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As vítimas da geografia do fogo

As fumaças das queimadas e a Covid varrem do sul do Amazonas ao Acre

Fogo em área Desmatada no município de lábrea, sul do amazonas, em agosto de 2020

Foto: Christian Braga / Greenpeace

“Eu perdi meu irmão e minha irmã no intervalo de 3 meses ano passado. Essa é uma doença que eu não desejo nem para o meu pior inimigo”. O relato franco e dolorido da técnica de enfermagem Regina Célia Diogo, 53, é uma das imagens que indicam a conexão sorrateira entre queimadas e o incremento do agravamento dos casos de Covid-19 no sul do Amazonas.

Análise exclusiva do InfoAmazonia mostra que municípios como Humaitá, onde Regina trabalhou durante toda a pandemia na linha de frente na remoção de pacientes graves, faz parte de uma área crítica, onde os problemas respiratórios da população tendem a piorar por causa do material particulado que circula na atmosfera após as florestas incendiarem. É um cenário conhecido de quem vive na região. No ano passado, entretanto, a chegada do novo coronavírus deu contornos ainda mais dramáticos a uma região que normalmente vive diante de crises tanto ambientais quanto na área de saúde.

Poluição do ar e aumento de internações por Covid de julho a outubro de 2020

No mapa, passe o mouse sobre os círculos para dados sobre material particulado, aumento de internações por Covid-19 e SRAG nos municípios da Amazônia Legal.

O processo que faz a floresta queimar no sul do Amazonas e prejudicar a saúde dos amazônidas está interligado ao que também ocorre em regiões do Acre, de Rondônia e de Mato Grosso, segundo Sonaira Silva, pesquisadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA), da Universidade Federal do Acre, e consultora científica do projeto do InfoAmazonia.

“É uma ampliação do arco do desmatamento. As grandes quantidades de queimadas do ano passado estão ligadas diretamente à pecuária e à especulação imobiliária. A questão da falta de governança por parte dos governos municipais, estaduais e federais, que resulta em uma menor fiscalização, também entra nessa equação. As pessoas estão se sentindo mais tranquilas para queimar”, explica Sonaira. De acordo com a cientista, o trabalho de análise de dados apresentado pelo projeto do InfoAmazonia ajuda a dimensionar o problema. “Agora, sabemos a escala dos impactos da poluição do fogo na saúde pública”, afirma Sonaira.

É uma ampliação do arco do desmatamento. As grandes quantidades de queimadas do ano passado estão ligadas diretamente à pecuária e à especulação imobiliária. As pessoas estão se sentindo mais tranquilas para queimar.

Sonaira Silva

Pesquisadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA), da Universidade Federal do Acre

Lucas Lobo

Regina Célia diogo

53 anos, técnica de enfermagem

O cotidiano da técnica de enfermagem Regina mudou para sempre, não apenas por causa da perda dos familiares. Com 70% de saturação de oxigênio, quando o ideal é ter pelo menos 95%, Regina precisou ser internada às pressas em setembro. O ar faltava e o peito doía. Foram dez dias no hospital e por várias vezes ela quase precisou ser intubada. “Troquei de lugar com os meus pacientes pela primeira vez. Foi um momento extremamente difícil e doloroso tanto física quanto psicologicamente. Sentia como se o meu pulmão estivesse nas costas”, descreve Regina. O estado crítico fez com que o diabetes, uma das comorbidades mais associadas ao risco de a Covid desenvolver complicações, ficasse descompensada. “Mesmo com todo apoio dos meus colegas de profissão que cuidaram de mim, precisava do oxigênio o tempo todo comigo, senão eu não aguentava.”

Troquei de lugar com os meus pacientes pela primeira vez. Foi um momento extremamente difícil e doloroso tanto física quanto psicologicamente. Sentia como se o meu pulmão estivesse nas costas.

regina célia diogo

profissional da linha de frente, foi hospitalizada por 10 dias e perdeu dois familiares para a Covid-19

Em agosto, um mês antes de Regina lutar pela sobrevivência, uma extensa área do sul do Amazonas vivenciou uma explosão das internações por Covid-19. O aumento de casos de moradores não apenas de Humaitá, mas dos municípios de Lábrea, Nova Aripuanã, Pauini, Apuí e Manicoré estão todos associados às queimadas da região, que não deram trégua na época da seca e nem necessariamente ocorrem dentro dos mesmos municípios.

