Amazônia Minada detectou 1.265 requerimentos de mineração em 26 terras indígenas com registro da existência de povos isolados. Em 2020, metade dos pedidos protocolados na ANM foram em terras com isolados. Entidades indigenistas apontam para risco de genocídio desses povos por causa da pandemia de Covid-19.

Garimpeiro não faz home office. Enquanto o mundo parou por causa da covid-19, em 2020, a busca por minério enterrado em terras indígenas da Amazônia não deu trégua, atingindo o maior número de requerimentos nos últimos 24 anos. Quase metade dos pedidos protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM) — 71 de 143 — no ano passado estão sobre terras indígenas onde há registro na Fundação Nacional do Índio (Funai) de povos isolados, ainda mais vulneráveis a qualquer tipo de doença externa, explicam indigenistas e pesquisadores.

O interesse da mineração ilegal em áreas de povos isolados é citada na ação (ADPF 709) que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e oito partidos políticos apresentaram ao Supremo Tribunal Federal (STF), em julho do ano passado, cobrando medidas do governo federal para evitar o que chamaram de “risco real de genocídio” devido à pandemia de covid-19, que já entrava no seu quinto mês no Brasil. Mesmo assim, o governo, como admitiria ao longo do processo judicial, ainda não tinha implementado medidas de proteção em diversas terras que abrigam povos isolados.

A ameaça pela mineração, que também pode levar surtos de doenças para dentro da floresta, pode ser medida pelas centenas de requerimentos sobrepostos a terras onde vivem povos isolados. Dos 114 registros de povos isolados que a Fundação Nacional do Índio (Funai) possui atualmente, 43 estão dentro de 26 terras indígenas da Amazônia Legal, estas alvo de 1.265 requerimentos de pesquisa ou extração de minério, segundo levantamento do mapa Amazônia Minada, com dados atualizados no dia 29 de janeiro.

Os povos isolados têm uma sinergia muito grande com o local onde vivem. Qualquer tipo de interferência externa impacta de forma brutal na vida deles, pois a terra é o que garante a saúde, o bem-estar.

explica o indigenista Leonardo Lenin, que por 10 anos atuou como coordenador de índios isolados na Funai, e atualmente é secretário-executivo do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato (OPI).

A antropóloga Luísa Pontes Molina investiga garimpos ilegais nas terras dos Munduruku (PA) e também ressalta os riscos à saúde dos povos indígenas por causa desse interesse do setor minerador. Além da proliferação de doenças como malária e covid-19, garimpos ameaçam o meio ambiente por causa do  mercúrio usado para juntar as partículas de ouro. O metal líquido contamina rios e peixes por milhares de anos, aponta um estudo recente realizado pela Fiocruz e pela ONG WWF Brasil, que encontrou vestígios de mercúrio em toda população testada na região do médio Rio Tapajós, nos municípios de Itaituba e Trairão, onde estão os Munduruku. 

Molina lembra que na região de Jacareacanga, no sudoeste do Pará, há evidências de isolados, mas não há estudos da Funai. Na região indicada pela antropóloga, existem 106 requerimentos para exploração de ouro sobrepostos à TI Munduruku, onde consta registro de ao menos um povo indígena isolado.

“Há muitos relatos dos povos do Alto Tapajós, que desde 2015 vêm denunciando garimpo ilegal e outros crimes na região. Inclusive perto de povos isolados.  Mas diante das denúncias, o que vemos é o orçamento da Funai para fiscalização encolher cada vez mais”, destaca a pesquisadora. 

Ela analisou as denúncias de garimpo ilegal e as ações de fiscalização. “Em outubro de 2020, foram empenhados 2 mil reais para fiscalização no Tapajós”, revela. O estudo ainda está em andamento, mas, pelas análises preliminares, a pesquisadora diz que já é possível falar em “omissão do Estado no combate ao garimpo em terras indígenas”.

O projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, cruza a localização de requerimentos protocolados na ANM com informações georreferenciadas dos perímetros de terras indígenas da Amazônia em um mapa. A iniciativa conta também com o perfil-robô @amazonia_minada no Twitter, que acompanha em tempo real os registros e tuíta quando  um novo pedido de mineração é protocolado dentro de uma área protegida da Amazônia.

Terras exclusivas de isolados são alvo de 18 pedidos

A maior parte dos requerimentos estão em terras indígenas demarcadas por causa da presença de povos que já fizeram contato externo, mas que também abrigam povos isolados. No entanto, há 18 requerimentos de mineração em quatro terras com a classificação “interditada”: quando a terra é demarcada e há restrição de uso exclusivamente por causa da presença de povos isolados. 

Um terço desses pedidos são da empresa Bemisa Holding, controlada pelo grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, que chegou a ser preso na operação Satiagraha, deflagrada pela PF para investigar crimes financeiros no país nos anos 2000. Todos os seis procedimentos minerários da Bemisa são para pesquisa de cobre na terra Piripkura (MT), que teve restrição de uso declarada em setembro de 2008. Mesmo assim, nos meses anteriores, a ANM concedeu permissões de pesquisa nos seis processos da empresa até 2012. Em 19 de janeiro de 2021, a terra Piripkura também virou alvo de um requerimento de lavra garimpeira de ouro, protocolado pela Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé.

O primeiro contato com os Piripkura isolados ocorreu em 1989, quando o servidor da Funai Jair Candor esteve com dois ocupantes que  permaneceram na terra após as invasões. Em mais de 30 anos, foram 14 contatos com a dupla. Segundo conta Jair no documentário Piripkura, a busca de vestígios da permanência deles no local é o que garante a renovação da interdição da terra. Qualquer sinal da passagem da dupla é fotografado e vira prova. Todo o material é mantido em sigilo para não revelar a localização da área, já que os dois, ambos homens, são os últimos integrantes dos Piripkura.

A gigante Vale, conhecida pelas duas maiores tragédias da mineração brasileira — em Mariana e Brumadinho —, é dona de um requerimento na terra dos isolados Tanaru, em Rondônia. O pedido da mineradora para disponibilidade de platina é de 2003, três anos antes da publicação do decreto de restrição do território, mas no sistema da ANM é possível observar que a empresa conseguiu o desbloqueio do requerimento em 2018. Não há registro de permissão da ANM para este requerimento. 

No ano passado, a empresa chegou a anunciar aos seus acionistas que abandonaria todos os seus pedidos de mineração dentro de terras indígenas, mas depois recuou. São mais de 200 requerimentos dentro de terras indígenas, 62 em áreas onde vivem povos isolados. Dois pedidos são na terra dos isolados Ituna/Itatá, sudoeste do Pará, através da empresa Mineração Santarém Ltda., da qual a Vale tem participação. 

A Vale negou a existência de requerimentos minerários ativos nas terras indígenas Tanaru e Ituna/Itatá, e disse que os processos “não se encontram mais ativos para a empresa desde 1989”. A empresa argumenta que, apesar dos registros da ANM apontarem 200 processos em nome das empresas do grupo, “a maioria desses processos foi objeto de renúncia/desistência por parte da própria Vale, estando pendente homologação da ANM”. No entanto, no processo número 886.223/2003, que está sobreposto à TI Tanaru, não há qualquer menção à desistência da Vale na sua tramitação na ANM

Com 1.420 km² de área — aproximadamente o tamanho da cidade de São Paulo —, a terra Ituna/Itatá teve a sua restrição de uso publicada em 2011, após três décadas de indícios coletados por indigenistas da Funai. Mesmo assim, o território é alvo constante de mineradores, grileiros, fazendeiros e políticos. Citando “conhecimento de causa” para garantir que não há isolados na região, o senador paraense Zequinha Marinho (PSC) pediu o fim da interdição da TI Ituna/Itatá através de um projeto de decreto legislativo. 

