Levantamento inédito mostra que fazendas na terra indígena em Rondônia abasteceram dois frigoríficos da JBS que vendem carne para Pão de Açúcar, Assaí e Extra, controlados por gigante francesa; área ocupada por fazendas se tornou epicentro de conflitos. Frigorífico diz que não tem controle sobre fornecedores indiretos.
“Nós estávamos caminhando pela estrada e, de repente, começou a sair gente do mato, e em carros e motos pela estrada. Eles nos cercaram e disseram que estávamos dentro de propriedade privada. Eu disse que ali é terra indígena, e eles sabem disso”, contou a indigenista Ivaneide Bandeira, sobre momentos de tensão que viveu ao lado de indígenas do povo Uru-Eu-Wau-Wau, no domingo de Dia das Mães, 14 de maio deste ano.
“Isso aqui não vai liberar assim do jeito que vocês estão pensando, pode ter certeza”, afirmou um dos homens que cercavam Neidinha, como é conhecida a ambientalista e fundadora da Associação Etnoambiental Kanindé.
O confronto ocorreu em uma área da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW), em Rondônia, conhecida como Burareiro, mesma região onde invasores mantêm fazendas de gado que abastecem grandes frigoríficos e redes de supermercados.
Em março de 2021, o grupo francês Casino Guichard-Perrachon, que controla Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper, foi denunciado na Justiça da França por manter em suas prateleiras carne de fornecedores ligados diretamente ao desmatamento ilegal na Amazônia, incluindo das fazendas que estão no Burareiro.
O caso se enquadra na Lei de Vigilância: A lei francesa foi motivada após desabamento do prédio Rana Plaza em 2013, em Bangladesh, que sediava fábricas de vestuários de marcas renomadas com trabalhadores em condições precárias. Mil pessoas morreram no desabamento., criada em 2017, que obriga grandes empresas sediadas no país a garantirem que “tanto suas filiais quanto empresas subcontratadas” não causem “violações graves contra os direitos humanos e liberdades fundamentais, da saúde e segurança das pessoas e do meio ambiente”.
Apesar de ter declarado à Justiça francesa que mantém rigoroso sistema de controle da sua cadeia de fornecedores, as prateleiras dos supermercados do grupo francês no Brasil continuam vendendo carne com origem em áreas protegidas.
É o que apontam os dados de um novo levantamento inédito do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, em parceria com o Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis –, em inglês), que analisou mais de 500 mil registros sobre a movimentação de animais na área de influência de dois frigoríficos da empresa JBS que fornecem carne para o grupo Casino, correspondente ao período de 2018 a 2022.
Dados das Guias de Trânsito Animal (GTAs) apontam que as plantas de abate da JBS em Pimenta Bueno (Serviço de Inspeção Federal -SIF -2880) e Vilhena (SIF-4333), municípios de Rondônia, receberam animais com origem na terra indígena e outras áreas protegidas depois de março de 2021, data em que povos indígenas do Brasil e da Colômbia, com apoio de ONGs internacionais, ingressaram com ação contra o Casino na França.
A partir dos dados dos fornecedores que entregaram gado diretamente nesses dois frigoríficos, a nossa reportagem fez o caminho inverso da cadeia de abastecimento e, com base nas informações declaradas nas GTAs, encontrou produtores na cadeia de abastecimento instalados dentro da terra indígena.
Na maioria das transações de gado analisadas pela reportagem, a transferência dos animais das fazendas na terra indígena não ocorreu de forma direta para a JBS. No entanto, após transitarem por diferentes fazendas, os animais chegaram aos frigoríficos sem que se possa diferenciar o gado que veio da terra indígena dos demais. Essa manobra é conhecida como lavagem de gado e tem como objetivo esconder a possível origem ilegal dos animais.
Um dos fornecedores que teria praticado a manobra é o fazendeiro Orlando Alves Trindade, que ocupa mais de mil hectares com a Fazenda Coimbra dentro da TI Uru-Eu-Wau-Wau.
Trindade transportou gado da Fazenda Coimbra para outra propriedade sua fora da TI, a Fazenda Aryane, que abasteceu o frigorífico da JBS em Vilhena.
