Em entrevista à InfoAmazonia, secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário critica solução de indenização para demarcação dos territórios indígenas, defendida pelo ministro Alexandre de Moraes e faz uma análise dos riscos que existem nessa abordagem.

Os povos indígenas brasileiros passam por um dos maiores desafios de sua história pela luta territorial. No Senado Federal, o Projeto de Lei 2.903 pretende regular a demarcação, com base na tese jurídica do marco temporal para demarcação de terras indígenas, cujo argumento central é que  só serão ser consideradas terras indígenas aquelas ocupadas por seus povos no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal Até o momento, seis ministros do Supremo Tribunal Federal apresentaram seus votos e quatro se posicionaram contra. A votação foi interrompida na quinta-feira 31 de agosto e tem previsão de ser retomada em 20 de setembro.  

Entre os votos, os ministros passaram também a se debruçar sobre possibilidades de soluções de conflitos, como a proposta de indenização do Estado por terra nua para proprietários rurais de “boa fé”, defendida pelo ministro Alexandre de Moraes. Ocorre que, em algumas terras indígenas ainda não demarcadas, existem não indígenas que passaram a ocupar áreas e até conseguir propriedades regularizadas, o que não é permitido, por erro do Estado e pela demora na homologação. 

Em entrevista à InfoAmazonia, Luis Ventura, doutor em Ciência Política e secretário adjunto do Conselho Indigenistas Missionário (Cimi), explica quais as consequências caso a solução de indenização avance e qual a avaliação dele sobre essa moção. “É inconstitucional porque a partir do momento em que o Estado determina que isso é uma terra indígena está determinando que é uma terra pública. Portanto, o Estado não pode pagar por uma terra que já é dele.”

Nos últimos anos, os povos indígenas viram suas terras serem invadidas e devastadas e níveis de desmatamento históricos, com lideranças e defensores da floresta sendo assassinados. A votação sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas coloca em risco centenas de territórios, demarcados ou não. Caso aprovado, eles podem ser alvos de processos judiciais. É o caso dos povos indígenas em isolamento voluntário, que estão hoje em 114 territórios e apenas 28 deles estão totalmente regularizados

É nesta perspectiva histórica e atual que Ventura traça as consequências dos ataques mais recentes e importantes da luta territorial dos povos indígenas. Leia a seguir a entrevista completa.

Luis Ventura é cientista político e trabalha com populações indígenas no Brasil há 13 anos (Foto: Maiara Dourado/Cimi)

InfoAmazonia – Com ataques no Congresso e no Supremo, qual é a dimensão deste momento para a política territorial dos povos indígenas no Brasil?
Luis Ventura – Estamos no momento mais importante de luta pelos direitos territoriais dos povos indígenas desde o processo da constituinte nos anos 87 e 88. De lá para cá, exatamente depois da Constituição de 1988, existiam diversas tentativas por parte de setores ruralistas e por parte de determinado segmento da classe política de tentar redimensionar a natureza dos direitos territoriais dos povos indígenas. No entanto, este julgamento é um momento muito crucial, em que de fato você está confirmando aquilo que a Constituição de 88 também confirmou. 
Olhando para toda a trajetória, inclusive a constitucionalista do Brasil, o direito dos povos indígenas a seus territórios é um direito originário, um direito que precede a formação do próprio estado brasileiro, mas isso não tinha sido tão combatido. Digamos que é como uma teste, por isso estamos num momento absolutamente crucial, para confirmar toda essa trajetória e para confirmar o que a Constituição Federal de 88 consagrou mais uma vez, que é o direito dos povos indígenas a seus territórios e que não existe, portanto, nenhum marco temporal.

Os ataques contra os direitos indígenas às suas terras parecem ter se intensificado, o que explica isso?
O direito dos povos indígenas sempre foi questionado, não é esta a primeira vez. Foram centenas de iniciativas legislativas no Congresso Nacional, nestes quase 35 anos pós-constituição, que pretendiam reformular os direitos dos povos indígenas. Pensemos, por exemplo, no primeiro Projeto de Lei 1.610, que no ano de 1996 já pretendia abrir os territórios indígenas para mineração, ou pensemos na PEC 215, que foi uma proposta de demanda à Constituição e que durante muito tempo foi a principal ameaça aos direitos dos povos indígenas. Como essas, tantíssimas outras estiveram sistematicamente agredindo os direitos dos povos indígenas. 
O PL 2.903 nasce no ano de 2007, e a partir daí ele conseguiu agregar todas as propostas mais compatíveis contra os direitos dos povos indígenas: a questão do marco temporal, a questão de abrir os territórios para exploração de terceiros, a flexibilização da proteção aos povos indígenas, a incorporação de uma perspectiva colonial.
Você vai construindo toda uma estratégia para efetivamente fazer valer que deveria existir na constituição federal o Marco Temporal. De forma mais recente, nos últimos seis anos, temos os ataques mais fortes. Temos que lembrar que no governo Temer foi publicado parecer 001 da AGU, que justamente pretende instalar a tendência de marco temporal na atuação de todas as instâncias do Governo Federal da União. Portanto, um processo que vem se fortalecendo e que encontra o principal âmbito a partir de uma ação de um recurso extraordinário, que tem a ver com uma ação do Estado de Santa Catarina contra o povo Xokleng no Supremo Tribunal Federal. Aí chegamos a este momento em que o Marco Temporal está sendo julgado.


