Unidades de conservação nacionais de proteção integral da Amazônia abrigam 441 registros de atividade mineradora.
A Agência Nacional de Mineração (ANM) tem em seu sistema 441 registros de processos minerários dentro de unidades de conservação nacionais (UCs) de proteção integral na Amazônia, segundo um levantamento feito até o dia 01 de novembro de 2019. São registros ilegais e que deveriam ter indeferimento imediato, de acordo com a legislação brasileira. Esse é o resultado do cruzamento de dados feito no mapa Amazônia Minada com informações da ANM e do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio). Amazônia Minada é um projeto apoiado ao Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ) em parceria com o InfoAmazonia.
Foram encontrados processos minerários em 31 das 41 UCs de proteção integral no bioma Amazônia. São unidades com restrição ambiental mais severa e onde não é permitido qualquer tipo de mineração, segundo a lei federal nº 9.985/2000, conhecida como a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
Com 40 registros protocolados até o final outubro de 2019, o primeiro ano do governo do presidente da República Jair Bolsonaro deve ter o maior número de requerimentos de mineração dentro de UCs de proteção integral na Amazônia nos últimos quatro anos. Há 41 processos minerários no ano passado, 40 em 2017 e 23 de 2016. A ANM tem 51 casos protocolados em 2015.
Bolsonaro defende publicamente a mineração na Amazônia, discurso acompanhado por sua equipe, principalmente pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que disse que a maior floresta tropical do mundo precisar ser “monetizada”, em entrevista ao jornal inglês Financial Times em agosto deste ano.
Cada registro de mineração possui uma área a ser pesquisada, alvo de lavra ou garimpo. A soma das áreas informadas nos 436 registros da ANM dentro de UC de proteção integral na Amazônia é de 17 mil km², o suficiente para cobrir 11 vezes a cidade de São Paulo.
Empresas são responsáveis por 352 pedidos, outros 89 foram feitos por pessoas físicas e em três processos não há dados cadastrados. Em 71 casos a empresa ou o responsável pelo registro não tem qualquer envolvimento com a atividade mineradora.
Gigantes globais do setor de mineração, algumas responsáveis por desastres ambientais recentes no Brasil, como a Vale, a Anglo American, a Norsk Hydro e a Glencore Xstrata estão entre as empresas autoras de processos minerários dentro de UCs de proteção integral da Amazônia. Há ainda requerimentos feitos por servidores públicos e pessoas acusadas pelo Ministério Público Federal (MPF) por crimes ambientais e lavagem de dinheiro, como mostra reportagem do site The Intercept Brasil feita a partir da base de dados do Amazônia Minada.
Os processos de estudo ou lavra são feitos pelas próprias empresas ou representantes e adicionados automaticamente no sistema da ANM. Após discussões sobre a validade de novos pedidos e registros anteriores à criação das UCs ou mesmo da lei do SNUC, um parecer da procuradoria jurídica da ANM publicado em 2010, época em que o órgão ainda se chamava Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), determina que requerimentos minerários dentro de unidades de conservação de proteção integral sejam negados sem necessidade de análise, e que títulos e autorizações anteriores à criação das UCs sejam arquivados após procedimento administrativo.
A importância da Amazônia protegida
O Brasil possui mais de 2,2 milhões de km² de áreas protegidas, cerca de 12,4% do total de regiões protegidas do mundo, segundo dados do site Protected Planet. Esses números são citados ainda em um artigo assinado pela pesquisadora Joice Ferreira e outros cientistas, publicado na revista Science em 2014, que trata sobre riscos ao papel de destaque global do Brasil sobre meio ambiente, entre eles a mineração em áreas protegidas.
Pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental em Belém (PA) e pós-doutora em ecologia pela Universidade de Cambridge, Ferreira estuda o ecossistema da região amazônica há mais de 20 anos e cita a importância das unidades de conservação para preservação da fauna e da flora, além do impacto que a mineração pode trazer para as comunidades locais.
