Análise exclusiva da InfoAmazonia revela que a abertura de novos pastos em terras indígenas passou de 13 mil hectares por ano para 38 mil hectares entre 2018 e 2021 – crescimento recorde em 37 anos. Avanço atende a demandas de frigoríficos e grilagem de terras.
Marcio Boritza usa as redes sociais para registrar o seu dia a dia na Fazenda Sol Nascente, no norte de Mato Grosso, onde reproduz novilhos que são anunciados pela internet. Uma rotina aparentemente comum, se não fosse pelo fato de que o gado está ilegalmente dentro da Terra Indígena Piripkura, onde vivem os últimos sobreviventes isolados da etnia em uma área de floresta cada vez menor.
Situação semelhante aos isolados da Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará, onde 11 mil hectares de florestas foram transformados em pasto entre 2016 e 2021.
Na Terra Indígena Marãiwatsédé, também no Mato Grosso, a pressão para criar gado é tão grande que 66,6% do território foi transformado em pastagem.
O pasto também cresceu nos territórios: Kayabi, onde o STF abriu pela terceira vez um pedido de conciliação com fazendeiros acusados de invasão; no território Karipuna, onde o roubo de madeira e o desmatamento bateram recordes nos últimos anos; no Yanomami, que enfrenta profunda crise humanitária; e também no Uru-Eu-Wau-Wau, e no Kayapó.
Entre 2018 e 2021, 114 mil hectares de terras indígenas desmatadas viraram pasto. Nesse período, 316 territórios da Amazônia Legal registraram abertura de áreas para criação de gado ilegal, e mais de 70% das novas pastagens estão concentradas em apenas 15 terras indígenas da Amazônia Legal.
A reportagem da InfoAmazonia analisou dados de pastagem de 1985 a 2021 da rede MapBiomas, que faz o monitoramento via satélite da cobertura e uso do solo, e concluiu que esse foi o maior crescimento das áreas de pastagem em terras indígenas nos últimos 37 anos.
O ritmo de crescimento das pastagens quase triplicou de 2018 a 2021, com uma média anual de 38 mil hectares, contra 13 mil hectares no período anterior, de 2014 a 2017.
A área de pasto analisada pela reportagem se refere exclusivamente a áreas antropizadas, ou seja, que foram transformadas por ações humanas, como desmatamento ou queimadas. A InfoAmazonia cruzou esses dados com outras informações para investigar as causas e os principais atores envolvidos nessa transformação dos territórios.
Analisamos o pasto em áreas embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), nas áreas de avisos de desmatamento do MapBiomas Alerta e nos limites de propriedades rurais do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) e do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Além de atender a demanda dos frigoríficos por carne, a expansão das pastagens em terras indígenas também está ligada a práticas de grilagem, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.
A criação de gado por terceiros em terras indígenas é proibida pela Constituição de 1988, no seu artigo 231, que diz que essas áreas “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Média anual de novas pastagens em terras indígenas por períodos
Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas, destaca que as terras indígenas têm papel fundamental na preservação da floresta e “mesmo apresentando crescimento acima da média nos últimos anos, as pastagens em terras indígenas estão expandindo em áreas mais próximas dos limites territoriais [nas bordas]”.
Segundo o especialista, a expansão das áreas de pecuária nos territórios não segue o mesmo padrão do que acontece em outras áreas desmatadas da Amazônia, como nas florestas públicas não destinadas : São áreas sob domínio do governo federal ou de algum governo estadual e que ainda não receberam destinação para se consolidar como terra indígena, unidade de conservação ou outro tipo de área. Essas áreas são as mais desmatadas e griladas na Amazônia., onde “existe uma sequência da invasão que retira a madeira, planta pasto e depois converte em agricultura”.
Nas terras indígenas, Rosa observa que a conversão de áreas desmatadas em pastos nem sempre é imediata e muitas vezes está relacionada a outros fatores, como invasões facilitadas por portarias durante períodos próximos à renovação da proteção, ou em áreas pouco fiscalizadas. Dessa forma, pode haver um intervalo grande entre a invasão, o desmatamento e a abertura da pastagem.
“Esse padrão indica que um aumento da fiscalização e apreensão de produtos do crime pode surtir um efeito rápido para conter esse avanço”, explica Marcos Rosa.