Com o Marco Temporal, qual é a urgência de homologar mais rapidamente as terras pendentes? O GT de transição, por exemplo, sugeriu a homologação direta de 13 territórios, já regularizados, mas até o momento oito receberam a assinatura do presidente.
É absolutamente fundamental que haja uma ação determinada e com celeridade por parte do Estado brasileiro, particularmente por parte do Poder Executivo, para retomar e avançar na política da demarcação e homologação dos territórios indígenas, isso pelo cenário atual, mas isso também porque o Estado brasileiro tem um passivo imenso com relação à demarcação dos territórios.
A Constituição Federal determinou que em 5 anos, até o ano de 1993, o Estado brasileiro tivesse já demarcado e homologado todos os territórios indígenas. Entretanto, 35 anos depois da Constituição nós constatamos que duas de cada três terras indígenas reivindicadas ainda não concluíram o procedimento. Estamos falando daqueles territórios que já estão prontos para homologação, está na mesa do presidente Lula, mas estamos falando também de territórios que já têm um estudo em curso.
Quanto maior firmeza o governo tiver, o poder legislativo entenderá que efetivamente é uma política determinada para cumprir a Constituição. Do contrário, quanto mais morosidade e lentidão haja por parte do Governo Federal, o Poder Legislativo continuará avançando com propostas contrárias aos interesses dos povos indígenas.

Caso a tese seja recusada pelo STF, o que ocorre no Senado? 
A definição da inconstitucionalidade do Marco Temporal por parte do Supremo Tribunal Federal, e creio que estamos já caminhando firmemente para esse resultado, já deveria ser suficiente para que o Senado paralisasse a apreciação do PL que neste momento está caminhando para a Comissão de Constituição e Justiça. Se o Senado insistir na apreciação e tramitação desse projeto de lei e ele acabar sendo aprovado da forma como ele está, evidentemente estaria em claro confronto com uma decisão do Supremo Tribunal Federal e portanto teria que ser denunciado. 
Seria necessário entrar com uma ação, apontando a inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, que efetivamente anularia o PL.  O Senado deveria primeiramente aguardar a conclusão do julgamento e tendo uma decisão favorável pela inconstitucionalidade do Marco Temporal deveria ser paralisada e rejeitada na integralidade o PL. Se o cenário for por um outro caminho, não temos nenhuma dúvida que os povos indígenas continuarão mobilizados para evitar mais esse desastre.

No voto do Alexandre de Moraes, o ministro coloca como  proposta de solução a indenização por terra nua. O que é terra nua e o que seria a indenização por terra nua? 
A indenização por terra nua é inconstitucional. Por terra nua, estamos falando o valor que teria a terra sem as benfeitorias, o valor propriamente da terra como um valor de mercado. É inconstitucional porque, a partir do momento em que o Estado determina que isso é uma terra indígena, está determinando que é uma terra pública. Portanto, o Estado não pode pagar por uma terra que já é dele. Então, a indenização por terra nua não está prevista na Constituição neste momento.
O que está previsto no procedimento demarcatório neste momento é que aquelas pessoas que estão dentro dos territórios indígenas e demonstram a boa-fé da sua permanência nesse território devem ser indenizadas pelas benfeitorias, ou seja, por aquilo que elas construíram naquele território, suas casas, cercados, enfim tudo mais, mas a indenização por terra nua, não.

Quais as consequências caso essa discussão avance durante o julgamento e seja aprovada?
Quando o ministro Alexandre Morais fala que deve ser uma indenização prévia, isso traz duas consequências. A primeira: vai travar todos os procedimentos demarcatórios, porque isso significa que a pessoa não vai querer sair do território até que receba a indenização. Inclusive a pessoa poderá judicializar permanentemente o valor que o Estado vai querer oferecer para ela, portanto, não estaríamos garantindo a efetiva posse dos territórios por parte dos indígenas. 

Vai travar todos os procedimentos demarcatórios, porque isso significa que a pessoa não vai querer sair do território até que receba a indenização

A segunda consequência é que a partir do momento em que você fala da indenização, você está de alguma forma identificando que esses títulos são válidos e isso é mais uma vez inconstitucional, porque o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição diz claramente que os pretendidos títulos em territórios indígenas são nulos e extintos, portanto não cabe a indenização da forma como o ministro Alexandre de Moraes colocou. 

