a AM-354 teve toda a sua extensão pavimentada e a  AM-254 recebeu pavimentação em mais da metade do traçado planejado. Essas duas rodovias estão conectadas ao trecho asfaltado da BR-319 no município de Careiro. 

Com 42,81 km de extensão, a AM-354 percorre os municípios de Careiro e Manaquiri e tem impacto direto sobre seis terras indígenas onde vivem os povos Apurinã e Múra, além de duas unidades de conservação.  

Com maior desmatamento na área analisada pela reportagem, os trechos pavimentados da AM-254 têm impacto direto sobre 18 terras indígenas habitadas pelos povos Munduruku, Mura e Sateré-Mawé e seis  unidades de conservação.  Ao redor do traçado, que percorre os municípios de Careiro, Autazes e Nova Olinda do Norte, essa rodovia acumula 527,73 km² de área desmatada entre 2008 e 2022, segundo dados do Prodes.

“Essa estrada de Autazes tem terras indígenas coladas, então o impacto é direto. Não é só do licenciamento que estamos falando, é preciso fazer a consulta prévia a esses povos. Se algum povo indígena ou comunidade tradicional for afetado por algum empreendimento do ponto de vista executivo, com impactos diretos ou indiretos, os povos têm o direito à consulta”, ressalta Ivani Faria (UFPAM) em referência à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

Na página de transparência do Ipaam, onde estão disponíveis as licenças emitidas pelo órgão entre 2017 e 2023, a reportagem verificou que foram assinadas 21 licenças de operação que fazem referência às obras na AM-254, duas delas também incluem a AM-354. Quatro licenças de operação emitidas em 2017 não têm a descrição de qual atividade foi licenciada na AM-254. Entre 2018 e 2022, foram emitidas licenças de operação para obras de pavimentação na rodovia e em ramais ligados a ela. Também foram emitidas licenças ambientais únicas para a recuperação de ramais na AM-254. Questionado sobre os estudos de impacto ambiental e o processo de consulta às populações afetadas pelas obras, o Ipaam não respondeu até o fechamento desta reportagem.

 A reportagem não encontrou nenhuma licença emitida em relação à AM-366, com trechos asfaltados nos municípios de Tapauá, Tefé e Juruá. O traçado planejado dessa rodovia se conecta ao Trecho do Meio da BR-319. 

“Esse ramal de Tapauá corta uma floresta nacional e uma terra indígena, então jamais vai ser licenciado. Mas isso é uma questão política, porque em toda eleição volta o tema da pavimentação”, aponta Josinaldo Aleixo, assistente de campo do Instituto Internacional de Estudos do Brasil (IEB), que atua há 15 anos na região amazônica com povos e comunidades tradicionais.

Esse ramal de Tapauá corta uma floresta nacional e uma terra indígena, então jamais vai ser licenciado. Mas isso é uma questão política, porque em toda eleição volta o tema da pavimentação

Josinaldo Aleixo, assistente de campo do IEB

“O problema é que o Ipaam está completamente desestruturado, com déficit de pessoal, e faz uma tremenda vista grossa em relação aos ramais abertos em torno da BR-319. Ninguém segue o rito de licenciamento. As próprias prefeituras fazem vista grossa em relação a isso. E as estradas, as vicinais, os ramais, vão se multiplicando”, critica Aleixo.

Menos de 5% da extensão total planejada (546,1 km), os trechos pavimentados da AM-366 somam 26,1 km com impacto direto em oito terras indígenas onde vivem indígenas das etnias Apurinã, Kambéba, Kokama, Matsés, Miranha e Tikúna e sete unidades de conservação. A área de influência desses trechos concentra 134,68 km²  de desmatamento entre 2008 e 2022, registrados pelo Prodes.

Um dos trechos pavimentados desta rodovia está no limite da TI Apurinã Igarapé São João no município de Tapauá. “O impacto é grande porque essa estrada passa muito próxima ao território, corta os igarapés e polui a água que a gente consome. Também causa muita invasão nessas terras, porque facilita o acesso tanto de quem vem da BR-319, quanto do próprio município de Tapauá”, relata o cacique Zé Bajaga Apurinã, coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp).