“A exploração do minério não é apenas no local, ela traz uma série de consequências. Quando instalam uma mina nessas regiões também fazem estradas para chegar até o local. Essas vias são vetores de desmatamento e de queimadas. Há estudos que apontam que a recuperação dessas áreas demora mais de 30 anos para ser realizada”, explica Ferreira.
De acordo com o trabalho de pesquisa liderado por Joice Ferreira, o desmatamento em UCs chega a ser entre sete e 10 vezes menor do que em regiões fora das áreas de proteção. Isso ajuda a entender como essas áreas protegidas são importantes para a preservação da Amazônia.
Mais de 70% dos registros de mineração com alvo em UCs de proteção integral na Amazônia é para procurar ouro. Essa preferência tem um efeito negativo na saúde das populações ribeirinhas por causa do uso de mercúrio da lavra do ouro. O metal líquido se une com o ouro e essa propriedade é utilizada para encontrar e separar o minério após a extração de solo de barrancos ou leitos de rio.
O médico Erik Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, e a professora Heloísa de Moura Meneses, do Instituto de Saúde Coletiva (Isco) da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), participaram em abril deste ano em uma audiência pública da Comissão de Meio Ambiente na Câmara de Deputados, onde explicaram que níveis elevados de mercúrio foram encontrados em análises de sangue de moradores da região do rio Tapajós, no oeste do Pará.
Os pesquisadores detalharam no Congresso que a cadeia do mercúrio vai do garimpo até a mesa da população. A substância é bastante utilizada em garimpos na lavra de ouro. Despejado em rios, o mercúrio é ingerido por peixes que posteriormente são consumidos pelos moradores. Eles citaram ainda que pesquisas médicas indicam que os níveis altos de mercúrio no sangue estão relacionados a casos de autismo, más-formações congênitas e doenças cardiovasculares.
Omissão do governo incentiva ilegalidades
A falta de servidores no principal órgão de fiscalização da mineração do país é um dos entraves para o controle do setor. De 522 registros obtidos pelo mapa Amazônia Minada, apenas 81 tiveram indeferimento registrado no andamento, como prevê o regimento legal da ANM. A agência possui hoje menos da metade do número necessário de servidores para operar e isso afeta setores de fiscalização e de análise de requerimentos minerários. Casos que deveriam ter indeferimento imediato passam anos tramitando na agência.
A existência de títulos minerários e requerimentos dentro de UCs de proteção integral na Amazônia servem como argumento para pressões de empresas que pretendem desafetar áreas de unidades para extrair minério.
Em nota, o MPF no Pará, que integra da força-tarefa Amazônia, reforça que “a legislação atual proíbe a exploração mineral em Unidades de Conservação de proteção integral. Atos administrativos que desrespeitem essa proibição são ilegais”. Sobre a existência de processos minerários dentro de UCs de proteção integral tramitando na ANM, a nota do MPF afirmou que “é possível que haja pressões por desafetações” realizadas por empresas que possuem esses tipos de registros.
O especialista em Políticas Públicas da ONG WWF-Brasil, Jaime Gesisky, coordenou um estudo sobre mineração em UCs e terras indígenas no passado e observa a falta de estrutura e iniciativa do poder público em impedir novos registros dentro de áreas preservadas.
“Esse trabalho de reunir as bases de dados e encontrar registros irregulares de mineração é do governo, mas ele não faz isso. Percebemos que há uma estrutura pobre nos órgãos de controle e isso ajuda a quem está mal intencionado. No final, o que vemos é que quem tem um título mineral dentro área de proteção integral usa isso para pressionar politicamente um futuro desmembramento da unidade”, diz Gesisky.
