Antes um dos mais preservados, ultrapassou Pará e Mato Grosso no ranking do desmatamento pela primeira vez desde o início da série histórica do Deter-B, em 2016. Análise inédita mostra como o município de Apuí, que abriga o Projeto de Assentamento Rio Juma, contribuiu para a destruição florestal.
O Amazonas ocupou o primeiro lugar no ranking de alertas de desmatamento entre 1º de janeiro e 30 de junho de 2022, com 1.236 km² de área desmatada. Essa é a primeira vez que o estado assume a posição, ultrapassando Pará e Mato Grosso, que encabeçavam as listas desde 2016, quando teve início a série histórica do Deter: Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real (+), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em relação ao mesmo período de 2021, os alertas cresceram 48% no estado.
O Pará ficou em segundo lugar, com 1.104,67 km² sob aviso de desmate, seguido pelo Mato Grosso (845,2 km²), Rondônia (572,8 km²), Acre (114,06 km²), Roraima (81,7 km²), Maranhão (28,1 km²), Tocantins (4,8 km²) e Amapá (0,08 km²). Em toda a Amazônia, foram 3.987,5 km² sob alerta no primeiro semestre, um recorde para a série. A área desmatada é equivalente a quase três vezes à da cidade de São Paulo.
Mapa do Monitor PlenaMata mostra alertas de desmatamento do sistema Deter na Amazônia de janeiro a junho de 2022. No mapa, passe o mouse sobre os polígonos em vermelho para ver data de detecção e tamanho da área desmatada. No menu superior, clique no nome das camadas para adicionar os dados da taxas anuais de desmatamento (Prodes) e a divisão política dos municípios amazônicos.
Nos balanços mensais, o Amazonas ocupou a primeira posição em abril, maio e junho e os municípios sul-amazonenses foram os principais responsáveis para o estado subir ao topo do ranking semestral.
“Ali a situação é mais crítica, principalmente na divisa com o Acre e Rondônia, onde existe um polo agropecuário chamado Amacro [inicial dos três estados; atualmente, o nome oficial é ZDS Abunã-Madeira]. Os municípios dessa região têm aparecido com frequência nos rankings mensais dos que mais desmatam na Amazônia”, explica a pesquisadora Bianca Santos, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Apuí: o município mais desmatado da Amazônia
Apuí, o município mais desmatado na Amazônia inteira, foi o maior responsável por puxar o Amazonas para o topo da lista. Do total de alertas no estado em 2022, quase 30% foram no município, que faz divisa com Mato Grosso e Pará. Desde 2017, Apuí bate recordes de desflorestamento. Comparando o primeiro semestre de 2022 com o mesmo período de 2021, a área desmatada mais que dobrou.
Análise inédita do InfoAmazonia e PlenaMata mostra que, do total desmatado no município (341,4 km²), menos de 1% (0,97 km²) aconteceu dentro das unidades de conservação: É um território voltado à manutenção de ecossistemas e de recursos naturais para toda a sociedade e com delimitação, gestão e proteção do poder público (UCs) e quase 2% (54,6 km²) em florestas públicas não destinadas: Território público que nunca pertenceu a um dono ou possuidor privado e que nunca foi destinado pelo poder público (+).
Os assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concentraram 68% (232,9 km²) do total de derrubadas no município. Desses, quase 88% se deu em um único projeto de assentamento: o do Rio Juma, onde está situada a zona urbana de Apuí, nascida a partir de uma agrovila de assentados, nas margens da BR-230, a Transamazônica. Foram 204,9 km² de floresta desmatada.
Mapa do Monitor PlenaMata mostra alertas do Deter no município de Apuí de janeiro a junho de 2022. No mapa, passe o mouse sobre os polígonos em vermelho para ver data de detecção e tamanho da área desmatada.