“O impacto é grande porque essa estrada passa muito próxima ao território, corta os igarapés e polui a água que a gente consome. Também causa muita invasão nessas terras, porque facilita o acesso tanto de quem vem da BR-319
Cacique Zé Bajaga Apurinã

Por estarem poucos quilômetros além da área de influência prevista na Portaria 60/2015, essas terras indígenas em Tapauá, onde vivem os Apurinã, não tiveram estudo de campo no EIA-Rima.

“Foi um estudo baseado em dados secundários, não houve aquele trabalho na aldeia de  levantamento de impacto. Esse é um erro, um problema que a gente vê na BR-319. Se você tem um ramal que te conecta à BR, a tendência é aumentar esse impacto. Então é um impacto direto desses ramais”, ressalta Marcela Menezes, da coordenação do Programa Povos Indígenas do IEB. A organização desenvolve protocolos de consulta em dez terras indígenas no sul do Amazonas.

Marcela aponta que o anúncio da licença prévia da BR-319 aumentou a ocupação dos territórios no entorno da rodovia e a pressão nos municípios pelo asfaltamento das estradas estaduais. “Com a ocupação vem a retirada de madeira, o comércio de terra, a compra de fazendas, vem toda a especulação imobiliária. No caso de Tapauá, temos relatos de construção de casas, condomínios. Tem todo um negócio ali que gira em torno desses ramais e da BR”, contextualiza Marcela.

Ivani Faria relata que, quando trabalhou no ECI do estudo de impacto ambiental da BR-319, a equipe de pesquisadores propôs a criação de um parque de proteção integral na região de Tapauá como medida de mitigação em relação aos impactos da BR-319, por ser uma área muito preservada e rica em madeiras nobres.“A gente queria unidades de conservação de proteção integral, para que não houvesse a opção de outro tipo de uso naquela área. Mas os interesses políticos e econômicos prevaleceram.”

Ao invés de áreas de proteção integral foram criadas na região unidades de conservação com medidas menos rigorosas, a Floresta Nacional do Lago Jari e a Floresta Estadual de Tapauá. 

“Naquela época não tinha sido prevista a abertura dessa estrada”, diz Ivani em referência à rodovia AM-366. “Começaram a construir essa estrada por conta das madeireiras. Um dos elementos que dificultava a exploração era justamente o transporte. Só se chegava lá de avião ou barco, então inventaram a construção dessa estrada. É um transporte específico para a exploração da madeira”, explica.

Igarapé tombado no Ramal AM366 – Foto: Cristie Sicsú

Apesar de não considerar os impactos dessas rodovias estaduais, o EIA-Rima da BR-319 afirma que a pavimentação do Trecho do Meio da rodovia, “trará grandes modificações sociais e econômicas para a região, resultado da melhoria de acesso e a consequente expansão” das rodovias AM-366 e AM-364. Em sua conclusão, o relatório destaca que essa rede de rodovias possibilitará o “tráfego rápido e seguro” entre a cidade de Porto Velho (RO) e os municípios amazonenses de Manaus, Manicoré, Humaitá e Tapauá.  “Esta expansão proporcionará um desenvolvimento das atividades rurais e florestais destas cidades e dos demais municípios da região”, diz o texto.

Proliferação de ramais

Um estudo do Observatório da BR-319 publicado em julho deste ano, analisou ramais abertos ao longo da rodovia até 2022 nos municípios de Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, que totalizam 5.902 km, 5,8 vezes a extensão total da rodovia federal (807 km). 

Entre 2016 e 2022 foi verificado o acréscimo de 2.061 km de ramais nesses quatro municípios. A maior rede de ramais mapeada pelo observatório se encontra em Canutama (1.755,7 km), seguido por Manicoré (1.704,1 km), Humaitá (1455,6 km) e Tapauá (176,8 km). 

Localizada no município de Manicoré, na área de influência da BR-319, a TI Lago Capanã está sendo impactada com a chegada de ramais clandestinos nas proximidades do território. Uma área de uso indígena, na Reserva Extrativista do Lago Capanã Grande, próxima à cabeceira do Rio Acará foi ocupada por grileiros, que impedem o acesso da população, relata o cacique Adamor, da aldeia Palmeira.