Lavanderia de gado
Para criar o gado ilegalmente em terras indígenas, os grileiros recorrem a estratégias para mascarar a origem dos rebanhos. “Usa a terra indígena para criação e na venda transporta para outra propriedade fora”, explica a ecóloga Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas no Brasil. Esse processo é conhecido como “lavagem de gado”, manobra que movimenta os animais entre várias propriedades até ele ser vendido por uma fazenda legalizada.
Nossa reportagem identificou 940 áreas embargadas em terras indígenas da Amazônia, com multas milionárias aplicadas aos responsáveis. Mas em vários casos, as ilegalidades permanecem e se alastram, consumindo cada vez mais floresta e recursos naturais.
Em 2009, investigações do MPF e do Ibama revelaram que grandes frigoríficos e redes de varejo estavam comercializando gado com origem no desmatamento ilegal da floresta.
Isso obrigou grandes fornecedores de carne que atuam na Amazônia– como JBS, Marfrig e Minerva – a assinarem o Termo de Gerenciamento e Conduta da Carne (TAC da Carne), para evitar a compra de gado ilegal e frear o desmatamento.
Evolução da área de pastagem nas terra indígenas
No entanto, o controle das empresas e do próprio poder público têm se demonstrado insuficientes, aponta Paulo Barreto, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
“O setor privado, o mercado varejo, bancos e frigorífcos, todos, querem descolar suas imagens do desmatamento ilegal, mas não conseguem criar um sistema que verifique de forma robusta a procedência dos produtos que comercializam e financiam. Não se controla as chamadas fazendas de criação [que fazem a reprodução dos animais] em terras indígenas”, aponta o pesquisador.
Estudos do Imazon apontam que, mesmo após o TAC da Carne, grandes frigoríficos seguiram comprando gado com origem em terras indígenas e áreas embargadas na Amazônia. Barreto destaca que o aparente desinteresse da indústria da carne em certificar a origem dos animais encontrou uma “total conivência” na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“O governo de Bolsonaro sinalizou muito forte com promessas de que iria liberar o uso de terras indígenas para produção de pecuária extensiva, ele tentou através de projetos de lei (como o PL191/2020, que pretendia liberar a exploração dos territórios por projetos de mineração e agropecuária), mas não conseguiu. E, mesmo não tendo aprovado essa medida, o discurso do presidente por si só já teve um efeito direto no campo, as pessoas invadiram com a promessa de que o governo iria regularizar”, explica.
Dados do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), reativado na atual gestão do governo Lula (PT), apontam que cerca de 12% das cabeças de gado vendidas diretamente aos frigoríficos de Mato Grosso e Pará provêm de imóveis com evidência de desmatamento ilegal. Mas esse dado é somente dos fornecedores diretos e, não há estimativas de quanto o gado ilegal vendido de forma indireta representa na cadeia de produção dos frigoríficos.
Além de flagradas nas fiscalizações dos órgãos ambientais, a ilegalidade também está registrada nas Guias de Trânsito Animal (GTAs) e em dados sanitários que controlam as áreas livres de aftosa, uma exigência dos grandes compradores internacionais.
“Esses dados são geridos pelo Ministério da Agricultura e são para o controle sanitário animal. Eles [Ministério da Agricultura] dizem que não abrem estes dados e não utilizam para fins de punição porque haveria descontrole e colocaria a questão sanitária em risco. Esses dados deveriam ser utilizados em conjunto com o Meio Ambiente para frear as ilegalidades”, destaca Barreto.
A Fazenda Sol Nascente, que segundo o MPF cria gado ilegal na TI Piripkura, por exemplo, aparece entre os estabelecimentos inspecionados pelo controle sanitário do Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso.
Pasto político no Pará
Na Terra Indígena Ituna-Itatá, na bacia do médio Xingu, Pará, até 2013 praticamente não havia nem pasto, nem desmatamento. Em apenas quatro anos, entre 2018 e 2021, foram abertos o equivalente a mais de oito mil campos de futebol em pastagens para criação de gado: 8,7 mil hectares.
O Ibama aponta Jassonio Costa Leite como responsável pela cicatriz que se abriu no território. O empresário do Tocantins teria invadido a terra indígena quando a portaria de restrição de uso, que protege o território desde 2011, estava próxima de vencer, em 2021. Por esta infração, foi multado em R$ 105 milhões. Em abril do mesmo ano, Jassonio Leite foi registrado como visitante no Palácio da Alvorada.
