Conjunto de medidas apresentadas por organizações da sociedade civil devem desfazer atos do governo Bolsonaro e devolver protagonismo sobre a preservação ambiental ao governo federal. Entre as medidas estão as revogações de atos que estimulam a garimpagem, que excluíram conselhos da sociedade civil e que dificultam a demarcação de terras indígenas.

A nova gestão do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja para os primeiros dias de 2023 a revogação de um conjunto de portarias e decretos implantados durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro avaliados como antissociais. O “revogaço”, como está sendo chamado, visa anular ou substituir as medidas do atual mandato por novas normas debatidas pelos Grupos de Transição (GT’s) e deve impactar em quase todas as áreas do governo, como meio ambiente, questão indígena, política agrária, saúde, educação, economia, entre outros.

Dentre os principais desafios da nova versão do governo Lula está o de reverter o quadro negativo de preservação da Amazônia e de proteção aos povos originários, com a expectativa de reestruturação dos órgãos ambientais e que cuidam da política indigenista. 

Mais do que revogar medidas do atual governo, a nova gestão terá que reformular políticas já implantadas que dependem da estruturação de novas normas e diálogo com o novo Congresso.

Ex-ministro nos governos do PT e coordenador dos grupos técnicos da equipe de transição, Aloizio Mercadante afirmou em coletiva que as medidas terão efeito na redução do desmatamento já no primeiro trimestre de 2023.

Já Lula tem demonstrado disposição em atender compromissos para redução do desmatamento e de proteção aos povos da floresta. O relatório do grupo setorial dos povos originários, apresentado no início desta semana à equipe de transição, pede a imediata revogação de 10 atos assinados por Bolsonaro, a recomposição do orçamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Fundação Nacional do Índio (Funai) e urgência na homologação de 13 terras indígenas. Os relatórios dependem de uma sinalização do futuro presidente Lula sobre quais medidas serão adotadas imediatamente.

Entre as medidas previstas no “revogaço” estão, por exemplo, as anulações do decreto que instituiu o Programa de Parcerias de Investimentos para concessão de Unidades de Conservação e Florestas Nacionais à iniciativa privada (Decreto nº 10.447/2020), do parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) chamado por indígenas e indigenistas de “parecer antidemarcação” (Parecer n. 001/2017), e  do decreto que permite a chamada “mineração artesanal e em pequena escala” na Amazônia (Decreto 10.966/2022). Elaborado pela Fundação Lauro Campos e Marielle Franco do Psol e Fundação Rosa Luxemburgo, o estudo mais completo que norteia o “revogaço” analisou mais de 20 mil documentos infralegais, como decretos, portarias, resoluções e instruções normativas, e envolveu pesquisadores e especialistas de diversas áreas do país.

 Uma linha de estratégia comum em todos os temas, que é o modo como Bolsonaro foi destruindo os procedimentos da democracia brasileira.

Josué Medeiros, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“Nosso relatório prevê a revogação imediata de mais de 200 atos implantados nos últimos anos [incluindo atos da gestão Temer]. Além dessa revogação imediata, a gente fez uma interpretação do que estamos chamando de ‘método Bolsonaro de destruição’, que forma uma linha de estratégia comum em todos os temas, que é o modo como Bolsonaro foi destruindo os procedimentos da democracia brasileira”, afirma Josué Medeiros, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos coordenadores do estudo.

Sobrevoo regista áreas de garimpos ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, em abril de 2021

O documento contextualiza as ações em eixos temáticos e indica quais efeitos devem ser gerados com a revogação das medidas sugeridas. Se adotadas, as ações devem devolver ao governo federal o protagonismo na agenda ambiental, avaliam os autores do documento.

Josué Medeiros aponta que o grande volume de medidas a serem revistas está relacionado com o modelo de governança da gestão Bolsonaro, que editou 500 decretos a mais que o primeiro mandato da gestão da presidente Dilma (2011-2014).

“Nos governos anteriores, a maioria dos decretos eram para regular leis já aprovadas. Na gestão Bolsonaro isso foi um pouco diferente, ele usou os decretos para legislar”, critica Medeiros, afirmando que as propostas elaboradas pelas diversas organizações têm sido recebidas com sinalização positiva dos grupos temáticos da transição.

O cientista político comenta ainda que algumas questões são mais complexas do que parecem e cita como exemplo o caso da “mineração artesanal”, que teve seu conceito deturpado e permitiu estruturação de garimpos na Amazônia com maquinário pesado e uso de substâncias tóxicas como o mercúrio.

Essa é uma situação bem complexa que não basta apenas proibir o garimpo e garantir legalmente aos povos indígenas a sua autonomia e controle territorial. O garimpo na gestão Bolsonaro se multiplicou vertiginosamente e se aliou ao crime organizado.

Josué Medeiros, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“Essa é uma situação bem complexa que não basta apenas proibir o garimpo e garantir legalmente aos povos indígenas a sua autonomia e controle territorial. O garimpo na gestão Bolsonaro se multiplicou vertiginosamente e se aliou ao crime organizado. Mais que proibir, é preciso uma ação muito bem coordenada para desmobilizar esse aparato todo”, explica Medeiros.

Desmatamento da Amazônia

O conjunto de atos a serem revogados para área do meio ambiente tem foco na redução dos índices de desmatamento, revertendo atos que tiraram poder de fiscalização dos órgãos ambientais e restabelecendo a participação social em diversos conselhos destituídos pelo atual governo.

