Projeto de lei foi aprovado nesta quarta-feira (23) pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária da Casa, apesar dos esforços de Marina Silva e Sonia Guajajara em conversar com a relatora, Soraya Thronicke, e pedir mais audiências públicas. Por outro lado, como apurou a InfoAmazonia, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sinaliza que deve esperar decisão do STF para pautar a votação no plenário.
O avanço no Senado do projeto de lei (PL) que institui a tese do Marco Temporal sobre a demarcação das terras indígenas: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. – o PL 2963/2023 – acendeu um alerta entre os ambientalistas sobre a possibilidade de a proposta ser levada brevemente ao plenário da Casa. Nesta quarta-feira (23), o texto foi discutido e aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), por 13 votos contra 3. A expectativa da bancada ruralista é a de que, agora, o PL seja votado rapidamente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para depois ir ao plenário. Não é o que pensa, porém, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
A InfoAmazonia apurou que, ao menos até agora, a disposição de Rodrigo Pacheco é de aguardar que o tema seja julgado, antes, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para só depois ser levado ao plenário e passar pelo crivo dos 81 senadores. Essa tem sido a tônica das conversas entre o presidente do Senado e líderes partidários, a despeito da tramitação do assunto pelas comissões da Casa.
A tese do Marco Temporal sobre a demarcação de terras indígenas determina que só as ocupações por povos originários que existiam no dia da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, podem ser reconhecidas e homologadas. Isso significa que, se um povo foi expulso de uma área por grileiros ou fazendeiros e tentava retomá-la àquela época, por exemplo, não teria mais direito ao território. Além de ter que comprovar a presença na área naquela data, cada povo indígena deve demonstrar, ainda, que sua ocupação tinha “caráter permanente” e que envolvia “atividades produtivas”.
O projeto de lei estabelece ainda que o usufruto dos indígenas em relação às suas terras já reconhecidas não pode se sobrepor ao interesse da “política de defesa e soberania nacional”. Na prática, o PL permite todo tipo de obra de infraestrutura nas terras indígenas, como a instalação de redes de comunicação, abertura de estradas e ferrovias, usinas hidrelétricas, além das construções de equipamentos e edificações para prestação de serviços públicos, “proibindo a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza pela presença desses itens”.
O texto, da forma como está hoje, libera atividades econômicas dentro das terras demarcadas, quando feitas pela própria comunidade indígena, mas também admite a “cooperação e contratação de terceiros não indígenas”. A terra não pode ser arrendada, vendida ou alienada. Fica autorizado, ainda, o “turismo em terras indígenas”, sendo organizado pela própria comunidade, por meio de “contratos para a captação de investimentos de terceiros”.
A bancada ruralista pressiona pela aprovação do projeto, que passaria a impor um tratamento linear para todas as terras indígenas do Brasil. Os ambientalistas se mobilizam contra o projeto de lei. No governo Lula, os posicionamentos estão divididos, tendo os ministérios dos Povos Indígenas e de Meio Ambiente de um lado e a pasta da Agricultura de outro.
Interlocutores que têm conversado sobre o tema com Rodrigo Pacheco afirmaram à InfoAmazonia que o entendimento do presidente da Casa tende a acompanhar a linha de raciocínio defendida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, ou seja, a de que cada caso é um caso, com suas particularidades e assim devem ser tratados. No início de junho, Moraes votou contra a tese do Marco Temporal, por considerar que a data da promulgação da Constituição não pode ser utilizada como critério único para definição da ocupação tradicional de terras por comunidades indígenas.
Após o voto de Moraes, o ministro do STF André Mendonça, indicado à corte pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, pediu vista do tema, paralisando a análise mais uma vez. Até o momento, há dois votos contra a tese. Em setembro de 2021, o ministro Edson Fachin afirmou que o direito à terra pelos indígenas deve prevalecer, ainda que não estivessem no local em 5 de outubro de 1988. O ministro Nunes Marques, porém, também indicado por Bolsonaro, votou a favor do critério do Marco Temporal.
Bolsonaro, desde a época de sua campanha eleitoral, bem como durante o mandato de presidente, sempre manteve uma postura contrária às demarcações e se elegeu dizendo que “nenhum centímetro” de terra indígena seria homologado em seu governo, o que ocorreu, de fato. A postura dos ministros André Mendonça e Nunes Marques, portanto, atendem rigorosamente ao que sempre defendeu o ex-capitão.
Pressa na decisão
As intenções de Rodrigo Pacheco de aguardar a decisão do STF não encontraram respaldo na bancada ruralista. No Senado, os parlamentares agem com pressa devido à iminente retomada da votação sobre a tese do Marco Temporal pela corte e querem se antecipar. As novas regras adotadas pela corte com relação a pedidos de vistas estipulam que esses pleitos não podem mais ultrapassar o prazo de 90 dias desde a sua apresentação. Isso significa que, a partir do dia 7 de setembro, o ministro André Mendonça terá de pautar, novamente, o julgamento do caso pela corte, o que permitirá, por exemplo, que a ministra Rosa Weber – que tem postura contrária à tese do Marco Temporal – possa proferir seu voto, já que ela se aposenta até 2 de outubro.
Por isso, diz a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), relatora do projeto de lei, o plano é avançar com a mesma proposta que recebeu da Câmara, já que alterações do texto no Senado fariam com que o PL voltasse para análise dos deputados. “Tenho conversado com todos os lados sobre o assunto e ouvido ponderações, mas a verdade é que não há tempo para mudar nada, porque não conseguiríamos votar em plenário a tempo”, disse à InfoAmazonia.
