Postado emReportagem Especial / Queimadas

Inimigos invisíveis: fumaça das queimadas agrava Covid-19 na Amazônia

Fumaça na floresta nacional do tapajós, Amazônia paraense, setembro de 2020

Marizilda Cruppe / Amazônia Real

Os moradores de regiões atingidas pelo fogo usado para ceifar a floresta amazônica estiveram mais expostos ao risco de agravamento da Covid-19 em 2020. Essa sinergia tóxica entre queimadas e infecção pelo novo coronavírus é objeto de uma análise inédita realizada durante cinco meses por uma equipe multidisciplinar de jornalistas, geógrafos e estatísticos do InfoAmazonia, em parceria com pesquisadores do LabGama, ligado à Universidade Federal do Acre, e da Fiocruz. O projeto teve apoio da Universidade de Stanford, através do programa Big Local News, que tem por objetivo a abertura de dados em formatos que possam ser replicados por jornalistas de todo o mundo.

No ano passado, durante o ápice da temporada de queimadas, respirar principalmente em municípios dos estados de Rondônia, Mato Grosso, Acre e Amazonas ficou mais perigoso por causa de dois inimigos invisíveis aos olhos humanos. O vírus pandêmico e o material particulado fino, poluente microscópico que afeta os pulmões.

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1.

Fumaça vista do Espaço

Satélites detectam a poluição atmosférica e permitem calcular a concentração dos seus diversos componentes. Além do carbono que impulsiona o aquecimento global, a imensa quantidade de fumaça emitida pelas queimadas emite poluentes que têm efeitos diretos sobre a saúde.

Fonte: média de material particulado (PM 2.5) de julho a outubro/2020 – CAMS

2.

Amazônia Legal

Em 2020, um dos ciclos mais severos de queimadas e desmatamento da Amazônia Legal brasileira expôs os moradores da região a grandes quantidades de poluentes tóxicos à saúde humana, o material particulado – PM 2.5.

3.

Nuvens tóxicas viajam com o vento

Nem sempre os locais da Amazônia com mais focos de calor segundo o registro dos satélites, são aqueles em que a poluição do ar é maior. Chuva, relevo e padrões de vento influenciam, determinando a circulação do material particulado.

Fonte: focos de calor detectados pelo satélite S-NPP/VIIRS de julho a outubro/2020 – INPE

4.

Aumento de internações

Respirar principalmente em municípios de Rondônia, Mato Grosso, Acre e Amazonas ficou mais perigoso durante a temporada de queimadas de 2020. A trágica combinação com a pandemia fez com que moradores de regiões atingidas pela fumaça estivessem mais expostos também ao risco de agravamento da Covid-19.

Fonte: aumento de internações classificadas como Covid-19, de julho a outubro/2020 – análise InfoAmazonia

Os dados revelam como a poluição decorrente das queimadas amazônicas tem um efeito crônico perverso sobre a população que é explicada por uma específica geografia do fogo [veja na segunda reportagem da série]. Os municípios mais afetados, em diferentes estados, indicam a expansão do arco do desmatamento. São casos como o do estudante Robson Fadell, da técnica de enfermagem Regina Diogo e da secretária de Meio Ambiente de Poconé, Danielle Carvalho, que serão contadas nesta série de reportagens.

Todos os anos, a população da Amazônia vê a paisagem mudar por causa da grande quantidade de fumaça que circula na época das queimadas – de julho a outubro, com pico entre agosto e setembro. Junto da fumaça visível nos céus dos municípios, fragmentos muito finos, com menos de 2.5 µm de diâmetro, muito menores do que a espessura de um fio de cabelo, também vão ter efeitos deletérios sobre a saúde de todos. Essas pequenas partículas imperceptíveis a olho nu podem ser detectadas pelos sistemas ópticos dos satélites desde o espaço.

CONCENTRAÇÃO DE MATERIAL PARTICULADO POR MUNICÍPIO

Cada linha corresponde a um município da amazÔnia legal
MÉDIAs DIÁRIAs de PM 2.5

A cada dia em que os finíssimos grãos de material particulado ficaram em suspensão na atmosfera acima do patamar considerado seguro pela OMS (Organização Mundial de Saúde), o risco de uma pessoa contaminada pelo novo coronavírus ser internada subia 2%. A fumaça das queimadas esteve relacionada a um aumento de 18% nos casos graves de Covid (aqueles em que houve internações hospitalares) e de 24% em internações por síndromes respiratórias nos 5 estados com mais fogo da Amazônia durante as queimadas de 2020 (Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Pará).

