Presidente Jair Bolsonaro foi o único a não demarcar terra indígena desde a redemocratização do país; indígenas passaram a fazer sozinhos proteção e demarcação dos territórios ancestrais.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda não tinha sido eleito quando, em 2018, pela primeira vez, fez a promessa de não demarcar nenhuma terra indígena no país caso chegasse à presidência. Ele chegou e, de fato, foi o único presidente desde a redemocratização do país a não reconhecer aos povos indígenas o direito constitucional à terra.
Sem contar com o aparato da Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por cumprir o processo de demarcação, os indígenas passaram os últimos quatro anos se arriscando para fazer a autodemarcação e organizando sistemas de proteção territorial contra invasores por meio de seus guardiões das florestas.
De acordo com dados da Funai, o país tem 487 terras homologadas, enquanto outros 241 territórios aguardam pela conclusão de seu processo de demarcação, em diferentes fases do processo (da declaração à homologação). A Amazônia Legal concentra a maioria delas, com 332 homologadas e 92 ainda em processo de demarcação.
Antes de Bolsonaro, Michel Temer (PSDB) demarcou apenas 3 terras indígenas. Dilma Rousseff (PT) homologou 26 em seus dois mandatos e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), homologou 81. No governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB),108 TIs foram homologadas; no de Itamar Franco (Cidadania), 39, no de Fernando Collor (PTB), 58.
Uma das terras que está com o processo parado é a do povo Nawa, no Acre. Em 2020, os Nawa decidiram fazer a autodemarcação, utilizando seus próprios guardiões e a estrutura da floresta. Já sabendo os limites do seu território,começaram a criar trilhas que separam a sua terra do Parque Nacional da Serra do Divisor, unidade de conservação na fronteira com o Peru. A criação das trilhas passou a ser acompanhada também do constante monitoramento de dezenas de quilômetros percorridos pelos indígenas no perímetro de seu território.
“Nós fizemos a autodemarcação para proteger nossa terra. Tiveram algumas invasões aqui dentro, de madeireiros e caçadores, que estavam destruindo nossa mata e nossos animais. Por esse motivo nos reunimos, pra não deixar os brancos invadirem nosso território”, explicou o cacique Railson Nawa.
O povo Nawa foi considerado por muitos anos um povo extinto. Somente em 1999 seus descendentes foram identificados novamente e, em 2003, seu território passou pelo processo de reconhecimento e delimitação. Hoje, os Nawa são 96 famílias, com 522 pessoas habitando o mesmo espaço. Para abrir as trilhas, eles usam instrumentos, como roçadeiras, e celulares para fazer georreferenciamento.
“Se a gente for contar com a Funai, nunca vamos conseguir. A Funai que está aí hoje não demarca terra. Então quem está cuidando das nossas terras somos nós mesmos”, diz o cacique.
O cacique afirma que existe o perigo de conflito com invasores, mas que é necessário fazer o trabalho. “É muito perigoso fazer essa vigilância, mas não adianta lutar para demarcar uma terra indígena depois que já não tiver mais nada dentro”, afirma.
Outros povos que estão com processos de demarcação parados são os Kokama e os Tikuna habitantes da Terra Indígena Porto Praia de Baixo, situada no município de Tefé, Amazonas. Em abril de 2021, as lideranças iniciaram a autodemarcação e continuam a fazer o monitoramento de suas terras desde então.
“Com a falta de demarcação da terra que reivindicamos, avança em nosso território as invasões para a retirada dos recursos naturais que se encontram nela (madeira, areia, seixo, peixes, caças, quelônios). É diante desse cenário desfavorável, o qual o governo brasileiro não tem mais demarcado terras indígenas no Brasil, que decidimos nós mesmo realizar a autodemarcação de nosso território”, diz o Tuxaua Anilton Braz, em nota divulgada naquele ano.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 400 indígenas moram no local e o pedido de demarcação foi feito em 2014, mas nenhum processo foi iniciado até agora.
Propostas presidenciáveis
Veja o que os dois candidatos à Presidência propõem como política para terras indígenas
Luiz Inácio Lula da Silva
O candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem como principal proposta para os povos indígenas a criação do Ministério dos Povos Originários, que, de acordo com ele, será regido por uma pessoa indígena. Lula também se manifestou contra a legalização de práticas criminosas como garimpo e a exploração de madeira dentro de terras indígenas.