Em Lábrea, Nova Aripuanã e Pauini, as primeiras da lista entre todos os municípios amazônicos especificamente em agosto, as internações confirmadas como Covid-19 subiram 82% e as por síndromes respiratórias 115%. Lábrea passou os 30 dias do mês com os níveis de material particulado acima dos 25 µg/m3 recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Entre julho e outubro foram ao todo 70 dias. Nos mesmos meses, Humaitá ficou 63 dias com o ar pesado, saturado de poluição.

Em agosto, municípios do sul do amazonas foram os mais impactados pela fumaça das queimadas

Fonte: análise do InfoAmazonia

Para Luiz Marques, pneumologista que atua em Manaus, não há como dissociar queimadas, poluição, Covid-19 e falta de governança ambiental. “Doenças do pulmão geralmente estão relacionadas ao meio em que se vive, ou seja, são doenças ocupacionais. Pessoas expostas muitos anos à fumaça, queimadas, madeireiras e criação de pastos, por exemplo, podem desenvolver doenças pulmonares e ficar mais suscetíveis à Covid-19. Por isso, consequentemente, há maior número de internações na região sul do Amazonas. Sabe-se que Lábrea é um município fraco em relação a políticas ambientais”, explica o médico.

Por mais que os moradores de cidades como Humaitá associem o risco de intoxicação pela poluição do ar a queimadas próximas, visíveis, isso é apenas parte da história. Na Amazônia, queimadas distantes, que ocorrem a centenas de quilômetros, como as registradas muitas vezes nas margens de rodovias, também costumam penetrar nas vias áreas dos habitantes até de outros estados. Nesse caso, é um inimigo invisível. Análise do InfoAmazonia a partir de medições do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que, em 2020, 12 municípios sob influência direta da BR-319 somaram mais de 40% dos focos de calor registrados no Amazonas.

A equipe de reportagem do InfoAmazonia fez o trajeto de Humaitá a Porto Velho, pela BR-319, em julho deste ano, início da nova temporada de queimadas. Apesar de não ser o mês mais seco do ano, havia fogo em vários trechos do percurso. Nuvens de fumaça cobriam a estrada.

ONDE O VENTO FAZ A CURVA

A sinergia entre produção local e dispersão regional da fumaça das queimadas também atinge em cheio o Acre, segundo Irving Foster Brown, professor da Universidade Federal do Acre. O nova-iorquino radicado na Amazônia desde os anos 1990 afirma que, além do estado onde ele vive, o sul do Amazonas e também Rondônia estão em um corredor onde, realmente, pode-se dizer que o vento faz a curva. Por causa da proximidade dos Andes, há uma alteração no fluxo das massas de ar que atravessam a região.

“O vento aqui no Acre vem mais ou menos pela Boca do Acre [município do interior do Amazonas, localizado ao sul do estado], depois que passa por cima dos acreanos ele começa a virar para sudeste”, afirma Brown. Toda essa movimentação na atmosfera do lado mais ocidental do país, além de carregar as águas das chuvas que vão abastecer os rios da Amazônia, também transporta as fumaças das queimadas por longas distâncias. O que aumenta os índices de poluição da região.

animação mostra circulação do vento na amazônia

Fonte: GFS / NCEP / US National Weather Service, vento a 850 hPa de altura, em 11/08/2020. Imagem: Earth

Brown explica que mesmo os municípios sem registros significativos de queimadas podem sofrer com a fumaceira, que acaba sendo empurrada pelas grandes rajadas. Pode ser o caso de Pauini e outras cidades no sudoeste do Amazonas que não têm uma produção local de fogo tão significativa mas passaram a maior parte da temporada de queimadas com níveis de poluição acima do recomendado pela OMS, segundo a análise do InfoAmazonia. “Se tem vento forte e contínuo, é possível que a fumaça seja deslocada por até mil quilômetros. Mas isso não significa que o fogo de pequenas proporções nos quintais não influencia na poluição do ar. Se queimou, vai ter fumaça”, observa o pesquisador da Federal do Acre.