Em 15 de maio de 2021, dois meses após a denúncia contra o grupo Casino na França, a JBS de Vilhena recebeu 54 animais da Fazenda Aryane, segundo os dados obtidos pela reportagem. Na seção de rastreabilidade do frigorífico, que permite consulta sobre a origem de seus produtos, consta que os animais dessa fazenda foram abatidos em 4 de junho.
Mas os dados disponibilizados pela JBS não mostram que, dois meses antes, a Fazenda Aryane recebeu 90 cabeças de gado da Fazenda Coimbra, de dentro da terra indígena.
Questionada pela InfoAmazonia, a JBS afirmou que “não tem visibilidade sobre os demais elos de sua cadeia”, o que impediria o frigorífico de garantir controle sobre toda a cadeia de abastecimento desde a origem. (Veja manifestação da JBS abaixo)
Em 2021, um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) citou a necessidade de fiscalização na Fazenda Coimbra, e propôs a instalação de barreiras de contenção na região para evitar invasões. A fazenda está a apenas sete quilômetros da Aldeia Jamari, dentro da TIUEWW. O órgão também recomendou o cancelamento de todos os cadastros de propriedades rurais dentro da terra indígena, como forma de coibir a exploração nessas áreas.
Não há informações de que a fazenda foi fiscalizada. No entanto, em 2022, Trindade foi homenageado pela Assembleia Legislativa de Rondônia como cidadão honorário do estado “por seus serviços prestados”.
Entre 2019 e 2021, a Fazenda Coimbra forneceu 179 cabeças de gado para diferentes fazendas que abastecem a JBS, segundo dados das guias. As áreas dentro da terra indígena foram adquiridas por Orlando Trindade entre 2001 e 2002, mais de duas décadas após a demarcação do território, que foi homologado em 1991.
Em área contínua à Fazenda Coimbra, dentro da terra indígena, encontramos outro fornecedor indireto da JBS. A Fazenda Dois Irmãos transferiu mais de 100 animais para propriedades que negociaram gado na unidade de abate da JBS em Pimenta Bueno.
As duas fazendas estão com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) cancelado por decisão judicial desde 2017, mas os ocupantes nunca foram retirados da área, ao contrário, segundo os dados das GTAs analisadas, essas propriedades continuam a atividade pecuária dentro da terra indígena, com gado vacinado e movimentando animais por diferentes propriedades para despistar os sistemas de monitoramento da cadeia produtiva.
Assim como as Fazendas Coimbra e Dois Irmãos, nossa apuração identificou que pelo menos 15 fazendas sobrepostas à terra indígena abasteceram a cadeia de fornecimento do grupo Casino em Rondônia depois de março de 2021. Entre 2018 e 2022, foram 46 propriedades identificadas dentro da terra indígena, que teriam manejado 8 mil cabeças de gado.
Fazendas na TI abasteceram fornecedores diretos da JBS
A reportagem da InfoAmazonia também encontrou carne com código do SIF correspondente aos frigoríficos relacionados a invasões na TIUEWW em supermercados da rede Casino no Brasil. O registro mais recente ocorreu em uma loja do Assaí, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, em maio deste ano. Também encontramos carne desses frigoríficos em Piracicaba, interior de São Paulo. Em setembro de 2022, a organização Mighty Earth também flagrou carne dos mesmos frigoríficos em uma loja do Assaí na capital paulista.
Os mesmos dados analisados pela InfoAmazonia e o CCCA estão em poder dos órgãos sanitários dos governos estaduais e federal. No entanto, por considerar informação sanitária e de saúde pública, estratégica para acordos comerciais, o Ministério da Agricultura e Pecuária resiste em compartilhar as informações das GTAs com órgãos ambientais.
Em maio, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) disse à reportagem que tem planos de integrar informações das GTAs e de outras bases públicas para aumentar controle sobre o desmatamento na Amazônia.
A reportagem também identificou que a cadeia de abastecimento dos mercados Pão de Açúcar, Assaí e Extra recebeu gado com suspeitas de origem nas terras indígenas Sete de Setembro e Igarapé Lage e de várias unidades de conservação, incluindo a Reserva Extrativista Jaci-Paraná, Floresta Extrativista do Rio Preto/Jacundá e o Parque Estadual do Guajará-Mirim, todos em Rondônia.
