A futura presidente da Funai, que tomará posse na sexta-feira (3), disse em entrevista à InfoAmazonia que o orçamento para demarcação e proteção de terras é cerca de R$ 90 mil e, por isso, irá atrás de alternativas para retomar as ações do órgão.

Nesta semana, uma mulher indígena assume pela primeira vez a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai: Órgão federal criado em 1967 e responsável pela execução das políticas de proteção e de promoção dos direitos indígenas em todo o território nacional.) do Brasil. Na transição entre concluir o mandato de deputada federal e tomar posse nesta sexta-feira (3), a advogada Joenia Wapichana (Rede-RR) concedeu entrevista à Infoamazonia e comentou sobre o que pode ser um grave empecilho para a atuação do órgão, principal responsável por proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil, que ocupam quase 14% do território nacional: “um orçamento insuficiente, totalmente precário para o tamanho da obrigação que a Funai tem por Lei”.

Com apenas R$ 600 milhões de orçamento previsto para este ano (ou 0,001% do orçamento da União, de R$ 5,3 trilhões), ela disse que a Funai teria menos de R$ 90 mil para desenvolver ações de demarcação e proteção de Terras Indígenas: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. (TIs). Assim, Wapichana avalia que é preciso encontrar uma saída e aponta a direção: utilizar o Fundo Amazônia, além de contar com organizações indígenas e outros fundos. 

Na entrevista, Wapichana afirma que encontrou a Funai “em uma situação de penúria”. Ela também lembrou como foram os quatro anos como única deputada federal indígena na Câmara no gabinete 231, que escolheu por ter o mesmo número do artigo da Constituição que assegura aos povos indígenas os direitos sobre suas terras tradicionais. Destacou, ainda, as principais matérias anti-indígenas discutidas nesse período e que não foram aprovadas: o PL-191/21, que permitiria a exploração de minérios, petróleo e recursos hídricos em terras indígenas e o PL-490/07, que inviabilizaria demarcações de terras indígenas

Nascida na comunidade indígena Truaru da Cabeceira, na zona rural de Boa Vista, capital de Roraima, aos 24 anos Joenia Wapichana foi a primeira indígena a se formar em Direito no país, pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Ela possui mestrado em Direito Internacional pela Universidade do Arizona, nos EUA. Em 2008, ficou nacionalmente conhecida ao ser a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF) no caso que garantiu a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Lohana Chaves
Joenia Wapichana, futura presidente da Funai

Infoamazonia – Como foram os quatro anos de mandato como a primeira deputada federal indígena do Brasil e sob o governo Bolsonaro? 
Joenia Wapichana – Foi um mandato de luta. Principalmente para fazer a defesa dos direitos, para que não tivéssemos retrocessos. E foi uma luta que levou o princípio da participação, principalmente onde os povos indígenas pudessem estar participando do mandato, da coletividade, porque a coletividade, é um princípio indígena. E principalmente [foi um mandato] de resistência, resistência no sentido de não deixar nossos direitos, que já são poucos, reduzirem. Por isso que foi um mandato combativo, para que projetos anti-indígenas não passassem, e não passou nenhum.

E principalmente [foi um mandato] de resistência, resistência no sentido de não deixar nossos direitos, que já são poucos, reduzirem. Por isso que foi um mandato combativo, para que projetos anti-indígenas não passassem, e não passou nenhum.

Joenia Wapichana

Quais foram esses projetos? Pode falar mais um pouco sobre eles e onde eles estão agora? 
O PL-490/2007, que trata da questão da mudança da demarcação das TIs, traz em seu texto a questão do marco temporal, e a gente conseguiu segurar muito tempo dentro da CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] para que não fosse aprovado, mas continua lá. Ele foi aprovado na CCJ, mas não foi ao Senado e nem à Câmara. 

