Câmara aprovou na noite desta terça-feira (30) o PL 490, que institui a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas. Na próxima semana, STF retoma julgamento sobre o mesmo assunto. Especialistas apontam que articulação na Câmara para adiantar decisão pode ter ‘efeito contrário do esperado pela bancada ruralista’.
Um poder paralelo. As palavras usadas por uma liderança ambiental do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para definir a atuação da bancada ruralista na Câmara dá uma ideia do que se converteu essa base parlamentar dentro do Congresso e que, hoje, junto do Centrão, faz oposição ferrenha e sistemática contra o Palácio do Planalto.
Por 283 votos a 155, o texto do Projeto de Lei que institui a tese do Marco Temporal como regra para autorizar a demarcação de terras indígenas: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. foi aprovado pelo plenário da Câmara na noite de terça-feira (30) numa votação “tranquila”, como definiu à InfoAmazonia o novo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado Pedro Lupion (PP-PR).
Dentro do cafezinho do plenário, uma área restrita onde parlamentares costumam circular e trocar ideias, os ruralistas já davam o tom, horas antes, do que estava por ocorrer. “Não há chance de não votar hoje. E vamos aprovar, tenho certeza disso”, disse Lupion, com um sorriso no rosto.
Do lado de fora da Câmara, a poucos metros do clima ameno compartilhado entre os membros da bancada do agro, indígenas vindos de diversas regiões do país protestavam, emparedados por um bloqueio duplo de grades de aço e um cordão de isolamento feito por agentes da Polícia Militar, em frente ao Congresso.
O forte aparato militar distribuído ao longo da Esplanada dos Ministérios – um contraste extremo em relação ao que se viu no dia 8 de janeiro, quando criminosos invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes – não intimidou lideranças indígenas como Wenatoa Parakanã, que viajou dois dias inteiros dentro de um ônibus, saindo da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu, no Pará, para cruzar 2.100 quilômetros de asfalto e chegar à capital federal.
Com 45 integrantes de suas aldeias, Wenatoa estava em Brasília para se reunir com o ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso e lideranças de órgãos do governo, em apelo pela defesa de suaTerra Indígena Apyterewa, a qual já foi demarcada, mas tem sido sistematicamente invadida todos os anos.
Em frente à Biblioteca Nacional, os Parakanã se juntaram aos demais indígenas, somando o grito de seus parentes na luta pelo respeito às demarcações. “Estão mexendo em nossos direitos sem nos ouvir, ignorando nosso povo. Temos que denunciar, protestar, não vamos permitir”, disse a liderança à InfoAmazonia.
Os indígenas, determinados em marchar pelos três quilômetros de distância que separam a Biblioteca Nacional, onde estavam reunidos, da sede do parlamento, conseguiram ocupar parte das pistas de um dos lados da Esplanada, mas foram impedidos pelos policiais de usarem um carro de som, item que sempre desfilou tranquilamente em qualquer manifestação que ocorre na principal avenida do poder em Brasília. Sem o apoio de lideranças no microfone que pudessem orientá-los, se agruparam na rodovia e partiram em cantos rumo ao Congresso. Seus protestos, porém, não transpassaram as vidraças da “Casa do Povo”.
No plenário, numa estratégia de encurralar membros do governo e de asfixiar qualquer possibilidade de derrota ou adiamento de votação, o presidente da Câmara, Arthur Lira, tratou de colocar a votação do PL 490 como o primeiro item da agenda parlamentar. É sua a prerrogativa de decidir o que vai ser analisado e votado, e quando isso será feito.
Como próximo item da pauta legislativa, Lira colocou nada menos que a votação da Medida Provisória da reorganização da Esplanada (1.154/23), prioridade absoluta para o governo Lula, porque vence na noite desta quinta-feira (1º) e que, caso não seja votada, simplesmente caduca. Isso obrigaria o governo a desmontar toda a estrutura ministerial que ergueu desde janeiro, incluindo a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nova formatação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e retomar os ministérios da gestão Bolsonaro. É algo, portanto, fora de cogitação para Lula.
Na prática, portanto, quando a maioria do plenário derrotou no voto as tentativas de adiamento do PL 490, não restava mais nenhuma alternativa, se não pagar para ver, já que a MP da reforma dos ministérios só seria avaliada após o projeto do marco temporal ser apreciado.
Como prova de força e de total descolamento do governo, a bancada ruralista e o Centrão não só impuseram uma fragorosa derrota ao Palácio do Planalto, aprovando o PL do Marco Temporal, como ainda adiaram a votação da MP dos ministérios, que embute mais uma série de retrocessos da pauta ambiental, esvaziando o Ministério do Meio Ambiente e o novo Ministério dos Povos Indígenas.
Hoje, da forma como está, a MP impõe a retirada da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Cadastro Ambiental Rural: Registro eletrônico obrigatório, feito por autodeclaração e voltado à regularização ambiental de imóveis rurais de todo o país. (CAR) do Ministério do Meio Ambiente. A ANA ficaria sob o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional. O CAR passaria para o comando do Ministério da Gestão. O texto determina ainda a saída da demarcação de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas e repassa essa atribuição para a pasta da Justiça e Segurança Pública.
