Cidade está tomada por fumaça há seis dias, após aumento de queimadas no sul do Amazonas e em regiões do Pará

Crises respiratórias, dificuldade nas navegações, roupas com mal cheiro. As consequências da fumaça que atingiu Manaus desde a última sexta-feira (19) afetam os moradores da cidade em vários níveis. Em uma zona formada por altos prédios, o assessor de investimentos Renato Oliveira viu a rinite alérgica voltar e transformar seu cotidiano em dores de cabeça, congestão nasal e vermelhidão no rosto. 

No centro de Manaus, o barqueiro Josenias da Silva trabalha há 30 anos levando seus passageiros para pontos turísticos, atravessando o rio Negro a partir do porto de Manaus. A fumaça atrapalha suas viagens, dificultando a visão no rio. “É muito fogo por aí, é isso o que está acontecendo, até à noite fica ruim para enxergar. Isso aqui é igual avião. Não dá para pousar de qualquer jeito. E a gente ainda corre o risco de bater um no outro”, explica.

Jullie Pereira
Josenias tenta atravessar o rio, mesmo com a visão turva de fumaça

Renato, o assessor, estava viajando e voltou para Manaus no sábado e encontrou a cidade envolta de um nevoeiro. Há anos sem ter sintomas de rinite, a dele não deu sossego nos últimos dias, deixando sua garganta fechada. “Isso causou uma reação alérgica absurda em mim. Estou tomando antialérgico agora. Minha garganta está bem inflamada porque meu organismo é muito sensível a esse tipo de poluição”, diz. 

A fumaça que atingiu Manaus na sexta-feira e se tornou totalmente visível no sábado (20) ainda permanece hoje (24), deixando a atmosfera num cinza bem diferente dos dias ensolarados que os manauaras estavam acostumados até a semana passada. 

Para a empreendedora Manuela Gomes, que mora em apartamento num prédio alto da cidade, a sensação é de estar constantemente sendo intoxicada. “Quando acordei no sábado, o cheiro estava muito forte. Tivemos que fechar as janelas para que não atrapalhasse, mas fiquei com a sensação contínua de estar respirando um ar sujo”, diz.

Jullie Pereira
Manaus sob névoa, em agosto de 2022.

Até as mínimas ações cotidianas foram afetadas, como a tentativa de lavar e secar roupas. “O varal de roupas fica na varanda e, hoje, quando fui retirar algumas peças para guardar, notei que estavam com o cheiro forte da fumaça”, conta. 

Nilda Silva, que tem uma lancha para transporte turístico, não conseguiu trabalhar na sexta-feira. Ela e o marido costumam chegar cedo na orla da cidade, no centro, e só vão embora no final da tarde. Naquela sexta-feira eles só conseguiram trabalhar até 13h. “A gente não consegue ver a natureza do outro lado, fica tudo cinza, os olhos começam a arder, vem tosse. Complica tudo”, lamenta. 

Não é a primeira vez que isso ocorre na capital do Amazonas. Desde 2014 esse cenário se estabeleceu neste período do ano, durante a estação seca na Amazônia, em que o calor e os registros de fogo aumentam no estado. Mas apesar de ser tomada pela fumaça, não é Manaus que está queimando.

Jullie Pereira
Manaus permanece com fumaça há seis dias

De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os municípios com mais focos de calor no país estão longe de Manaus: São Félix do Xingu, Altamira e Novo Progresso, no Pará, e Apuí, Novo Aripuanã e Lábrea, no sul do Amazonas. Segundo o pesquisador Alberto Setzer, coordenador do Programa Queimadas, do Inpe, que monitora focos de calor, é a fumaça proveniente dessas localidades que chega em Manaus neste momento, prejudicando o cotidiano dos 2 milhões de habitantes da maior cidade na floresta Amazônica. 

Setzer explica que, de acordo com as imagens de satélite, são milhares de queimadas ocorrendo ao mesmo tempo no Pará e no Amazonas. “No sul do Amazonas você tem vários focos. Além disso, o vento sopra de leste para oeste, tudo o que você vê queimando na região leste do Pará, tem uma tendência a ser transportada para o oeste e chegar em Manaus. É assim que está a circulação do vento”, explica.

Divulgação/Inpe
Na imagem de satélite, é possível ver a fumaça se deslocando entre Pará e Amazonas, nos dias 18 e 19 de agosto.

O físico Paulo Artaxo, Professor de Física Atmosférica no Instituto de Física da USP,  explica que a locomoção da fumaça também ocorre por causa de uma frente fria na parte sul e central do Brasil, que está modificando as massas de ar. “O deslocamento das massas de ar se alterou significativamente no Amazonas, fazendo com que a direção do vento seja invertida levando a massa das queimadas do estado do Amazonas para região central do estado, chegando à capital”, diz. 