“Essa é a área onde a gente extrai a castanha, o açaí. São áreas de uso desde muito tempo, área tradicional das famílias indígenas, que está virando pasto, plantação de soja”.  Apesar de terem sido considerados na área de impacto do projeto de pavimentação da rodovia, o cacique relata que não houve, até o momento, nenhuma ação de fiscalização e proteção das áreas após a concessão da licença prévia para a obra.

“Hoje vemos uma grande quantidade de desmatamento na cabeceira do Lago do Capanã, o que trouxe conflitos para o território e resultou na diminuição da produção indígena. Estamos correndo riscos e não podemos nos confrontar com os grupos armados que estão lá”, reclama Adamor.

Ignorando impactos, gestores consideram BR-319 sustentável


O ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), anunciou que o governo pretende utilizar recursos do Fundo Amazônia para asfaltamento da BR-319. Além dos recursos públicos, o  projeto prevê também o aporte privado. Após o anúncio do novo PAC, o ministro declarou à imprensa que o objetivo em relação à BR-319 é ter “uma gestão modelo, a rodovia mais sustentável e mais verde do planeta”. 

Os dados do Prodes, porém, apontam que a rodovia tem sido um vetor de desmatamento no estado Amazonas, que terminou o ano de 2022 como o segundo estado com a maior taxa de desmatamento na Amazônia Legal,o único a apresentar aumento da taxa oficial de desmatamento, com uma alta de 13% em relação ao período anterior. Mais da metade da área devastada (1.457 km²) está concentrada nas cidades cortadas pela BR-319: Lábrea, Canutama, Humaitá, Tapauá, Manicoré, Beruri, Borba, Manaquiri, Careiro, Autazes, Careiro da Várzea e Manaus. 

Impactos além dos 40 quilômetros

Em novembro de 2019, uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai) se dirigiu à aldeia Traíra, na Terra Indígena Nove de Janeiro, em Humaitá (AM), para apresentar a versão preliminar do estudo de componente indígena para a pavimentação do Trecho do Meio da BR-319.

O pesquisador indígena Thiago Castelano, do povo Parintintin, contratado para os estudos do componente indígena do projeto, argumentou na ocasião que a TI Ipixuna, cujo território é contíguo à TI Nove de Janeiro, também seria impactada diretamente pelo projeto, apesar de estar fora da área de 40 km estipulada pela portaria 60/2015.

“O Rio Ipixuna nasce dentro da TI Nove de Janeiro e ele é o principal rio da TI Ipixuna, então se mexer na pressão nele, vai impactar diretamente. A gente argumentou e eles não concordaram, então a gente achou importante mostrar nossas áreas de pesca e as áreas de garimpo no entorno do território”, conta Castelano, que é técnico em Sistema de Informação Geográfica (SIG) do departamento de Georreferenciamento da Organização dos Povos Indígenas Parintintin do Amazonas (OPIPAM).

Na reunião citada, Castelano apresentou o mapeamento realizado pelos indígenas, que mostra a conexão entre os territórios. Como resultado, a TI Ipixuna passou a ser considerada nos Programas Básicos Ambientais do Componente Indígena (PBA-CI) previstos na licença prévia para o projeto, emitida pelo Ibama em agosto de 2022 – embora tenha sido desconsiderada no EIA-Rima.

Consulta aos povos indígenas

Apesar da inclusão do território Parintintin nos estudos do Programa Básico Ambiental, outras terras do mesmo bloco onde estão os povos do tronco linguístico Kagwahiva não foram consideradas nos estudos de impacto da rodovia.

Pesquisador indígena Thiago Castelano, do povo Parintintin. Foto: IEB

“A gente tem ali na região de Humaitá um conjunto de povos que falam a língua Kagwahiva, que são os Tenharim, os Parintintin, os Jahui, Juma, que o seu conjunto vai ser impactado pela BR-319”, aponta Marcela Menezes.