Os moradores de Rondônia foram os que mais sofreram. Durante toda a temporada de queimadas, o estado teve o maior aumento de internações relacionadas à fumaça das queimadas. Em setembro, pior mês do ano, os dados mostram quase 26 dias com altos índices de poluição. Nesse contexto, a população viveu com 66% mais de chances de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19, indica o estudo exclusivo do InfoAmazonia. No mesmo período, o ar das cidades do Acre ficou, em média, quase 22 dias do mês saturado de material particulado. O que aumentou as chances de internação em todo o estado em 54%. Os moradores de Poconé e Cáceres, por exemplo, municípios de Mato Grosso onde a situação esteve mais grave em setembro, viveram com 82% mais de chances de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19 e 115% considerando todas as síndromes respiratórias naquele mês [veja na terceira reportagem desta série]. Nesse mesmo intervalo temporal, o ar das duas localidades ficou todos os 30 dias do mês saturado de material particulado.

AUMENTO DE INTERNAÇÕES

AUMENTO DE INTERNAÇÕES SRAG / COVID UF
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Apagão de Dados

Para chegar ao enredo que quantificou a relação entre fogo, poluição e agravamento da Covid-19, a equipe multidisciplinar precisou superar um importante obstáculo ao se tratar de Amazônia, a dificuldade para obtenção de dados regionais sobre a poluição do ar: nenhuma cidade amazônica possui estações fixas de monitoramento. A poluição da região foi então calculada com base em informações de satélite. Até 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) processava e disponibilizava esses dados para todos os municípios brasileiros, mas o instituto federal interrompeu a divulgação ano passado.

“Os dados de poluição não estavam disponíveis a partir de 2020. Por isso, o processamento teve que ser feito a partir das imagens de satélite”, afirma Renata Hirota, jornalista de dados da equipe do InfoAmazonia.

Os dados de poluição não estavam disponíveis a partir de 2020. Por isso, o processamento teve que ser feito a partir das imagens de satélite.

RENATA HIROTA

Jornalista de dados da equipe InfoAmazonia

As estimativas globais de concentração do material particulado fino (PM 2.5) são frutos de um modelo espacial, que processa informações registradas por satélites e estações meteorológicas. O sistema é disponibilizado pelo serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF).

Para calcular o agravamento dos casos de Covid-19, a análise considerou apenas os casos em que houve internação hospitalar. Os dados, que vêm da base por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) disponibilizada pelo DataSus, são gerados a partir dos formulários de internações hospitalares por síndromes respiratórias, inclusive as que terminam em morte, e são classificadas de acordo com a causa da infecção (Covid-19 é uma das diversas causas de doenças respiratórias apontadas nesses formulários). Como a subnotificação dos casos de Covid-19 é alta, o total de casos por SRAG também foi analisado e indicam que os números de Covid podem ser ainda maiores do que os casos oficialmente confirmados (43% das internações tinham causas indefinidas).

sensores em satélites

A atmosfera é continuamente observada por satélites que medem parâmetros meteorológicos e constituintes atmosféricos, como os aerossóis. Modelo espacial do Centro Europeu combina essas informações com medições no solo e modelos computacionais para entregar, entre outros, estimativas diárias de material particulado.

geoprocessamento

Análise do InfoAmazonia processou as diversas estimativas por dia para chegar na concentração média diária de material particulado fino (PM 2.5) para todos os municípios da Amazônia Legal.

formulários de internações

Base de dados sobre doenças respiratórias agudas graves, inclusive a Covid-19, mostrou municípios de residência dos pacientes internados. Esses dados foram cruzados com as concentrações diárias de PM 2.5 dos municípios para 2019 e 2020.

modelo estatístico

Vários cenários foram testados, incluindo queimadas, alertas de desmatamento, população e precipitação. Foi encontrada uma relação significativa entre a persistência de material particulado no ar com internações por doenças respiratórias e Covid.

Após o processamento dos dados, uma das primeiras constatações foi perceber que nem sempre os locais da Amazônia com mais focos de calor, segundo o registro dos satélites, são aqueles em que a poluição do ar é pior. Chuva, relevo e padrões de vento influenciam isso. Como a região é muito grande, a circulação de massas de ar acaba empurrando o material particulado para longe do local onde ele é lançado na atmosfera pelo fogo.