Fumaça persistente

A presença anual e persistente da fumaça mesmo em locais distantes de onde o fogo é produzido, como acontece em Manaus, indica o aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia. “Isso é reflexo do processo de destruição da floresta Amazônica que está em curso pelo atual Governo Federal e toda a população brasileira tem que lutar contra esse processo pois ele vai trazer consequências negativas muito fortes para todo o nosso país”, diz Artaxo. 

Em anos anteriores, era comum que a fumaça desaparecesse após dias de chuva. Este ano, no entanto, mesmo já tendo ocorrido precipitação em parte da cidade, a fumaça continua predominante. O pesquisador Setzer explica que a poluição só deve acabar quando os focos de incêndio forem apagados. “A fumaça só vai sumir quando a fonte da fumaça sumir. Ou seja, quando o pessoal parar de queimar. Enquanto eles estiverem queimando isso deve acontecer, desde que o vento continue transportando a fumaça para Manaus”, disse.

A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, confirmou que a fumaça é resultado do aumento dos incêndios. “Desde o dia 17 de agosto as queimadas começaram a aumentar de forma impressionante. Muito fogo em pouco tempo joga muito material particulado para a atmosfera. Uma emissão concentrada de fumaça”, disse. 

É o que mostram, de fato, os dados do Inpe. O Amazonas saiu de 361 focos de calor em julho, para 5.269 focos em agosto, segundo dados do satélite de referência monitorado pelo instituto. O Pará, que já apresentava números maiores, continuou ampliando os focos de incêndio.  Em julho eram 802 focos e em agosto são 8.621. O número de focos de calor este ano no Pará é 23% maior do que foi ano passado neste mesmo período.

A persistência dessa fumaça traz a falta de qualidade do ar, que foi sentida pelos manauaras. Dados do serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF), mostram que Amazonas, Pará e Rondônia estão respirando o resultado dessas queimadas, em partículas microscópicas (o material particulado fino, PM 2.5) que, quando entram no sistema respiratório, podem causar danos à saúde e prejudicar quem já tem problemas de asma, câncer, gripe ou rinite.

Animação mostra circulação do vento e concentração de poluente (material particulado fino, o PM 2.5) na região de Manaus, em 19 de agosto. Fonte: CAMS / Copernicus / European Commission + ECMWF. Imagem: Earth 

O momento de “verão amazônico” também colabora para que essa fumaça permaneça, explica o meteorologista Willy Hagi, mestre em Clima e Ambiente. “Como nós não estamos no período chuvoso, o tempo seco acaba fazendo com que essa fumaça continue por mais tempo no ar e não se disperse com facilidade. Isso explica esses dias com a qualidade do ar baixíssima em Manaus, em níveis que são perigosos para a saúde de qualquer pessoa”, disse.

Duzentos e trinta e três brigadistas

Em nota, a Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas confirmou que a fumaça na capital é proveniente de queimadas no sul do estado e que a situação foi identificada em 16 de agosto. A Sema informou que tem 108 servidores trabalhando nos órgãos de segurança pública e ambiental e que existem 233 brigadistas em municípios do sul do estado. Questionada sobre o plano de contenção das queimadas para que a fumaça se disperse, a secretaria explicou que isso deve ocorrer “naturalmente, de acordo com a circulação de ventos”.

Para o pesquisador Setzer, a quantidade de brigadistas é insuficiente para conter os milhares de focos de calor registrados no estado e até mesmo apenas na região Sul, que tem 426.483 km², quase cinco vezes o tamanho de Portugal, por exemplo.

Por mais boa vontade que os brigadistas tenham e que a própria secretaria tem. A área a ser coberta é muito grande, são milhares de focos todos os dias só no Amazonas.

Alberto Setzer, coordenador do Programa Queimadas, do Inpe

“É um número mínimo por mais boa vontade que os brigadistas tenham e que a própria secretaria tem. A área a ser coberta é muito grande, são milhares de focos todos os dias só no Amazonas, esse número de duzentos e poucos com certeza é irrisório perto do que seria realmente necessário para uma ação efetiva”, afirmou.

Em julho, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) autorizou que o Governo do Amazonas recebesse apoio da Força Nacional para o combate às queimadas em Humaitá, Lábrea e Novo Aripuanã, de acordo com portaria publicada em Diário Oficial. O município de Apuí, que historicamente é o local que mais queima no estado e neste ano é o município que mais registrou focos no país, não foi incluído. A Força Nacional deve atuar no estado até 15 de novembro.

Sobre o autor

Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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