Mesmo os povos considerados nos estudos de impacto do processo de licenciamento da obra não foram consultados segundo o protocolo da Convenção 169 da OIT. Dez TIs onde vivem os povos Mura, Apurinã e Kagwahiva estão com seus protocolos de consulta em fase de validação para incidirem sobre esse processo. Quatro delas não foram consideradas até o momento nos estudos de impacto da BR-319: a TI Djahui, do povo Jiahui, e as TIs Tenharim do Marmelos, Tenharim do Igarapé Preto e Sepotí do povo Tenharim.

“A gente está trabalhando os protocolos de consulta em todas as terras que estão sendo impactadas ali na região de Humaitá, Manicoré e Tapauá. Esses povos vão ter os seus protocolos, que é para ser um instrumento de consulta, de diálogo com o Estado brasileiro”, destaca a coordenadora do Programa de Povos Indígenas do IEB.

Fernanda Meirelles ressalta que o processo de licenciamento não podia ter avançado sem que as consultas fossem realizadas, e reforça a necessidade de cumprimento do processo de consulta prévia, livre e informada às populações afetadas pelo projeto.  

“O que aconteceu foi que o DNIT considerou que as audiências públicas no processo administrativo de licenciamento poderiam ser consideradas processos de consulta, isso viola direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais”, afirma Fernanda.

Fernanda considera que a discussão sobre a BR-319 está em um momento crítico no atual governo com os relatórios de impacto e a licença prévia para o projeto aprovados na gestão de Jair Bolsonaro com uma série de problemas. “Embora a gente perceba uma boa vontade do atual governo, não sabemos como vão ser os próximos passos do licenciamento. Ou ele para o processo para que as consultas sejam feitas respeitando os direitos dos povos, ou ele avança com o licenciamento problemático. A gente está cobrando que o governo se posicione”, conclui.

Outro lado

Em nota enviada à reportagem, o Ibama afirma que o EIA-Rima do projeto refere-se ao Trecho do Meio da Rodovia: “Neste trecho, o foco do licenciamento junto ao Ibama é a pavimentação da rodovia. Portanto, não há justificativa para incluir os trechos já pavimentados no processo de licenciamento ambiental”. 

Em relação às rodovias estaduais, o Ibama afirma que elas “são consideradas no processo de licenciamento da rodovia para a avaliação de impactos ambientais sinérgicos”.

Sobre os territórios indígenas, o órgão aponta que foram seguidos os critérios estabelecidos na Portaria 60/2015 e que a Funai, responsável por definir os territórios afetados e estudos a serem realizados, “tem se manifestado em todas as etapas do processo até o momento”. Em relação às UCs, o Ibama afirma que foram seguidos os critérios para sua inclusão nos estudos de avaliação de impacto conforme Resolução 428/2010 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e na Instrução Nornativa (IN) do Ibama/ICMBio nº 09/2019.

Questionado sobre a área de influência utilizada no EIA-Rima do projeto, o DNIT afirma, por meio de nota, que o estudo foi elaborado considerando o Termo de Referência nº 14/2014 emitido pelo Ibama em outubro de 2014. Em relação aos ramais AM-254, AM-354, AM-356, AM-360, AM-364 e AM-366, o órgão federal aponta que eles “deverão ter seu processo de licenciamento ambiental, no caso de implantação e pavimentação pelo empreendedor estadual”, por serem rodovias planejadas pela Seinfra-AM.

Em relação ao Estudo do Componente Indígena do EIA-Rima, o DNIT afirma que ele foi elaborado considerando o Termo de Referência emitido pela Funai ao Ibama por meio do Oficio nº 1374/2015 das Etnias Apurinã, Diahui e Mura, e Terras Indígenas Apurinã do Igarapé Tauamirim, Apurinã do Igarapé São João, Ipixuna, Ariramba, Nove de Janeiro e Lago Capanã.

“Posteriormente, a Funai solicitou ao Ibama para que os estudos do Componente Indígena envolvam somente a terras indígena Apurinã do Igarapé Tauamirim, Apurinã do Igarapé São João, Ariramba, Nove de Janeiro e Lago Capanã, por intermédio do Ofício nº 47/2016, de 15 de janeiro de 2016, pois o Termo de Referência fora encaminhado com erro material, configurado na inclusão da terra indígena Ipixuna”, diz a nota enviada à reportagem.

Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.

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