Como você avalia as propostas de solução dadas até aqui? Que solução para estes casos o Cimi julga que  é condizente com a realidade dos povos indígenas?
O voto que no nosso entendimento é mais adequado com a Constituição Federal e também poderá trazer mais paz e mais serenidade é o voto do ministro relator, Edson Fachin, porque ele é fiel à Constituição Federal e reconhece o direito originário do povo indígenas e afasta a tese do Marco Temporal. Ele não incorpora a questão da indenização dentro do julgamento. Então, no nosso entendimento, esse é o voto que deveria ser seguido pela maioria dos ministros. E, com relação a outras medidas que tenham por objeto conciliar direitos, o que nós entendemos é que a história é muito clara nisso.
Os conflitos permanecem na medida em que os territórios indígenas não são regularizados e quem sempre é vítima desses conflitos são os povos indígenas. Até o momento, justamente a não definição da inconstitucionalidade faz com que as condições da violência contra os povos indígenas permaneçam. Portanto, não deveria existir neste caso uma conciliação de interesses, quando há uma situação de violência explícita em que os povos indígenas continuam sendo violentados.

Caso o Supremo entenda que há direitos de terceiros que foram prejudicados por uma ação irregular do Estado em algum momento, então essas pessoas, caso demonstrem boa-fé, devem buscar esses direitos e pleitear eles junto ao Estado em outro foro. A indenização por terra nua nunca pode ser dentro do processo demarcatório. O que vai trazer paz para os povos indígenas e justiça para os povos indígenas é a efetiva demarcação e aprovação de todos os seus territórios.

Nossa posição é seguindo o voto do relator e, caso o Supremo entenda que há direitos de terceiros que foram prejudicados por uma ação irregular do Estado em algum momento, então essas pessoas, caso demonstrem boa-fé, devem buscar esses direitos e pleitear eles junto ao Estado em outro foro. A indenização por terra nua nunca pode ser dentro do processo demarcatório. O que vai trazer paz para os povos indígenas e justiça para os povos indígenas é a efetiva demarcação e aprovação de todos os seus territórios.

Quais os riscos do PL 2.903 para os povos indígenas isolados do Brasil? 
Quando falamos em situação de isolamento voluntário, temos que trazer a informação de que existem 114 registros de povos em situação de isolamento voluntário no país, mas o Estado, através da FUNAI, apenas reconhece de fato 28 desses registros. Então, nós estamos dentro de uma situação inicialmente muito complexa. Precisamos entender que, tradicionalmente nas últimas décadas, o Estado brasileiro aderiu a uma política de proteção dos povos isolados que passava pelo respeito irrestrito à decisão e a determinação destes povos pelo não contato e, portanto, que o Estado não podia promover o contato forçado com estes grupos, porque poderia trazer sérias consequências.
O PL 2.903 vem flexibilizar este elemento. Durante os quatro anos de governo Bolsonaro isso foi colocado em questão porque havia interesses dentro do próprio governo em flexibilizar o acesso à proteção aos poucos indígenas em isolamento voluntário. O PL traz esse experimento quando põe no colo do Estado a possibilidade de decidir quando é que o Estado considera que seria necessário chegar a um contato forçado. Isto evidentemente é uma flexibilização da proteção e as consequências seriam gravíssimas, a trajetória da história já nos mostra isso. Tem a ver com a questão de saúde deles, que é sensível, e um contato forçado pode causar um desastre sanitário. Tem a ver com a garantia do modo de vida deles, porque hoje a Constituição garante seus direitos de organização social.

Como você avalia o posicionamento do presidente Lula neste momento importante de discussão do Marco Temporal? 
Nós entendemos que o presidente Lula não fez tudo que poderia ter feito para mostrar uma posição determinada com relação ao Marco Temporal. Nós chegamos infelizmente quase ao final do julgamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal e o governo Lula  ainda não revogou o parecer 001 de 2017 da AGU. O governo Lula aceitou, no âmbito internacional em fevereiro 2023, mais de 300 recomendações do Sistema Universal da ONU e dentre estas 300 recomendações acolhidas, uma delas fala concretamente do afastamento do Marco Temporal. Portanto, era o governo Lula que deveria ter liderado junto ao legislativo e ao judiciário uma ação muito mais determinada para que o Marco Temporal hoje já estivesse fora de discussão. 
Durante a votação em maio do PL 490, na Câmara do Deputados, nós constatamos uma certa fragilidade por parte da base governista para manifestar com veemência o seu apoio aos direitos territoriais dos povos indígenas. Independentemente de que você tenha ou não base dentro do Congresso Nacional, em matéria de direitos humanos e direitos fundamentais, espera-se  uma posição veemente e assertiva. Ele poderia ter sido muito mais incisivo, poderia ter sido muito mais protagonista nesta discussão e poderia ter tido uma maior capacidade de liderança neste processo.

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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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