Governistas intimidados
O destino selado para a votação do Marco Temporal já tinha sido absorvido pela base do governo antes mesmo da votação. A evidência disso foi a própria votação, que transcorreu sem maiores resistências. Coube a um assunto sem qualquer relação com a questão indígena centralizar o momento mais turbulento durante a votação do PL 490, quando parlamentares trocaram provocações sobre a presença do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, erguendo folhetos com o rosto do ditador latino, enquanto a bancada do governo exibia a Constituição Federal.
O governo agiu institucionalmente, com sua liderança e base votando, de forma geral, contra a aprovação do PL e a favor do adiamento da votação, mas foi bruscamente calado, sob a vitória esperada e a comemoração dos ruralistas.
O deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Câmara, tentou recorrer a ponderações, dizendo que um tema dessa relevância não poderia ser votado por meio de um simples projeto de lei, mas sim por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), já que se trata de um tema que mexe, efetivamente, com uma questão constitucional. Seus argumentos, porém, se limitaram aos registros taquigráficos do Congresso.
Se o gosto da derrota foi amargo para os povos indígenas e para a ala ambiental capitaneada pela ministra Marina Silva, no Ministério da Agricultura houve quem saboreasse certa vitória. Em sinalização para a bancada ruralista, o ministro da pasta, Carlos Fávaro (PSD-MT), já havia deixado clara a sua predileção para que o marco fosse aprovado.
Agora que foi aprovado pela Câmara, o PL 490 seguirá para debate no Senado. Se sofrer alterações, pode voltar à Câmara. Se for aprovado pelo Senado, vai à sanção do presidente Lula. O Palácio do Planalto ainda pode vetar trechos do texto que receber do Congresso, antes de sancionar a lei. Se estes vetos ocorrerem, porém, o parlamento ainda pode derrubá-los, antes que a lei tenha efeito prático.
Sem efeito sobre o STF
Apesar da derrota na casa legislativa, a decisão sobre a validade nacional da tese do Marco Temporal será retomada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 7 de junho. Foi justamente por causa do agendamento deste processo que a Câmara se articulou com Arthur Lira para se antecipar e votar o PL 490, um projeto de 2007 que passou anos parado dentro do Congresso e que os ruralistas tentaram aprovar nos quatro anos de gestão Bolsonaro, mas não conseguiram.
Dentro do Supremo, o clima entre os ministros é o de que “nada muda” e que “segue o jogo”. A ministra Rosa Weber, presidente do STF, já confirmou o julgamento do caso que trata do Marco Temporal, um processo de reintegração de posse movido por ruralistas contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. A partir da decisão da corte, a previsão é que este caso tenha repercussão geral, ou seja, valerá para todos os casos de demarcação de terras em andamento ou futuros.
O julgamento foi iniciado, mas depois acabou suspenso após um pedido de vista apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes, que queria mais tempo para analisar o caso. Dois ministros chegaram a apresentar seus votos. O relator do assunto, ministro Edson Fachin, se manifestou contra o Marco Temporal. Já o ministro Nunes Marques, nomeado para o cargo por indicação de Bolsonaro, votou a favor da tese.
Especialista em Direito Econômico e Ambiental, o advogado Alessandro Azzoni diz que, na prática, a decisão da Câmara não terá efeito sobre o Supremo. “O legislativo pode aprovar o que quiser, é sua prerrogativa, mas isso não se sobrepõe a um julgamento que está no Judiciário e que trata de um direito constitucional. Não se pode suprimir um direito constitucional por meio de votos”, diz Azzoni.
Por essa condição, diz o especialista, não há efeito prático sobre os ministros da suprema corte, que, a rigor, podem até procurar acelerar agora as suas posições sobre o assunto, dado o clamor social que o tema despertou. “A decisão da Câmara, em si, não altera em nada o que será decidido pelo STF, mas essa situação social pode fazer com que, agora, os ministros decidam resolver de vez essa questão. O plano de enfiar uma posição goela abaixo do Supremo, para constranger os ministros, pode ter um efeito contrário do esperado pela bancada ruralista.”
Relator do PL 490, o deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA) deu o tom de como encara a questão. Questionado pela InfoAmazonia sobre a razão de pautar a votação do projeto uma semana antes do assunto ser deliberado pelo STF, disse que o objetivo é dar uma “sinalização” aos ministros do Supremo.
“Eu espero que o Supremo entenda que a sinalização nossa é nesta direção, que ele interrompa a ideia de legislar. Espero que o Supremo tenha a sensibilidade de que o processo está andando aqui na Casa e que não tem sentido o Supremo cumprir um papel que é da Câmara”, disse.
Do lado de fora do Congresso, lideranças indígenas prometem seguir em mobilização e trazer seus parentes para uma manifestação na próxima semana, diante do Supremo Tribunal Federal.
Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.