Também teve o PL-191/2020, que a urgência foi aprovada, mas não foi aprovado o texto, e que a gente brigou muito. Ele trazia como justificativa a guerra na Ucrânia para a regularização de mineração em terra indígena. Também teve o PL 3275/2021 que poderia abrir um precedente bastante negativo para diminuição de TIs. Então, nenhum projeto, digamos assim, negativo e nesse sentido [anti-indígena], foi aprovado. 

Por outro lado, aprovamos o PL 11042/2020, que fui relatora, e que trouxe o plano de enfrentamento à Covid-19 [em terras indígenas e quilombolas]. Desse, Bolsonaro vetou 22 itens, inclusive durante a pandemia, mas nós conseguimos derrubar os vetos, e ele se tornou Lei, podendo ser utilizado para [o estado responder à] qualquer pandemia, ou epidemia [em territórios indígenas e quilombolas] que possam a vir ocorrer no Brasil. 

Nós também conseguimos mudar o Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas [PL 5.466/2019], que foi um projeto que mudou essa terminologia, em termos de reconhecimento da questão da coletividade, do território e da diversidade cultural dos povos indígenas.

O que foi mais difícil nesses quatro anos (2019-2022), olhando desde janeiro de 2023? 
O mais difícil foi o bolsonarismo, foi o fascismo, tudo isso que a gente está sofrendo hoje. As consequências desses quatro anos são justamente o que  impediram de proteger a vida dos povos indígenas, principalmente com a pandemia. A gente viu o que aconteceu. E agora, no fim do mandato com a crise Yanomami, eu me sinto assim, também. Eu como coordenadora da frente indígena, como parlamentar de Roraima, como indígena Wapichana, eu já vinha denunciando isso desde o meu primeiro ano de mandato. 

Quando coordenei a Comissão Externa do Congresso sobre os Yanomami, quando estive em diligências a gente pôde constatar e recomendar que tivessem ações urgentes para evitar mortes. Agora, a gente vê essa crise humanitária se concretizar. Todos os alertas que a gente fez, nesses últimos anos, que não tiveram resposta do governo Bolsonaro se configuraram em mortes. Então, é muito triste e gera muita indignação, porque estamos falando de mortes evitáveis. Se houvesse uma ação à altura naquela época, de conter o avanço do garimpo, se tivessem precauções. Se não tivessem desviado recursos da Saúde Indígena, se não tivessem reduzido o orçamento da Saúde, e se tivesse responsabilidade de quem estava à frente da Saúde Indígena, essas mortes poderiam ter sido evitadas.

Todos os alertas que a gente fez, nesses últimos anos, que não tiveram resposta do governo Bolsonaro se configuraram em mortes.

Joenia Wapichana

Em que situação se encontra a Funai e também a Saúde Indígena nesse momento, ou seja, como a estrutura de atenção aos povos foi entregue pelo governo Bolsonaro no fim do mandato?
O quadro hoje da Funai é lamentável, no sentido de que foi totalmente sucateada, desmantelada. É uma situação de penúria, de precariedade e onde servidores públicos foram perseguidos, desvalorizados e desorientados. O primeiro impacto que tive quando visitei a Funai foi de alívio dos servidores, de dizer ‘olha, a Funai está de volta’. Agora estamos fazendo um levantamento do que existe hoje para se reverter esse quadro, tanto da atenção das estruturas, quanto dos projetos, demarcações de TIs e que vão levar algum tempo para recuperar todo esse desmonte que encontramos. 

A Funai foi criada para atender a um propósito constitucional, que é justamente proteger, promover o exercício do direito dos povos indígenas, principalmente na questão do direito à terra, o principal direito dos povos indígenas. Daí que somente a Funai é o órgão federal responsável pela demarcação, identificação, desintrusão, a fiscalização, então, ela tem um papel muito importante na vida dos povos indígenas. 

Assim, quando Bolsonaro deixou de colocar recursos no orçamento para que a Funai fizesse suas obrigações constitucionais, ele intencionalmente enfraqueceu o direito dos povos indígenas e abriu para os ilícitos entrarem em terras indígenas. 