Em fevereiro do ano passado, um antropólogo aliado do governo Bolsonaro foi preso por entrar na área sem autorização. Na ocasião, tentou impedir a fiscalização do Ibama para retirada de gado das terras. Em novembro de 2020, o Ministério Público Federal (MPF-PA) também recomendou a suspensão de expedição da Funai na área de Ituna/Itatá por conta da condição de terra interditada.  Segundo o órgão, qualquer entrada na área só pode ser realizada após a desintrusão e regularização, com a retirada dos invasores que atualmente ocupam a terra indígena e representam ameaça à vida e à integridade física também dos servidores públicos. 

“Tem que deixar os indígenas no território deles, mas isso não acontece. O que temos normalmente é uma permissividade do Estado. Ituna/Itatá, por exemplo, está tomada por grileiros”, confidenciou um técnico da Funai que prefere não se identificar. “Justamente por serem isolados, esses povos não serão vacinados, então o cuidado com eles deve ser permanente. Seja por causa da covid-19 ou de qualquer outra doença que um minerador ou posseiro possa transmitir”, emendou o servidor.

Proteção de povos é “inócua”, afirma liderança indígena

Em julho de 2020, quando órgãos indigenistas já calculavam quase 400 indígenas mortos por covid-19, a Apib e oito partidos apresentaram uma ação no STF para obrigar o governo Bolsonaro a proteger os povos nativos. O ministro Luís Roberto Barroso determinou a criação imediata de duas salas de situação: uma para povos indígenas e outra apenas para monitorar regiões de povos isolados ou de recente contato. 

Coordenado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, as reuniões da sala que acompanha as ações para os povos isolados são chamadas de “inócuas” por Beto Marubo,  representante da Apib e líder da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). 

Indo ao STF, pensamos que a postura negacionista do governo Bolsonaro mudaria, mas está claro que isso não aconteceu e nem vai acontecer. As reuniões da sala de situação são coordenadas por integrantes do GSI que não têm qualquer noção de como proteger um povo isolado. Na prática, são inócuas

diz Beto Marubo.  

No final de julho, com o país mergulhado há cinco meses na pandemia, o GSI admitiu em petição enviada ao STF que oito terras indígenas — três com povos isolados: Alto Rio Negro (AM), Alto Turiaçu (MA) e Enawenê Nawê (MT) — não tinham qualquer tipo de barreira sanitária para impedir a entrada de pessoas nessas regiões.

Após oito meses da ação no STF, e com quase 1.000 indígenas mortos por Covid-19, o governo Bolsonaro ainda não foi capaz de apresentar um plano de proteção aos povos indígenas a contento de órgãos indigenistas e pesquisadores médicos da Fundação Oswaldo Cruz e outras entidades. Três versões foram recusadas pelo ministro Barroso, e uma quarta está em análise. 

Esse cenário pode piorar ainda mais com o projeto de lei 191/2020, de autoria do governo Bolsonaro, que prevê a regulamentação da exploração de terras indígenas ficou engavetado em 2020 pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ). No entanto, há um receio de indigenistas de que isso mude com a recente posse de Arthur Lira (PP/AL), que recebeu apoio de Bolsonaro durante a campanha à Presidência da Câmara.

Sobre a exploração de terras indígenas, Bolsonaro disse abertamente a apoiadores e imprensa em São Francisco do Sul (SC), no dia 15 de fevereiro, que “tem que regularizar isso daí”, com a seguinte justificativa: “Isso é muito bom porque os índios deixam de ser pessoas que estão vivendo isoladas, se integrando cada vez mais à sociedade”.

No dia 15 de fevereiro, o InfoAmazonia pediu esclarecimentos aos órgãos federais ANM, Funai e GSI; e também à Bemisa Holding. Não tivemos retorno até a publicação desta reportagem.

ATUALIZAÇÃO
Em 15 de fevereiro, pedimos resposta da Bemisa sobre os processos citados na reportagem, mas não tivemos retorno. Após a publicação da reportagem em inglês, em 17 de março, a mineradora entrou em contato e informou que pediu desistência em 2011 dos seis requerimentos na TI Piripkura, Mato Grosso. No entanto, todos os processos continuam ativos no sistema da ANM e em nome da Bemisa.


Esta reportagem faz parte do Amazônia Minada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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