“Estamos comprometidos com a proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Temos o dever de assegurar a posse de suas terras, impedindo atividades predatórias, que prejudiquem seus direitos. É fundamental implementar 9 políticas que lhes assegurem vida digna e cidadania, respeitando e valorizando sua cultura, tradições, modo de vida e conhecimentos tradicionais”, destaca o programa de Lula.
Jair Messias Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, tem como proposta o crescimento do turismo em terras indígenas e projetos de etnodesenvolvimento, que incluem o avanço da agropecuária e até do garimpo. “O governo deve propiciar a todos, incluindo indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros, a LIBERDADE de uso responsável dos recursos naturais”, destaca o documento.
Serviços paralisados
As atividades de autodemarcação não interferem no processo que corre na Funai. De acordo com a indigenista Ana Luiza Melgaço, que coordena o Programa de Políticas Públicas da Comissão Pró-Índio do Acre e acompanha a autodemarcação do povo Nawa, a autodemarcação até facilita o trabalho do órgão, porque na verdade cumpre com o que deveria estar sendo feito. “Eles estão adiantando esse processo de regularização fundiária deles mesmo, que é um dever da própria Funai, do próprio estado”, diz.
Além de fazer o monitoramento da própria terra, o povo Nawa também atua alertando a Comissão Pró-Índio sobre invasões no Parque Nacional da Serra do Divisor. Uma realidade que, sem os serviços dos órgãos de segurança pública, também se tornaram frequentes dentro das terras indígenas.
Na Raposa Serra do Sol, em Roraima, os indígenas fazem eles mesmos a desintrusão de suas terras. Em junho, lideranças do território apreenderam e queimaram uma draga de garimpo (embarcação que faz extração de minério) e passaram a sofrer ameaças. Em estado de abandono, o local passa por forte invasão e degradação de seu território.“As lideranças decidiram realizar essas ações de combate ao garimpo porque eles [garimpeiros] prejudicam muito a nossa população e a nossa terra“, disse um liderança Wapichana, que preferiu não se identificar, em entrevista ao InfoAmazonia.
Essas tentativas de proteger as terras sem aparato dos órgãos ambientais podem gerar ainda mais desgaste e violência. Em setembro deste ano, dois jovens guardiões do povo Guajajara, Paulo Paulino Guajajara e Janildo Oliveira Guajajara, foram assassinados a tiros. Os guardiões eram protetores da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, e a suspeita é de que ambos os crimes tenham sido praticados por madeireiros que há anos vivem em conflito com os indígenas, em decorrência da exploração ilegal de madeira no território.
Além da Funai, o ICMBio e o Ibama, que também fazem fiscalização e monitoramento ambiental, passaram por desmonte de seus orçamentos. De acordo com análise do InfoAmazonia, apenas 41% do orçamento para fiscalização no Ibama foi executado no ano passado. Em 2020, o ICMBio teve a menor despesa discricionária desde sua criação, com R$ 185 milhões.
Obrigados a tomar medidas
Para Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, os indígenas estão sendo obrigados a tomar medidas extremas, pela ausência do estado, que não está cumprindo a Constituição. Ele é liderança do povo Tuxá, que desde 2014 faz autodemarcação de seu território na Bahia.
“Os indígenas se veem obrigados a iniciar a autodemarcação e criar um fato político para que o Estado brasileiro se mova. Para que ele realmente cumpra com as suas obrigações. No meio disso, há morte e ameaça, há perseguições, e prisões”, diz.
Dinamam explica que o processo de autodemarcação não é o mais adequado, mas ocorre de acordo com o entendimento de cada povo sobre seu território e sua própria cultura. A Apib passou os últimos anos denunciando os ataques aos povos indígenas e aos seus territórios. A associação afirma que a medida de não demarcar terras indígenas é inconstitucional.
“Nós ocupamos a nossa área de acordo com a nossa relação tradicional. Os nossos marcos desse território são dados pelos anciões, pela tradicionalidade e o tempo que estamos ali”, explica.
Apesar de Bolsonaro não registrar em seu plano de governo para o segundo mandato posição contrária à demarcação de terras indígenas, Dinamam alerta para os sistemáticos ataques que o candidato do PL tem cometido desde a campanha de 2018. “Poucas coisas que ele falou foram verdade, mas essa ele fez questão de cumprir. Ele falou que não iria demarcar e não demarcou. Isso deveria ser crime de responsabilidade, porque o nosso texto constitucional exige e garante os direitos dos povos indígenas”, diz.