Burareiro, um barril de pólvora
A parte da terra indígena de cerca de 15 mil hectares que se tornou o epicentro do conflito entre criadores de gado e indígenas, e de onde parte a maioria das invasões ao território Uru-Eu-Wau-Wau, tem origem no projeto de expansão territorial da ditadura militar para Amazônia, que na década de 1970 instalou 115 famílias no território dos indígenas.
A omissão histórica do Estado brasileiro para resolver a situação se tornou munição para a expansão da ocupação dessa área por invasores, que nos últimos anos engrossaram as fileiras das novas frentes de desmatamento.
O território Uru-Eu-Wau-Wau está entre as terras indígenas mais desmatadas da Amazônia, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O pico do desmatamento ocorreu em 2019, quando 49 mil hectares de floresta foram devastados. Em 2021, a área de pastagem ocupada na terra indígena alcançou 34 mil hectares, segundo dados do MapBiomas — três vezes o tamanho da cidade de Paris. E a maior parte dessa devastação se concentrou na região do Burareiro.
Desmatamento na TI Uru-Eu-Wau-Wau
O funcionamento das fazendas nas operações com gado é possível porque o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é autodeclaratório e tem como objetivo reunir informações ambientais das propriedades e posses rurais, permite pedidos de registros de propriedade dentro de terras indígenas. E, apesar de depender de validação para efetivo controle ambiental, apenas com o número do cadastro já é possível fazer manejo de gado.
“O CAR se tornou uma espécie de cartório paralelo, que supostamente atesta, sem testar, a sua regularidade com a legislação ambiental”, disse Márcio Santilli em entrevista à InfoAmazonia. O ambientalista e indigenista, que foi ex-presidente da FUNAI (1995-1996) e é fundador do ISA, diz que o mecanismo vem sendo sistematicamente sabotado pela bancada ruralista que vem adiando os prazos para implantação total do CAR.
No total, nossa reportagem identificou 563 cadastros ambientais registrados nesta terra indígena desde 2012, quando o instrumento foi criado.
Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com uma ação civil pública cobrando a suspensão das GTAS relacionadas aos CARs considerados ilegais para o manejo de gado dentro do território. O pedido foi aceito pela Justiça Federal, mas, em março deste ano, a decisão foi reformada pelo juiz federal Diogo Negrisoli Oliveira, que voltou a autorizar a emissão de guias para o transporte de gado em propriedades com origem no assentamento rural do INCRA, apontando que “há de se diferenciar àqueles que possuem títulos emitidos pelo INCRA desde 1980 e àqueles que realmente são invasores, não possuindo título nenhum”.
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia determinado a desocupação de terras indígenas, em uma decisão que citava nominalmente sete territórios críticos, incluindo a TIUEWW. Em janeiro deste ano, por descumprimento da decisão, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, emitiu nova determinação, informando que as desobediências às ordens judiciais serão apuradas e os responsáveis poderão ser punidos.
Na decisão, Barroso aponta que o governo federal na gestão de Bolsonaro apresentou informações “inverossímeis” sobre as terras indígenas alegando dificuldades orçamentárias para cumprir a decisão. O ministro deu novo prazo de 60 dias para que a União apresente um plano completo para desintrusão dos sete territórios mencionados na ação.
No último 7 de junho, o Ministério da Justiça publicou portaria autorizando apoio da Força Nacional à Funai para fazer a desocupação dos não-indígenas no território Uru-Eu-Wau-Wau. Além da pecuária, a TI também é alvo de grilagem e exploração ilegal de madeira.
Até o momento não há informações sobre as ações autorizadas pela Justiça, nem se as equipes vão atuar na região do Burareiro.
Divergências no INCRA
Burareiro é o nome dado ao primeiro Projeto de Assentamento Dirigido (PAD: Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) é uma modalidade de assentamento estabelecido para o desenvolvimento de atividades ambientalmente diferenciadas e dirigido para populações tradicionais (ribeirinhos, comunidades extrativistas, etc.) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no então Território Federal de Rondônia, em 1975. Na época, o governo militar assentou 1.500 famílias para se dedicarem ao cultivo do cacau — o termo burareiro remete às construções rústicas para beneficiamento do fruto.