Sob condição de anonimato, para evitar retaliações do governo, servidores do ICMBio relataram à reportagem dificuldades e falta de estrutura para fazer a gestão das UCs, sendo 14 ainda sem plano de manejo, documento legal que detalha prioridades de preservação e como administrar a unidade. As três UCs de proteção integral que mais recebem registro de atividade mineradora não possuem o plano. São o Parque Nacional Mapinguari, com 89 registros; Estação Ecológica Jari, 42; e Parque Nacional Jamanxim, 39.
Desde 2015 o Ministério Público Federal (MPF) nos estados da Amazônia tem atuado através de ações civis contra empresa mineração com atividade dentro de UCs. Em 2018 foi criada uma força-tarefa do MPF para apurar ilegalidades relacionados à mineração na região. Duas ações já foram apresentadas e focam na cadeia produtiva da venda de minério ilegal.
Um projeto de lei de 2012 (n° 3.682) da Câmara chegou a propor uma permissão de mineração em até 10% do território de UCs de proteção integral, mas o texto foi arquivado em 2015. Para a pesquisadora Joice Ferreira, a ampliação de qualquer atividade mineradora para essas áreas deveria ser discutida com a sociedade de forma mais aberta.
“Há casos de projetos de lei tramitando no Congresso que pretendem mudar uma série de conquistas que tivemos com a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, uma legislação aprovada em 2000 e que teve mais de 10 anos de discussão. Então o que defendo é que se tiverem que mudar algo sobre a proteção de UCs, que isso seja amplamente debatido com a sociedade”, diz a pesquisadora.
Silêncio dos órgãos federais
Os ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia não responderam aos pedidos de entrevistas encaminhados pela reportagem. A assessoria de imprensa da ANM também não retornou os pedidos de entrevista e informações feitos pelo InfoAmazonia.
Por Lei de Acesso à Informação, a ANM respondeu que os processos de concessão de lavra estão “sem atividade mineral, a maioria desde 1985, embora estejam ativos no sistema”. Sobre as permissões de lavra garimpeira, a ANM informa que estão ativas apenas as que possuem “licença ambiental atualizada”.
O que é projeto Amazônia Minada
O cruzamento de dados que possibilitou encontrar 441 registros de mineração dentro de UCs de proteção integral faz parte do projeto Amazônia Minada, trabalho vencedor de uma bolsa de inovação em jornalismo de 2019 do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), sediado em Nova York, com financiamento do Wall Street Journal. O projeto tem a parceria para publicação do InfoAmazonia.
O projeto Amazônia Minada tem um mapa interativo que mostra em tempo real as atualizações de novos registros de mineração dentro de UCs de proteção integral na Amazônia, e ainda um perfil automatizado no Twitter. A cada novo registro que aparece no mapa, um tweet com informações sobre a empresa, o tipo de minério e a unidade de conservação afetada é publicado na conta oficial do mapa: @amazonia_minada.
O mapa acompanha os registros nas 41 unidades de proteção integral da região amazônica. Destas, em 31 foram encontrados requerimentos de mineração. Filtramos ainda os registros a partir do ano de criação de cada unidade e então retiramos os pedidos já indeferidos pela ANM, procedimento que deveria ser imediato para novos requerimentos, de acordo com um parecer jurídico do próprio órgão.
Casos de concessão de lavra foram mantidos na pesquisa mesmo sendo anteriores à criação das UCs por ainda tramitarem no sistema da ANM. Muitos registros encontrados pelo mapa são em áreas que margeiam os limites das UCs. De acordo com as coordenadas informadas no banco de dados da ANM, em algum ponto há interseção com a área de uma UC. Segundo a resolução do Conama número 428/2010, é preciso autorização do ICMBio para atividades mineradoras até 3 km de distância de UCs de proteção integral que ainda não possuem plano de manejo.
Equipe do projeto Amazônia Minada: Hyury Potter (coordenação e reportagem); Rodrigo Brabo (desenvolvedor de programação); Juliana Mori (visualização de dados em mapa) e Gustavo Faleiros (co-fundador do InfoAmazonia) e e Amara Aguilar (mentora ICFJ).