O fato de a fumaça jogar uma quantidade grande de material particulado na atmosfera tem consequências tanto imediatas, quanto ao longo dos meses e anos, afirma o cientista. A implicação mais instantânea, segundo Brown, envolve o surgimento de enfermidades agudas, como a piora de um quadro asmático, por exemplo. “Mas existem outros impactos que envolvem a longevidade. Vamos supor que uma pessoa sofreu um infarto em fevereiro deste ano. Muitos diriam que isso não tem nada a ver com as queimadas. Mas os danos que levaram ao infarto podem ter ocorrido durante o período da fumaça em 2020, caso a pessoa tenha uma hipersensibilidade à poluição do ar.” [ver box].

Neste contexto, é que a chegada do novo coronavírus tornou o quadro ainda mais grave, admite Brown, como um copo já cheio, que acaba de transbordar. “O novo coronavírus pode provocar uma síndrome respiratória aguda grave. Se você tem essa predisposição a problemas pulmonares e inala muito material particulado vai desenvolver problemas ainda mais graves por causa do vírus.”

Sem perceber, pelo menos no início, o estudante de nutrição Robson Fadell, 23, viveu na prática o que Brown teorizou. No final de agosto de 2020, em plena temporada do fogo, o morador de Rio Branco, capital do Acre, começou a sentir os sintomas típicos da asma, doença que o acompanha desde os primeiros anos de vida.

Dell Pinheiro e Arquivo Pessoal

Robson fadell

23 anos, estudante, Rio Branco-AC

“No período da fumaça as minhas crises ficam mais frequentes. Bate um cansaço e preciso aumentar a frequência do uso da bombinha [de inalação para dilatação dos brônquios]. Vem também uma sensação de olho seco. Nessa época do ano sempre uso um colírio para aliviar. Sei que essa piora é por causa da fumaça porque morei alguns anos em Fortaleza [onde o clima é muito mais úmido por causa do Atlântico] e lá eu não tinha agravamento da asma como ocorre em Rio Branco”, lembra Fadell.

Dez dias depois os sintomas não melhoraram e o estudante percebeu que aquele quadro asmático estava diferente. Acordou sem conseguir respirar. “Na consulta, o grau de comprometimento do pulmão já estava grande”. A tomografia atestou pneumonia avançada e o teste mostrou que o novo coronavírus o havia infectado. O estudante foi imediatamente internado. Duas horas depois, parcialmente sedado, precisou de aparelhos para respirar. Fadell registrou uma piora significativa nos quatro dias seguintes, com as tomografias apontando pulmões cada vez mais comprometidos. Até que os médicos chegaram à conclusão de que a ventilação mecânica não era mais suficiente. Ele foi preparado para a intubação, porém, na manhã seguinte, apresentou sinais de melhora e os médicos mudaram de opinião. Foram 16 dias deitado em uma maca de hospital lutando pela vida. Os amigos chegaram a fazer uma vaquinha online para custear as despesas médicas.

“O meu período hospitalizado mexeu bastante com o meu psicológico e marcou minha vida para sempre. O tempo todo era aquela incerteza. Pensei que fosse morrer, era o que mais passava pela minha cabeça”, lembra Fadell. O estudante não tem dúvida de que a fumaça das queimadas fragilizou ainda mais seu sistema respiratório, o que contribuiu para a infecção severa pelo coronavírus, que já fez cerca de 1.800 vítimas fatais no Acre.

O meu período hospitalizado mexeu bastante com o meu psicológico e marcou minha vida para sempre. O tempo todo era aquela incerteza. Pensei que fosse morrer, era o que mais passava pela minha cabeça.

Robson Fadell

estudante, que sofre de asma, teve quadro severo de covid e precisou ser intubado

O caso de Fadell ilustra o momento delicado que Rio Branco viveu durante a temporada do fogo, em 2020. Em setembro, quando foi hospitalizado, a capital acreana teve um aumento de 71% das internações por Covid-19 e 99% por Síndrome Respiratória Aguda Grave, ocupando o topo do ranking estadual. Também naquele mês, o município despontou como o mais poluído do Acre, ficando 27 dias com material particulado acima do recomendado pela OMS. Setembro também foi o período do ano com mais queimadas no estado.