A demarcação definitiva da terra indígena enfrentou um longo processo, permeado por conflitos para abertura de estradas, pela extração de minérios e roubo de madeira, e só foi concluído em 1991, quando o presidente Fernando Collor (1990-1992) homologou 1,8 milhões de hectares para uso exclusivo dos povos indígenas.
A partir desta data, os 115 títulos do assentamento rural PAD Burareiro deveriam ser anulados, conforme determina a Constituição brasileira (1988), que diz que são “nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” das terras indígenas ou aqueles que autorizem “a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Nessa área do Burareiro estão os cemitérios indígenas e locais sagrados dos povos que ali viviam historicamente, mas que não conseguem mais chegar naquela porção do território por causa de medo. “Os indígenas têm evitado sair sozinhos com medo de ataques e evitam essa região do Burareiro”, disse Neidinha da Kanindé.
Em 1983, os antropólogos Betty Mindlin e Mauro Leonel apontaram que o contato forçado com os então novos ocupantes trazidos de outras regiões do país gerou conflitos e redução significativa da população indígena: “as menos atingidas foram reduzidas à metade”, alertavam.
A TIUEWW é ocupada por nove povos. Além dos Jupaú (que também são conhecidos como Uru-Eu-Wau-Wau), o território é ocupado por povos Amondawa, Oro Win e indígenas isolados de pelo menos duas etnias diferentes confirmadas.
Em abril deste ano, o INCRA, a FUNAI e o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) se reuniram para tratar do conflito. No encontro, o diretor de Governança Fundiária do INCRA, João Pedro Gonçalves, se comprometeu a buscar uma solução para tirar “18 mil cabeças de gado de quem se diz dono de terra pública, que se diz dono de terra indígena”. Gonçalves, que representou o presidente do INCRA no encontro, afirmou que o conflito é fruto de um erro histórico que “não pode ficar debaixo do tapete”.
“Fica aqui o compromisso do INCRA de realizar reuniões de trabalho para entrar na área e resolver essa pendência, esse erro, porque ali já era terra indígena”, declarou Gonçalves na presença de representantes indígenas Uru-Eu-Wau-Wau.
Em nota enviada à InfoAmazonia, o superintendente do INCRA em Rondônia, Luiz Flávio Carvalho Ribeiro, deu outro tom para a situação de conflito e disse que o órgão vai aguardar decisão da Justiça para “as providências que o poder judiciário determinar”. (Leia nota na íntegra)
O MPI informou que o INCRA se comprometeu a apresentar um levantamento da ocupação na terra indígena até 19 de junho, mas, segundo o ministério, o encontro para tratar do assunto foi cancelado.
Para o antropólogo Tiago Moreira, do ISA, a intensificação da ocupação ilegal da terra indígena nessa região está relacionada ao afrouxamento das medidas de fiscalização nos últimos anos, que deixaram o território vulnerável.
“Essa invasão e permanência dos invasores na terra indígena acaba passando um recado também para outros projetos de invasões dos territórios, e coloca em xeque os limites das áreas dos povos indígenas na Amazônia”, afirma o antropólogo.
Vigilância francesa
A denúncia dos povos indígenas contra o grupo Casino é o primeiro caso de uma rede de supermercados levada a um tribunal na França pela Lei de Vigilância, por desmatamento e violações dos direitos humanos na Amazônia.
Em junho do ano passado, as organizações indígenas do Brasil e da Colômbia recusaram mediação na ação judicial –que é quando um mediador facilita a negociação para uma solução amigável entre as partes—, por considerarem que o processo é de interesse público e não pode ser resolvido em negociações a portas fechadas.
“As lideranças não aceitaram a mediação pois entendem que a questão não é somente financeira, mas se trata da própria existência das comunidades e da floresta. E que as grandes empresas devem entender que essa cadeia afeta diretamente a vida e os direitos dos povos indígenas que lá vivem”, aponta a advogada indígena Cristiane Soares, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Segundo levantamento do CCCA que embasou as denúncias de 2021, foram identificados 25.482 animais manejados ilegalmente na TIUEWW, em 13.411 hectares de floresta desmatados.