O modelo matemático construído especialmente para a análise testou diversos cenários e achou significância principalmente entre os níveis cumulativos da poluição (dias do mês em que a concentração média do material particulado permaneceu acima dos 25 microgramas por metro cúbico diários recomendados pela OMS) e os números oficiais das internações tanto por SRAGs quanto por Covid-19. Para verificar o impacto da exposição local à fumaça, o algoritmo recebeu informações dos municípios de moradia dos pacientes e não do local da internação. Na Amazônia, como revelou a pandemia, a rede de hospitais de alta complexidade é pequena e muitas vezes distante das pequenas e médias cidades. Por isso, usar a informação do local de internação no modelo, em vez da cidade de origem do paciente, levaria a conclusões equivocadas em relação à exposição ambiental.

A taxa de aumento das chances de alguém ser internado em relação à variável poluição emerge de uma comparação feita entre a situação real, onde houve acúmulo de poluição ao longo do mês, e um cenário hipotético, sem nenhum dia com a concentração do material particulado acima dos limites aceitáveis da OMS. Neste caso, explica Renata, o efeito marginal da poluição considera que nenhuma das outras variáveis, como o momento da pandemia, o nível de precipitação e o desmatamento, mudaram.

“O material particulado, principalmente, causa efeitos crônicos sobre o corpo humano”, afirma Nelson Gouveia, médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. De acordo com o especialista em investigar as consequências da poluição sobre a saúde humana, o impacto dos microscópicos grãos de poluição é sistêmico.

Ao ser inalada, as partículas menores vão chegar até o pulmão, e, as menores ainda chegarão por meio dos alvéolos à corrente sanguínea. “Uma vez no sangue, a poluição pode atuar em todo nosso organismo por meio do chamado estresse oxidativo”, explica o pesquisador da USP. O impacto bioquímico causado pelo material particulado, os cientistas já sabem, contribui para o processo de aterosclerose e, como consequência, geram doenças isquêmicas do coração, além de atingir outras funções do organismo. “A poluição também tem efeitos carcinogênicos, o que aumenta as chances do desenvolvimento de câncer”, diz Gouveia.

O caminho do material particulado

1.

As queimadas lançam uma quantidade enorme de poluição no ar. Junto com o carbono, que colabora para o incremento das mudanças climáticas globais, e diversos outros gases tóxicos, também vai para os ares muito material particulado (PM, do inglês particulate matter).

2.

O material particulado é um conjunto de poluentes constituídos de poeiras, fumaças e todo tipo de material sólido e líquido que se mantém suspenso na atmosfera por causa de seu pequeno tamanho.

3.

O material particulado fino (PM 2.5) tem menos de 2,5 micrômetros de diâmetro, quase 30 vezes menor do que a espessura de um fio de cabelo. Por serem muito pequenas e leves, as partículas costumam ser carregadas pelos ventos até milhares de kms de onde são geradas, ou seja, de onde ocorre a queimada.

4.

Ao serem inaladas, as finas partículas vão parar no pulmão e acabam chegando, por meio dos alvéolos, até a corrente sanguínea, onde poderão causar sérios problemas crônicos de saúde.

5.

Nos pulmões, além dos efeitos a longo prazo, a exposição prolongada ao material particulado tende a provocar irritações agudas e deixar o sistema respiratório vulnerável, cenário ideal para o novo coronavírus atuar com mais gravidade.

De acordo com o especialista da USP, a poluição também pode contribuir para o estabelecimento do Diabetes, levar a um déficit cognitivo e a demência por atuar no sistema nervoso e, ainda, a um envelhecimento mais rápido pela ação que ela tem sobre a pele. Nos pulmões, além dos efeitos a longo prazo, o material particulado também tende a gerar reações quase imediatas. “Por causa desse efeito agudo, ele pode provocar irritações químicas”, afirma Gouveia. Sistema respiratório vulnerável, mostram os dados clínicos e epidemiológicos mais recentes, é o cenário ideal para o novo coronavírus atuar com mais gravidade.

O sofrimento do pulmão e de todo o corpo é apenas o fim de um ciclo mortífero que começa quando o fogo é colocado na mata. Apesar de as queimadas serem um processo histórico da agricultura da Amazônia, elas passam a ser um grave problema ambiental quando ganham grandes proporções e ainda se encontram com a crise climática, e portanto com períodos mais secos e mais longos.