É uma situação de penúria, de precariedade e onde servidores públicos foram perseguidos, desvalorizados e desorientados. O primeiro impacto que tive quando visitei a Funai foi de alívio dos servidores, de dizer ‘olha, a Funai está de volta’.

Joenia Wapichana

Qual é hoje o orçamento da Funai atualmente? E haverá alguma adição de orçamento? 
Foi aprovada na última LOA [Lei Orçamentária Anual] em torno de R$ 600 milhões para o ano de 2023. Dentre esses recursos, quase R$ 400 milhões são para manter a Funai funcionando, e restariam R$ 200 milhões, dos quais R$ 100 milhões seriam para cumprir contratos, como o aluguel da sede da Funai por exemplo, e desse recurso, se você for fazer uma conta, ficam menos de R$ 90 mil para proteção das TIs e demarcação. Então, é um orçamento insuficiente, totalmente precário para o tamanho da obrigação que a Funai tem por lei. Será necessário complementar.

Então, nós vamos ter que buscar alternativas, ter parceria das próprias organizações indígenas e apoio de fundos, inclusive do Fundo Amazônia: Projeto que capta e investe recursos nacionais e internacionais para potencializar a conservação e o uso sustentável da Amazônia., para que a Funai possa desenvolver seus projetos, ações, programas. Nós não vamos ficar presos ao orçamento [previsto]. Há boa vontade do governo Lula de apoiar os povos indígenas e nós acreditamos que teremos condições de avançar. Lógico que não será de um dia para o outro responder todas as demandas, mas nós vamos ter que ser bastante estratégicos para poder avançar nas demarcações, principalmente.

Avançar em demarcações será a prioridade para a Funai?
E a proteção [dos territórios]. 

A última pergunta é sobre a crise nos Yanomami. A senhora já comentou da situação, mas pode relatar um pouco mais sobre como foram os últimos dias, o que está sendo feito?
Estou acompanhando como deputada e como futura presidente da Funai, e a situação continua bastante grave. Muitos pacientes, muitas crianças e adultos Yanomami estão procurando atendimento no pólo-base Surucucus. Os servidores da Funai me relataram o que a Funai tem feito, acompanhado as ações, feito a distribuição de cestas, recebido doações da sociedade civil, principalmente de ferramentas, redes, alimentos. 

É muito importante esse primeiro trabalho de apoiar a ação do Ministério da Saúde, que declarou estado de emergência e convocou os demais órgãos para se unirem em torno dessa ação interministerial. Também foi a ação da Sesai. O coordenador Weibe Tapeba me apresentou o quadro, e é necessária uma ação conjunta nesse primeiro momento para combater a fome, a mortalidade infantil, que poderia ter sido evitada se tivessem ações rápidas e responsáveis naquele tempo. Porque é totalmente inadmissível chegar ao ponto de crianças morrerem por falta de remédios, por falta de iniciativas de prevenção à questão do quadro de desnutrição, por verminose agravada, pneumonia. Doenças que poderiam ter sido curadas, se tivessem tido a responsabilidade no tempo correto. 

É totalmente inadmissível chegar ao ponto de crianças morrerem por falta de remédios, por falta de iniciativas de prevenção à questão do quadro de desnutrição, por verminose agravada, pneumonia. Doenças que poderiam ter sido curadas, se tivessem tido a responsabilidade no tempo correto. 

Joenia Wapichana

É importante que os médicos estejam chegando, que haja apoio do Exército e da Força Aérea para toda a logística de chegar na área. É uma ação conjunta de todo o governo Lula que veio a Roraima sinalizar que é preciso dar prioridade a essa situação. Lógico que a gente também está se programando e planejando para relatar os dados do garimpo ilegal para a presidência porque essa questão da mortalidade tem um contexto. E é necessário fazer com que uma força-tarefa seja feita para o combate ao garimpo ilegal. E nessa ação a Funai estará junto, e coordenando grupos de trabalho também. 


Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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