Um relatório econômico, elaborado pelo Conservation Strategy Fund a pedido do CCCA, calcula que a cadeia de fornecimento do grupo francês provocou um dano material estimado em € 54,3 milhões de euros (cerca de R$ 282,4 milhões em cotação atual) aos povos Jupaú, Amondawa, Oro Win e indígenas em isolamento. No entanto, o cálculo dos danos imateriais, que vão da perda demográfica, diminuição das chances de autodeterminação dos povos, diminuição dos serviços ecossistêmicos até o risco de extinção de grupos inteiros, podem ser ainda maiores.
Para Cristiane Soares, “a morosidade do processo na Justiça francesa de certa forma tem contribuído para o aumento das violações nas terras indígenas” apontando que “até o momento não houve ação efetiva para barrar a situação”. O processo, agora, aguarda audiência para instrução do julgamento, que já foi adiada por duas vezes.
No Brasil, parlamentares enviaram ao Congresso nacional o projeto de lei (PL 572/22) que cria a lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas:
Pelo texto em análise na Câmara dos Deputados, o Estado e as empresas têm as obrigações comuns de respeitar e não violar os direitos humanos; não praticar atos de colaboração, cumplicidade, instigação, indução e encobrimento econômico, financeiro ou de serviços com outras entidades, instituições ou pessoas que violem os direitos humanos.. Além disso, um termo de ajustamento de conduta (TAC da Carne) foi firmado com grandes frigoríficos em 2009, justamente como alternativa à via judicial, desde que as empresas se comprometessem em não comprar produtos com origem em desmatamento ou territórios protegidos.
No entanto, até hoje, os frigoríficos não adotaram mecanismos transparentes e confiáveis de monitoramento da cadeia de abastecimento. Na JBS, por exemplo, a rastreabilidade pública disponibilizada em seu site sobre a origem dos seus produtos permite apenas identificar fornecedores diretos, não tornando transparente a origem dos animais e por quais fazendas transitaram.
Guardiões da floresta e os políticos locais
Segundo narra a ação que tramita no TRF-1, em 1991 o INCRA teria removido algumas famílias da terra indígena, mas os reassentados retornaram à região com influência de políticos locais.
Em 2017, políticos de Rondônia participaram de um encontro dentro da terra indígena prometendo a regularização da área para produtores rurais. Um dos que estavam presentes é o hoje deputado federal Lucas Follador (PSC-RO), que na época representou seu pai, deputado estadual Adelino Follador (União). O governo do estado e órgãos ambientais também tiveram representantes no encontro, que ocorreu em uma base da Funai que estava abandonada.
A regularização fundiária da área foi uma esperança que se manteve com a gestão anti-indígena do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) e do governador de Rondônia, Marcos Rocha (União), que segue no poder.
“Em Rondônia se tem um discurso muito articulado dos políticos locais contra povos indígenas e as unidades de conservação. Nesses últimos anos, nós vimos estradas surgindo nessa parte da terra indígena bem próximas de duas aldeias dos povos Jupaú, o que coloca também em risco todos os povos que usam essa terra, incluindo os isolados”, explica o antropólogo Tiago Moreira.
Após várias tentativas para retirar os ocupantes da terra indígena, a Funai só ajuizou ação para reintegração de posse em 2004. O processo chegou a ser arquivado em 2014, por não ter sido demonstrado no processo quem seriam os ocupantes a serem desapropriados. O MPF recorreu da decisão e o processo aguarda uma decisão do Tribunal Federal da 1ª Região desde 2019. Na movimentação mais recente, a Justiça informou que foi encerrado o prazo para os ocupantes se manifestarem.
Na falta de proteção governamental do território, e com o avanço das invasões nos últimos anos, os próprios Uru-Eu-Wau-Wau decidiram fazer a vigilância da terra com a criação de um grupo que se revezava na proteção do território, os Guardiões. Em várias ações, os indígenas expulsaram invasores e entregaram provas às autoridades.