“Existe sim uma relação histórica do uso do fogo na Amazônia”, afirma o ecólogo Irving Foster Brown, ligado à Universidade Federal do Acre e ao Woodwell Climate Research Center, dos Estados Unidos. Mas existe uma diferença grande, afirma o cientista novaiorquino há décadas radicado no Brasil, entre o fogo usado por comunidades tradicionais para limpar entre 3 e 4 hectares por ano em um território de 100 mil hectares e os outros, de grandes proporções, registrados no Acre e em outros estados da região nos últimos anos. “Tudo é uma questão de escala. Na situação atual, a perturbação é significativa e vai afetar a biodiversidade e o clima”, argumenta Brown.

Para o ecólogo, as queimadas já alteram o clima regional na Amazônia. “As temperaturas nas últimas quatro décadas têm aumentado. No sul da região, o período de seca também está mais prolongado.” A tendência, explica Brown, é a floresta dar espaço para degradação contínua, em um ambiente cada vez mais seco. O que deve ser turbinado pelas mudanças climáticas globais, que tendem a deixar o clima mais quente nos trópicos. O desmatamento da Amazônia é uma das principais fontes de gases de efeito estufa do Brasil.

Como essa transformação em andamento, o impacto do novo padrão climático sobre a saúde da população vai precisar ser acompanhado de perto. A seca tende a gerar mais fogo, assim, o risco de os amazônidas desenvolverem maiores problemas respiratórios, como revelou o modelo matemático alimentado com dados do ano passado em relação à Covid-19, também aumenta. Mas como a Amazônia sofre por não ter as estações de monitoramento da qualidade do ar, não se sabe os riscos que os milhões de habitantes da região estão sendo submetidos ao serem intoxicados pelo fogo.

Material particulado chega a viajar 5 mil, 10 mil quilômetros. A poluição das queimadas da Amazônia, por exemplo, já foi medida em São Paulo.

Paulo Artaxo

Físico da Universidade de São Paulo

O estado do Acre, mais recentemente, por causa de um trabalho que a UFAC e outras instituições participam, é um dos poucos que passaram a conhecer melhor como o material particulado circula pela atmosfera da região. Os dados são captados diariamente por 33 sensores portáteis, e portanto de captação pontual, instalados na capital Rio Branco e nos outros 21 municípios do estado. O projeto é pioneiro na Amazônia [veja mais na última reportagem desta série].

Fora dali, nos outros estados, com algumas exceções que começam a surgir, a única saída é recorrer às imagens de satélite que, apesar de mostrarem as plumas de poluição das queimadas e serem uma boa opção de investigação, não permitem análises pormenorizadas, em nível mais local. Por causa das dimensões amazônicas, um ou outro sensor disperso não resolve. O ideal é ter uma malha bem entrelaçada de instrumentos de medição. Por isso, há tempos, os cientistas clamam por uma rede mais completa para a região. O que tornaria estudos como esse feito pelo InfoAmazonia entre a correlação da Covid-19 com o material particulado ainda mais preciso e abrangente. Mesmo porque, os grãos de poluição oriundos das queimadas viajam e viajam muito.

“Medimos material particulado vindo do Saara na Torre ATTO”, afirma Paulo Artaxo, físico da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas do mundo quando o tema é poluição atmosférica. O cientista se refere à Torre Alta da Amazônia, instalada na Estação Científica de Uatumã, a 150 km de Manaus. Os sensores do experimento estão no alto de uma estrutura de aço que mede 325 metros de altura. São quase 1,5 mil degraus até o topo. “O material particulado chega a viajar 5 mil, 10 mil quilômetros. A poluição das queimadas da Amazônia, por exemplo, já foi medida em São Paulo”, diz Artaxo, que também defende uma melhor rede de monitoramento da poluição do ar na Amazônia.

Segundo ele, por ter uma meia vida entre 5 e 7 dias, o material particulado pode ter um efeito importante sobre a saúde. “Não precisa estar vendo a fumaça para ser afetado por ela. Isso ocorre em casos extremos, com as pessoas que estão a menos de 10 km do foco de fogo”, afirma o especialista, um grande defensor da proteção da floresta.


Esta reportagem faz parte do Engolindo Fumaça, projeto especial do InfoAmazonia produzido com apoio da bolsa de jornalismo John S. Knight e do programa Big Local News, da Universidade de Stanford.

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