Na terça-feira (22), houve mobilização do governo para tentar convencer a senadora Soraya Thronicke de enviar o tema para audiências em outras comissões, como as de Meio Ambiente (CMA) ou Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), e não apenas para a CCJ. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara (PSOL), teve um encontro com Marina Silva (Rede) para tratar do assunto e, depois, se reuniu com Soraya Thronicke para tentar barrar a aprovação do texto. O entendimento da relatora, porém, é o de que nada será alterado.
Thronicke apresentou um relatório favorável à aprovação integral do texto que passou pela Câmara, em 31 de maio. Naquela data, os ruralistas também se articularam para se adiantar à votação que seria retomada pelo STF e quiseram dar uma “resposta” ao Judiciário, sob o argumento de que a decisão sobre o assunto deve ser matéria do Congresso, e não da Suprema Corte. No plenário da Câmara, o projeto (antigo PL 490) foi aprovado por 283 votos favoráveis e 155 contra. O texto original sobre o assunto foi apresentado no Congresso em 2007, portanto, há 16 anos, e sempre enfrentou profunda resistência dos povos indígenas.
“Entendemos que a proposta de Marco está em linha com a melhor solução para o dilema de estabelecimento de novo marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil”, diz a senadora Soraya Thronicke, ao defender a proposta. “O Estado brasileiro precisa delimitar o entendimento acerca de ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas’. Não se mostra razoável, proporcional e legítimo adotar para o conceito ‘tradicionalmente’ uma ocupação que regresse a um marco temporal imemorial, ou seja, ocupação a tempo atávico, a períodos remotos, que, no limite, poderia gerar disputa sobre todo o território nacional.”
Na prática, a declaração de Soraya Thronicke não condiz com a realidade, uma vez que os indígenas nunca arrolaram para si o direito de controlar o território nacional que, historicamente, os pertenceu, mas que cada processo de demarcação levava em conta análises técnicas e individualizadas.
O posicionamento da senadora foi rechaçado por parlamentares como Fabiano Contarato (PT-ES), que condenou a aprovação do que classificou como violação aos direitos básicos dos povos indígenas. “Vamos aprovar uma violação daquilo que é mais sagrado: a riqueza, a cultura e a generosidade que os povos indígenas nos proporcionam”, afirmou o parlamentar. “Eu peço perdão aos povos indígenas pela aprovação deste texto nesta comissão, hoje”, afirmou.
O líder indígena Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que participou da audiência, criticou o projeto e sua tramitação no Senado, destacando o fato de que, na prática, a Casa pretende aprovar um texto sem nenhum tipo de alteração ou aprimoramento. “O que vocês estão aprovando aqui hoje é um copia e cola do que veio da Câmara. Não houve nenhum debate”, disse.
Protesto generalizado
Para Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), a tramitação acelerada no Senado mostra que “não há qualquer interesse em um debate realmente qualificado” sobre o assunto. “Infelizmente, o PL vai muito além da questão do Marco Temporal. Chega, por exemplo, a permitir contatos forçados com indígenas isolados. Esses povos não têm relações com a sociedade nacional e não possuem memória imunológica para doenças comuns, como a gripe. Acabar com a política de não contato, além de desrespeitar o direito ao isolamento, representa uma ameaça concreta à vida de grupos inteiros”, diz Batista.
O projeto, afirma a advogada do ISA, também permite a retirada de terras que já estão consolidadas e definitivamente regularizadas se os indígenas perderem seus “traços culturais”. “Isso gera expectativa de anulação de áreas e, consequentemente, o aumento de invasões, do desmatamento e da violência contra os indígenas. Espera-se que a CCJ traga algum equilíbrio e racionalidade para a discussão, aguarde o STF definir a questão sobre o marco temporal e retire da proposta absurdos inadmissíveis sob o ponto de vista dos direitos fundamentais.”
Um total de 309 organizações civis ligadas à defesa do meio ambiente e dos povos indígenas assinou uma manifestação de repúdio ao projeto de lei, sob o argumento de que a proposta, “além de impossibilitar a demarcação de novas terras indígenas, afrouxa regras de proteção e permite instalação de grandes obras sem consulta às comunidades afetadas”.
O senador Alessandro Vieira (MDB-SE) apresentou requerimentos a Rodrigo Pacheco para redistribuir o projeto para as comissões de Assuntos Sociais (CAS), do Meio Ambiente (CMA) e dos Direitos Humanos (CDH), justificando que “negar à CAS este debate é passar a mensagem de que os interesses da população indígena não serão considerados durante o processo legislativo nesta Casa. O que se sustenta é que a única comissão com competência específica para opinar sobre proposições relativas à população indígena não será ouvida”.
Na avaliação das organizações civis, o projeto permite diversas arbitrariedades contra os povos indígenas e suas terras, que hoje protegem 24% do que resta da floresta amazônica. “Uma dessas arbitrariedades é permitir a retomada de reservas indígenas pela União a partir de critérios subjetivos, o que colocaria em risco imediato pelo menos 66 territórios, habitados por mais de 70 mil indígenas e com uma área total de 440 mil hectares”, afirmam. “É importante mencionar que são terras já regularizadas e consolidadas e que essa possibilidade provocaria insegurança jurídica, violência e invasões com a expectativa de revisão de atos jurídicos perfeitos.”
Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.