Projeto intitulado “Independência Indígena” criou uma cooperativa agrícola para o monocultivo de arroz dentro do território dos Xavante
![](https://infoamazonia.org/wp-content/uploads/2021/08/O-presidente-da-Funai-Marcelo-Xavier-durante-Dia-de-Campo-na-Terra-Indígena-Sangradouro-MT.-Foto-Mário-VilelaFunai.3.jpeg)
Os territórios do povo indígena Xavante, na transição entre Amazônia e Cerrado do Mato Grosso, são como pontos verdes num mar de soja. Mas uma iniciativa do Sindicato Rural de Primavera do Leste, da Funai e do Governo do Estado do Mato Grosso pode estar alterando essa paisagem.
O controverso projeto Agro Xavante criou uma cooperativa agrícola dentro da Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande para o monocultivo de arroz no território dos Xavante. A iniciativa, chamada de “Independência Indígena”, prevê que 80% da produção agrícola fique com os fazendeiros e apenas 20% com os indígenas, explica Hiparidi Top’tiro, liderança da aldeia Abelhinha, uma das 57 aldeias da TI Sangradouro/Volta Grande, e um dos críticos ao projeto.
A empreitada criou uma divisão entre os moradores da TI Sangradouro: “Não podemos admitir que [nosso território] seja dominado por esse projeto. Já perdemos muito do nosso território, de nossa ancestralidade. Vamos defender nosso direito”, afirma Lucio Xavante, que vive na Terra Indígena São Marcos.
A Associação Xavante Warã, organização que atua na defesa dos direitos e territórios do povo Xavante, publicou uma nota de repúdio contra a implantação da cooperativa. “O governo federal está se aproveitando dos indígenas como ‘laboratório’ para a implementação de uma política anti-indígena incentivada pela atual gestão da Funai”, diz o documento.
![](https://infoamazonia.org/wp-content/uploads/2021/08/Placa-com-entidades-vinculadas-ao-projeto-de-independência-indígena-Agro-Xavante.jpg-Lucas-Owa_u.jpg)
Uma das críticas feitas ao projeto Agro Xavante pelos indígenas contrários é em relação ao fato de não ter havido uma consulta livre e informada aos moradores das terras indígenas sobre a implementação da iniciativa, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia aos povos originários.
Não houve uma consulta, é uma reclamação que estamos tendo. O que fizeram foi uma cooptação de lideranças. Hoje estamos em uma guerra internamente
Hiparidi Top’tiro, liderança Terra Indígena Sangradouro.
O governo Bolsonaro tem ameaçado retirar o Brasil da convenção 169 da OIT, o que especialistas consideram como uma condenação dos indígenas ao extermínio.
Também não foi realizado um Estudo de Impacto Ambiental, que avaliaria de que forma o projeto afetaria a vida dos moradores da Terra Indígena Sangradouro. De acordo com Hiparidi, o projeto foi firmado diretamente entre ruralistas e alguns Xavante, sem a realização de nenhum estudo. “Eles estavam falando [que iriam usar] cinquenta hectares [do território para cultivo], mas já desmataram muito mais que isso. Então esse impacto nós estamos sentindo aqui”, explica o indígena. “Esses ruralistas estão nos intimidando e usando os próprios parentes para brigar entre nós. O agronegócio dentro das nossas terras não vai dar certo”.
Funai deve defender direitos dos povos indígenas
De acordo com Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai entre 2013 e 2014, num cenário de realização de obras e empreendimentos de infraestrutura que impactam territórios indígenas, “a Funai deve atuar para defender os direitos desses povos que estão sendo ameaçados e que têm os seus direitos interferidos por obras e empreendimentos de infraestrutura”.
Ela ressalta, também, que a Funai tem um papel de interveniente no processo de licenciamento ambiental. “É fundamental que haja um processo administrativo de licenciamento ambiental, que ele seja transparente e pautado por princípios da legalidade, da publicidade, da transparência e da boa fé.” No caso dos povos indígenas, lembra: “É um dever do Estado brasileiro promover esse processo de consulta livre, prévia e informada. É um direito dos povos indígenas serem consultados de acordo com os termos previstos na Convenção 169 da OIT.”
E tampouco foi realizado um laudo antropológico sobre como o projeto impactaria a cultura Xavante. “Não houve um estudo antropológico, porque os ruralistas acham que não se deve envolver antropólogos. E eles sabem que, se tiver estudo, vai apontar várias coisas e inviabilizaria [o projeto]. Essa questão é super complicada. Estamos lutando, batalhando, para que ele seja feito”, afirma Hiparidi
Segundo Felix Tsiwepitsudu Tseredze, morador da Aldeia Guadalupe na TI São Marcos e vice-presidente da Associação Xavante Warã, “eles estão fazendo isso para os indígenas se dividirem. Para ficar com a ideologia do não-indígena, do agronegócio. Querem que a gente brigue entre nós. Enquanto isso, eles vão estar lucrando dentro das nossas terras”, avalia. “Eles acabam incentivando do lado deles, latifundiários. Eles estão usando novas estratégias de colonização.”
![](https://infoamazonia.org/wp-content/uploads/2021/08/O-presidente-da-Funai-Marcelo-Xavier-durante-Dia-de-Campo-na-Terra-Indígena-Sangradouro-MT.-Foto-Mário-VilelaFunai.2.jpeg)
Apoiador do projeto, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, visitou a terra indígena em abril deste ano, quando disse: “São irmãos da pátria, a pátria é uma só. E nós temos que nos unir pra fazer disso daqui uma grande nação.” Esta fala ecoa um projeto integracionista dos indígenas brasileiros, de exclusão da diferença, que marcou a política indigenista até a Constituição Federal de 1988, e que tem sido retomado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro.