No marco dos seus primeiros cem dias de gestão, Bolsonaro editou o decreto 9.759/2019 que, de uma vez só, extinguiu 650 Conselhos de participação social. Entre as extinções, está a do Conselho Orientador do Fundo Amazônia, medida articulada pelo ex-ministro Ricardo Salles, que cuidou da pasta ambiental nos primeiros dois anos e meio da gestão Bolsonaro.

A reativação do Fundo Amazônia já é dada como certa, os países financiadores do Fundo, Alemanha e Noruega, anunciaram logo após a vitória de Lula a retomada dos investimentos. O Reino Unido também pode ser incluído no fundo bilionário que está parado desde 2019. Entre os objetivos do fundo, estão a promoção de projetos para a prevenção e combate ao desmatamento e para a conservação e o uso sustentável das florestas na Amazônia Legal.

Além disso, são cobradas a revogação imediata de medidas que dificultam a fiscalização de crimes ambientais e as que permitiram o aumento do uso quase indiscriminado de agrotóxicos já proibidos em diversos países.

“Essas medidas precisam ser acompanhadas de uma reestruturação do ICMBio e do Ibama para que o Estado se mantenha responsável pela preservação e conservação”, emenda Vitor Guimarães.

A gestão Bolsonaro reduziu drasticamente o orçamento da pasta ambiental e o reflexo disso, segundo especialistas, foi o aumento recorde nas taxas de desmatamento.

Nova concepção indígena e demarcação territórios

A promessa de Lula de criação do Ministério dos Povos Originários é mais uma aposta para salvaguardar a garantia dos direitos dos povos indígenas da Amazônia. A pauta indígena é trabalhada por um grupo de 15 pessoas, incluindo nomes como Joênia Wapichana, uma das cotadas para assumir o futuro Ministério, Davi Kopenawa e a deputada federal eleita Sonia Guajajara (Psol-SP).

Esta semana, o grupo apresentou uma lista com 10 medidas a serem revogadas e que visam uma nova política indigenista para reverter o quadro de invasões do garimpo, da mineração e a construção de grandes obras de infraestrutura.

Presidente da Funai Joenia Wapichana no ATL 2022, em Brasília. Foto: Mídia NINJA

“São diversas as estratégias e os atos perpetrados pelo presidente Jair Bolsonaro no cometimento de tais crimes. Todas elas, entretanto, baseiam-se, de uma forma ou de outra, na destruição da relação dos povos indígenas com as suas terras, o que implica a morte cultural, social e física dos povos indígenas”, destaca trecho do relatório entregue ao Grupo de Transição. Uma das principais providências para uma nova política de demarcação gira em torno do parecer 001/2017 da AGU, que institui a tese do marco temporal e argumenta que os povos indígenas só teriam direito aos seus territórios se estivessem lá na data de promulgação da Constituição Federal, 05 de outubro de 1988. O parecer teve seus efeitos suspensos com judicialização, que contesta sua constitucionalidade e que levou a causa ao STF no conhecido julgamento do Marco Temporal (Recurso Extraordinário 1.017.365). Nos quatro anos do governo Bolsonaro, nenhuma terra indígena foi demarcada ou homologada.

Por mais que seja um ato que já está suspenso por causa da judicialização, a gente considera a revogação desse parecer como histórico para os povos indígenas e um marco sobre o direito territorial.

Kléber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

“Por mais que seja um ato que já está suspenso por causa da judicialização, a gente considera a revogação desse parecer como histórico para os povos indígenas e um marco sobre o direito territorial”, aponta Kléber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e membro Grupo de Trabalho (GT) dos Povos Originários da equipe de transição.

Karipuna ainda destaca que o grupo trabalha na indicação de terras indígenas para demarcação e homologação imediata e que o grupo pode apresentar a viabilidade para reconhecimento de até 13 territórios. “Essa é outra medida que pode ser facilmente adotada em uma ação mais imediata nos primeiros 30 a 100 dias”, afirmou.

Outras reivindicações passam pela revogação da Instrução Normativa n.09/2020 da Fundação Nacional do Índio, que retira as terras não homologadas do Sistema de Gestão Fundiária, o que permite avanço da grilagem e acirramento de conflitos nos territórios e a Instrução Normativa Conjunta n. 01/2021, que que autoriza a participação de indígenas e não indígenas para exploração econômica dos territórios sem consulta aos afetados.

PRINCIPAIS DECRETOS A SEREM REVOGADOS

1 – Parecer Normativo nº 001/17 AGU: vincula a Administração Federal às condicionantes estabelecidas pelo STF no caso da TI Raposa Serra do Sol, acolhendo a tese do marco temporal. 

2 – Decreto n° 10.965/22 da Presidência da República: estabelece procedimentos simplificados para liberação de outorgas de garimpos de pequeno porte ou de “aproveitamento das substâncias minerais” em TI. 

3 – Decreto n° 10.96610.965/22 da Presidência da República: facilita a legalização de atividades minerárias irregulares já em curso na Amazônia.

4 – Decreto nº 10.447, de 07 de agosto de 2020; Decreto nº 10.673 13 de abril de 2021 e decreto nº 10.958 02 de fevereiro de 2022: dispõe sobre a qualificação das Unidades de Conservação no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República e sobre a sua inclusão no Programa Nacional de Desestatização.

5- Decreto n° 9.829, 10 de junho de 2019: promove alterações sobre a estrutura do Conselho Deliberativo do Sistema de Proteção da Amazônia. 

6 – Decreto nº 10.966, de 11 de fevereiro de 2022: decreto criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (PróMape) e uma Comissão Interministerial (Comape) para coordená-lo e promover as ações necessárias que acabam estimulando o garimpo na Amazônia.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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