Rio branco foi o município mais poluído do acre em setembro

Fonte: análise do InfoAmazonia

Durante toda a temporada do fogo, que vai de julho a outubro, Rio Branco teve média de 13,2 dias por mês com níveis de poluição prejudiciais à saúde, atrás apenas de Acrelândia (14,8) e Bujari (13,5), no interior. Nesses quatro meses, o Acre teve 22% a mais de hospitalizações por Covid e 29% a mais por síndrome respiratória aguda grave.

O período das queimadas é passageiro, mas seus efeitos podem ser duradouros. Quase um ano após a cura da Covid-19, Fadell ainda vive com sequelas da infecção agravada pela asma, que, por sua vez, foi intensificada pela fumaça dos incêndios florestais. A capacidade respiratória, segundo o jovem, não voltou ao que era antes da contaminação. “Se eu falo muito, logo me sinto cansado. Minha pressão também ficou desregulada, assim como a glicemia”, lamenta, já preocupado com a aproximação do pico das queimadas e da poluição deste ano.

O SUFOCO EM RONDÔNIA

Queimadas atreladas ao desmatamento e massas de ar que se deslocam de outras regiões da Amazônia também poluídas por material particulado pressionam os pulmões dos moradores de várias cidades de Rondônia. Sobre esse pano de fundo, quando a pandemia passou a sufocar a região durante o período de seca em 2020, as internações por Covid, como mostra a análise do InfoAmazonia, subiram até 36%.

Entre julho e outubro de 2020, Rondônia apresentou uma média mensal de 15,6 dias acima do recomendado. O que significa que em metade dos dias de cada mês a população do estado respirou ar com níveis acima do tolerável para a saúde humana durante toda a temporada do fogo. Em nenhum outro estado amazônico, a situação esteve tão grave.

Na capital, Porto Velho, a poluição atmosférica está relacionada a um aumento de 45% nas complicações de Covid-19 entre julho e outubro. Só em agosto, mês com maior impacto no município, foram 74% a mais de internações por Covid e 104% por SRAG em geral. A cidade é a sétima, entre todos os municípios amazônicos, com maior impacto da fumaça no aumento de internações.

Agosto foi o mês com maior impacto em porto velho

Fonte: análise do InfoAmazonia

O impacto do ar saturado que pairou sobre as cidades rondonienses pode estar por trás de histórias como a da família Costa, que vivia no bairro Castanheiras, em Porto Velho, o segundo com mais casos confirmados em todo o estado, segundo um levantamento do Portal Covid, da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau).

arquivo pessoal

família costa

bairro castanheiras,porto velho – ro

Em agosto, Dannys, como era conhecida Daniela de Souza Costa (à direita da foto), perdeu a vida por causa do vírus aos 38 anos. “Ela não tinha comorbidades. Foi ao hospital com suspeita da Covid-19, assim que o exame deu positivo o médico a internou. Já estava com 50% dos pulmões comprometidos. Ficou no quarto nos primeiros quatro dias e logo em seguida entrou na UTI”, diz a irmã, a jornalista Daiana de Souza Costa. A moradora de Porto Velho morreu em 12 de agosto de 2020, 28 dias depois de chegar à UTI do Hospital 9 de Julho. Ela deixou o marido e uma filha de 5 anos. A época das queimadas ainda estava no início, mas dois meses antes, em junho, a família já tinha sido muito impactada pela pandemia.

“Vi a pandemia mais perto do que esperava. Antes de minha irmã, com apenas 38 anos, perdi meu pai em junho. Foram duas perdas muito perto uma da outra. Hoje, da minha família, só restou eu e meu irmão”, lembra Daiana, que reside no distrito de Nova Mutum Paraná, distante cerca de 100 quilômetros de Porto Velho.