Em 18 de abril de 2020, o líder indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que fazia parte da equipe de vigilantes Guardiões, foi assassinado na cidade de Jaru, fora da terra indígena. Apesar de os indígenas relacionarem o caso com as invasões do território, a Polícia Federal descartou relação do crime com a resistência dos indígenas e o caso foi encaminhado para a Justiça estadual e será julgado como homicídio por motivação fútil.
Em janeiro deste ano, o artista Mundano pintou um painel 618 m² no centro da cidade de São Paulo, inaugurado no dia do aniversário da capital paulista.
A morte do professor Ari continua ecoando dentro e fora de Rondônia. Em 2021, Txai Suruí denunciou a morte do seu amigo pessoal na abertura da Conferência do Clima (COP 26) na Escócia.
Grupo Casino sugere que fornecedores indiretos são responsabilidade da JBS
Questionado pela reportagem, o Grupo Casino informou, em nota, que cobra de seus fornecedores detalhamento da rota de fornecimento e que “realiza um processo de reconferência de todas as fazendas diretamente dos lotes de compra, verificando sua conformidade socioambiental”.
No entanto, em relação aos fornecedores indiretos, o grupo diz que caberia aos frigoríficos realizarem monitoramento alinhados à sua Política Socioambiental de Compras de Carne Bovina.
“Em relação às fazendas indiretas, os frigoríficos fornecedores devem definir metas de identificação e monitoramento para toda a sua cadeia de fornecimento, para que sejam verificados os mesmos critérios socioambientais aplicáveis às fazendas diretas. Além disso, ressalta que as políticas de monitoramento e rastreabilidade total devem estar em pleno vigor, no limite, até o ano de 2025. O GPA [Grupo Pão de Açúcar, que responde pelas operações no Brasil] está envolvido em ações e grupos de trabalho sobre o monitoramento dessas fazendas”.
Nossa reportagem enviou a lista das fazendas na terra indígena identificadas na cadeia de fornecedores do grupo Casino e informou que se tratavam de propriedades que transferiram animais de forma indireta aos frigoríficos. No entanto, o grupo afirmou que nenhuma das fazendas indicadas está incluída em suas “bases”.
Sobre o andamento do processo na Justiça francesa, o grupo ainda informou que permanece favorável a uma mediação proposta pelo juiz do caso, o que foi recusado pelos indígenas, que querem julgamento público.
“Vale notar que o juiz propôs e continua propondo um processo de mediação entre as partes, que os requerentes declinaram, enquanto o Grupo Casino permanece favorável a tal processo de mediação. (Leia a íntegra da nota do Casino)
JBS diz que não tem controle sobre fornecedores indiretos
Em nota, a JBS informou que a Fazenda Aryane —que recebeu gado da terra indígena— foi bloqueada. A reportagem enviou informações das GTAs e os dados georreferenciados das fazendas identificadas na cadeia de fornecimento do grupo. Mas o frigorífico afirmou que “não tem visibilidade sobre os demais elos de sua cadeia”, o que o impediria de identificar a origem do gado dos fornecedores indiretos, incluindo animais com origem em terras indígenas e outras áreas protegidas da Amazônia.
Veja a íntegra da manifestação da JBS:
“A Fazenda Aryane encontra-se bloqueada. Quanto às demais propriedades que fornecem diretamente para a JBS, todas encontravam-se, no momento das vendas para a empresa, em conformidade com o Protocolo de Fornecedores de Gado do Ministério Público Federal (Boi na Linha). Importante observar o que diz a Nota Técnica 2, disponível na página 37 do regramento, para entender quais casos de sobreposição exigem ou não o bloqueio do produtor. Em relação às fazendas que, segundo a apuração do InfoAmazonia, forneceriam gado para fornecedores da JBS, a empresa reforça que não tem visibilidade sobre os demais elos de sua cadeia, visto que as Guias de Trânsito Animal são documentos protegidos por sigilo pela legislação brasileira. Tanto que foi preciso solicitar os dados dos produtores à reportagem para que a JBS pudesse entender o caso. Justamente para superar esse desafio setorial é que a JBS implantou uma ferramenta que usa tecnologia blockchain. A partir de 1º de janeiro de 2026, apenas os produtores registrados nessa ferramenta poderão continuar negociando com a empresa”.
Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.