Falta de consenso no MPF-MT
Embora não acompanhe diretamente o caso do projeto Agro Xavante, o procurador da República Ricardo Pael Ardenghi, titular do ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal em Mato Grosso (MPF-MT), chama a atenção para um mecanismo pelo qual a Funai tem operado: “O indígena que quer começar hoje a agricultura, sem financiamento, sem assistência técnica, ele cai de mão beijada nas mãos do agronegócio que quer explorá-lo. E é isso que a Funai faz.”
Pael comenta acerca de outros tipos de iniciativas em que os indígenas produzem para comercialização, independente de alianças com o agronegócio, como é o caso do cultivo de cafés entre os Suruí de Rondônia, e dos famosos bastões de waraná (guaraná), dos Sateré-Mawé, no Amazonas. O que, segundo ele, contraria tanto a Constituição Federal quanto a legislação infraconstitucional são as chamadas atividades mistas entre indígenas e não indígenas. Para Pael, a instrução normativa conjunta 01 da Funai e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de fevereiro deste ano, incorre nestas ilegalidades.
Esse documento visa a regulamentar as atividades agrícolas em terras indígenas, permitindo, justamente, as organizações mistas. O procurador aponta que, de acordo com a Constituição Federal, os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre seus territórios.
Pael explica que “o indígena pode inclusive contratar o tratorista para ir lá arar a terra”, ou contratar qualquer outro tipo de serviço de terceiros. Porém, segundo ele, a Funai denomina esse tipo de contratação como organização indígena mista – o que, em sua interpretação, é errôneo.
“Quando um fazendeiro contrata alguém para fazer a colheita, ou fazer a pulverização, a empresa de pulverização aérea não se torna sócia do fazendeiro”, questiona Pael. Para o procurador, uma organização indígena mista insere um não indígena na tomada de decisões, que passa a auferir algo. “E é isso que não pode, porque o usufruto é exclusivo”, afirma o procurador.
Ricardo Pael compara a situação das terras indígenas, de usufruto exclusivo dos indígenas, com a de outros imóveis da União: “O fazendeiro não pode produzir numa área do Exército, que está lá abandonada, porque é um imóvel federal. A terra indígena também.”
Na prática, a Funai se omite, a Funai se nega a cumprir as suas funções institucionais. E diz pro mundo que a única opção dos indígenas são os fazendeiros, que estão ali para ficar com a maior parte da produção
Ricardo Pael Ardenghi, procurador da República no Mato Grosso.
Entretanto, este entendimento de Ricardo Pael não é consenso entre os procuradores da República que atuam no Mato Grosso. Para Éverton Pereira Aguiar Araújo, procurador em Barra do Garças (MT), responsável por acompanhar o projeto Agro Xavante, o raciocínio é outro. Para ele, a “TI Sangradouro encontra-se em uma situação de abandono e vulnerabilidade social”. Ele considera projetos de etnodesenvolvimento como uma “questão de sobrevivência da comunidade”.
Ainda segundo o procurador Éverton Pereira, foi por este motivo que o MPF-MT fez a recomendação de que “a União promovesse a implantação, no prazo de 45 dias, de projeto de gestão ambiental e territorial na Terra Indígena Sangradouro”. Como a recomendação do MPF não foi acatada pela Funai, o MPF-MT ingressou com uma ação civil pública, que está em trâmite em Barra do Garças (MT).
![](https://infoamazonia.org/wp-content/uploads/2021/08/Indígenas-Xavante-protestando-em-Brasília.-Crédito_-Newiwe-Toptiro.jpg)
Quanto ao projeto Agro Xavante, o procurador afirma que “o MPF em Barra do Garças/MT notificou a comunidade indígena para saber sua posição em relação ao projeto em questão e se houve consulta aos membros da comunidade”. A resposta, segundo ele, foi apresentada por “caciques da TI Sangradouro sustentando que o projeto se trata de uma posição tomada pela comunidade com base na sua autodeterminação”.
De acordo com o procurador Éverton Pereira, “a comunidade defende que o projeto é uma forma de amenizar a situação econômica e proteger sua cultura”.
A reportagem questionou então se foram realizados estudos de impacto ambiental que atestem a viabilidade e sustentabilidade do projeto, assim como um laudo antropológico que indique que o projeto Agro Xavante auxiliaria os indígenas a proteger sua cultura. O procurador foi também questionado se existem casos de sucesso em que a instauração de monocultivos de arroz em comunidades tradicionais (ribeirinhas, indígenas, quilombolas ou de agricultores familiares) tenha gerado uma melhora na qualidade de vida dessas pessoas, e ainda se haverá uso de agrotóxicos no cultivo do arroz dentro das terras indígenas e se serão os indígenas que farão a aplicação.
Por fim, a reportagem também questionou se o projeto não seria inconstitucional, tendo em vista que as terras indígenas são de “usufruto exclusivo” dos indígenas. Frente a esses questionamentos, a assessoria de imprensa afirmou em nota que “o MPF não tem mais informações a acrescentar”.
O governo do Estado do Mato Grosso não respondeu às questões enviadas pela reportagem. A Secretaria Especial para Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, a Funai e o Sindicato Rural de Primavera do Leste também não responderam às questões enviadas pela reportagem.
Esta reportagem foi produzida em parceria com O Joio e O Trigo.
Imagem abertura: presidente da Funai e indígenas Xavante no ‘Dia de Campo’, na Terra Indígena Sangradouro (MT). Foto: Mário Vilela/Funai