Vi a pandemia mais perto do que esperava. Antes de minha irmã, com apenas 38 anos, perdi meu pai em junho. Foram duas perdas muito perto uma da outra. Hoje, da minha família, só restou eu e meu irmão.

daiana de souza costa

jornalista, teve o irmão internado e perdeu pai e
irmã para a Covid-19

Danilo, o irmão dela (à esquerda da foto), morava com o pai (centro) na capital e sentiu primeiro os sintomas da Covid-19. “Uma parte do tempo, ele e o meu pai estiveram contaminados na mesma casa. Meu pai cuidou do meu irmão, mas logo depois ele começou a ter falta de ar e problemas para respirar. Ele tinha diabetes e problemas renais”, afirma Daiana.
Danilo teve pneumonia e ficou com 50% do pulmão comprometido. “Eu e meu pai cuidamos um do outro”, lembra o contador. “Quando ele ficou muito ruim eu já tinha melhorado. Ele foi então encaminhado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), na Zona Sul de Porto Velho, onde foi internado.”

Segundo Daiana, Áureo Costa, o pai, chegou ao hospital com mais de 60% dos pulmões comprometidos e morreu à espera de uma vaga na UTI. “Ele se internou em um dia e morreu praticamente no outro, em uma maca da UPA aguardando uma vaga. Ele precisava de um leito em que pudesse realizar hemodiálise, mas todas as vagas estavam lotadas”, lamenta a jornalista.

No local em que Áureo permaneceu não havia alimentação para os pacientes, lembra Danilo. “Ficava a cargo da família levar todas as refeições. No dia em que meu pai faleceu, levei almoço, um caldo de feijão com suco de laranja e dei comida na boca dele. Aquele almoço foi o nosso último momento”.

COVID-19 E QUEIMADAS CONTINUAM INTERROMPENDO SONHOS EM HUMAITÁ

“Eu morri junto com ela. Eu sempre falo isso, porque não é fácil viver nesta casa, sendo que tudo lembra ela. Era ela que me acordava de manhã, fazia café, brincava comigo… A casa é ela.”

Fotos: Lucas Lobo

Márcia e a mãe foram internadas com Covid-19, mas apenas ela sobreviveu

Há quem acredite que a pandemia acabou, mas para aqueles que passaram pela dor da perda, ela continua muito presente. Contaminada pelo vírus, a manicure Márcia Gude, 39, foi internada nos primeiros meses de 2021 ao mesmo tempo que a mãe, mas em hospitais diferentes. Apenas ela sobreviveu.

Como a mãe de Márcia sofria de problemas pulmonares em decorrência de complicações de uma tuberculose no passado, toda vez que a fumaça das queimadas chegava, ela pedia para a mãe colocar uma máscara. Ao contrário do pensamento comum pela cidade, não é apenas quando fogo e fumaça são visíveis que o risco de respirar material particulado aumenta. Às vezes não se vê o fogo mas a poluição está presente [ver reportagem 1 desta série]. Até precisarem de atendimento médico por problemas respiratórios, muitos moradores do sul do Amazonas não percebem os impactos tóxicos da poluição atmosférica.

As duas passaram pelo ciclo de queimadas incólume ao vírus, e logo no início deste ano se contaminaram. O quadro da manicure evoluiu para uma pneumonia. Márcia foi transferida para o mesmo quarto onde a mãe já estava hospitalizada. Mas elas não conseguiam nem se ver. Com a ajuda de enfermeiros, a única forma de comunicação entre elas era pelas fotos no celular que a equipe de enfermagem fazia nos intervalos dos atendimentos.

“Nós fizemos uma promessa uma para a outra antes de tudo acontecer. Se fosse comigo, também seria com ela. Quando piorei por causa da pneumonia, falei que não queria ser transferida para Porto Velho. O meu desejo foi ficar em Humaitá, com ela”, relembra Márcia mostrando uma foto da mãe.

O quadro agudo trazido pela pandemia no ano passado, mais o crônico, marcado pelas constantes queimadas anuais, como ocorreu no ano passado, continuam presentes no sul do Amazonas e a tendência é que eles se repitam este ano, mostrando que o problema está longe de terminar.


Esta reportagem faz parte do Engolindo Fumaça, projeto especial do InfoAmazonia produzido com apoio da bolsa de jornalismo John S. Knight e do programa Big Local News da Universidade de Stanford.
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