Foi na beira da Transamazônica que Valdeci Ribeiro, mineiro crescido em Rondônia, desembarcou em 1996, aos 26 anos, carregando uma mala e o sonho da terra própria. A promessa de receber do governo federal um lote no maior projeto de assentamento da América Latina, mais uma ajuda de custo para recomeçar, pareceu irresistível para Ribeiro, sua esposa e o casal de filhos pequenos.
Porém, as dificuldades de viver em uma região isolada não tardaram a aparecer. A malária foi uma delas. “Famílias inteiras adoeciam”, lembra Ribeiro. A distância de 20 km que separava a casa de Valdeci da cidade ganhava outra dimensão diante das condições da estrada. “Os meninos saíam 9h para chegar à escola às 13h”. Os problemas de acesso prejudicavam também o escoamento do excedente da produção familiar, que já não recebia os mesmos incentivos por parte do estado.
O sonho da família Ribeiro durou apenas seis anos. Em 2002, Valdeci decidiu voltar a Rondônia após vender o lote no Rio Juma. “Ali a situação era difícil, e eu precisava dar um futuro para minhas duas crias”, conta. Hoje, aos 52 anos, ele administra um pequeno comércio em Cacoal (RO) enquanto vê os filhos formados e empregados.
A história de Valdeci é semelhante a de muitas outras famílias que receberam lote de terra no Projeto de Assentamento Rio Juma, criado em 1982 para atender a migração de sulistas e sudestinos para várias partes da Amazônia, mas que nunca foi integralmente concretizado. “Devido a diversas barreiras e desafios para o estabelecimento de atividades econômicas, como baixa infraestrutura e ausência de assistência técnica e distância de mercados, os primeiros assentados acabaram vendendo seus lotes para vizinhos ou para migrantes mais capitalizados, iniciando um processo de acúmulo de lotes”, escreveu o pesquisador Pedro Gandolfo Soares, em sua dissertação de mestrado sobre as trajetórias de ocupação e a expansão da fronteira agropecuária no Rio Juma.
Com a saída dos primeiros moradores, houve uma concentração fundiária nas mãos de um grupo menor. Com um pedaço de terra maior, logo descobriram na criação de gado extensiva uma forma de superar os entraves econômicos. A guinada para a pecuária, que substituiu, em meados dos anos 2000, a agricultura familiar e a produção de grãos como principal atividade produtiva, estimulou um novo ciclo migratório, grilagem e desmatamento descontrolado.
A presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apuí, Raimunda Nascimento da Silva, conta que esse processo ganhou força nos últimos anos. “É grande a quantidade de pessoas que têm vindo de outros estados para Apuí. Elas compram a terra a baixo custo e vão fazendo derrubadas para pastagem, sem contar as invasões. Os grandes vêm, derrubam e vão embora. Às vezes só mandam terceiros. Isso acontece intensamente por aqui”, afirma. A população de Apuí saltou de 5.726 pessoas em 1991 para 22.359 em 2020, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo o MapBiomas, 90% das áreas desmatadas no município são hoje ocupadas por pastagens. Os principais pontos de venda e consumo da carne apuiense são Manaus, que recebe o produto pelos rios, e Porto Velho, por meio da Transamazônica. “Atualmente, o epicentro da expansão da agropecuária na Amazônia é o município de Apuí”, disse o pesquisador Pedro Soares.
Para o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, existem políticas e ações diretas por parte do governo federal para estimular o desmatamento, o que explicaria o aumento sucessivo nos índices sul-amazonenses. “O governo paralisou a cobrança de multas ambientais no país. O próprio Bolsonaro chegou a impedir ações de combate à extração ilegal de madeira. É um governo que proibiu os agentes de fiscalização de inutilizar os maquinários de criminosos ambientais, que por diversas vezes perseguiu fiscais por cumprirem sua função e paralisou o Fundo Amazônia. Então não se trata de omissão ou políticas erradas, se trata de um governo que é parceiro da destruição”, disse.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.