A proteção aos indígenas expirou e na época, sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) se recusou a renovar a portaria.
O senador Zequinha Marinho (PL) foi um dos articuladores em Brasília para deslegitimar o direito dos indígenas sobre o território e garantir a permanência dos invasores na área. O senador gravou vídeo ao lado de Jassonio Leite e chamou os fiscais do Ibama de “bandidos e malandros”.
Por força da legislação, que garante usufruto pleno e exclusivo dos indígenas sobre seus territórios, nenhum imóvel privado pode ser registrado nestas áreas. No entanto, por ser autodeclaratório, muitos grileiros usam o CAR para pressionar comunidades e tentar legitimar eventuais processos de regularização fundiária.
Evolução do pasto na Terra Indígena Ituna-Itatá
Na Ituna-Itatá, a análise da reportagem revelou que praticamente todo o território possui pedido de registro no CAR, divididos em 249 cadastros diferentes.
Terra Indígena Ituna-Itatá
Isolados e cercados
“O gado serve como ferramenta de legitimação da ocupação ilegal, ele dá uma espécie de poder aos invasores de que vai garantir a posse da área. É comum nesses casos eles se declararem como pequenos produtores e que aqueles bois são os únicos que eles têm”, afirma Tiago Moreira, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA).
O pesquisador acompanha de perto a situação na Terra Indígena Piripkura, onde grandes fazendas se instalaram nos últimos anos. Segundo Moreira, “mesmo com decisões favoráveis [para retirada dos invasores], o desmatamento continuou e os invasores continuaram lá dentro”.
Para o pesquisador, o aumento do desmatamento e da conversão das áreas florestais em pastagens em terras com povos isolados, não é mera coincidência – está relacionado à fragilidade do Estado em garantir a proteção desses territórios.
Como exemplo, o antropólogo cita a Instrução Normativa 09/2020, que permitiu o registro de imóveis rurais em terras indígenas ainda em processo de demarcação, o que, segundo ele, estimulou ainda mais as invasões e os casos de conflitos. Entre 2020 e 2022, foram registrados 302 imóveis rurais sobrepostos a terras indígenas da Amazônia em nome de não indígenas, segundo dados do Sigef analisados pela reportagem.
Em 2021, a Justiça Federal no Mato Grosso declarou nula a portaria. Segundo o MPF, ela “representava retrocesso na proteção socioambiental, incentivava a grilagem de terras e conflitos fundiários, além de restringir indevidamente o direito dos indígenas às suas terras”.
Elo da cadeia bovina
Márcio Boritza, o pecuarista que abre essa reportagem, é um exemplo de como a demanda dos frigoríficos absorve o gado criado em terras indígenas.
Entre 2008 e 2021, Boritza foi multado sete vezes e teve quatro áreas embargadas dentro da Terra Indígena Piripkura. Ele acumula R$ 1,5 milhão em infrações ambientais. Foi multado, inclusive, por descumprir os embargos e manter animais na área.
Em mensagens trocadas com a reportagem, Boritza afirmou que tem pelo menos 120 novilhos na Fazenda Sol Nascente, em uma região “difícil (de) chegar”. A fazenda está localizada dentro da TI Piripkura, segundo a Justiça. Mas Boritza nega.
Segundo o pecuarista, os touros reprodutores usados na fazenda são da Nelore Jaburi, que realiza leilões de gado em diversas regiões do país e é especializada na venda de touros e matrizes.
Em um dos vídeos publicados por Boritza em suas redes, o perfil da Jaburi interage e escreve: “Bora produzir bezerros e bezerras de qualidade”
O Ministério Público Federal (MPF) move ação contra Boritza e outros seis fazendeiros ilegais no território. Em 2021, a Justiça ordenou a retirada das fazendas e do gado, mas os invasores recorreram. Segundo a denúncia, os acusados ocuparam a região “inclusive com apoio policial”.
Por meio de assessoria, o procurador federal Ricardo Pael Ardenghi, autor da ação contra Boritza e outros fazendeiros que se instalaram dentro da TI Piripkura, informou que a decisão para retirada dos invasores foi reformulada pela Justiça Federal, após embargos da defesa dos acusados, suspendendo a reintegração. Segundo a procuradoria, a suspensão aconteceu para evitar que a ação pudesse afetar os indígenas, ficando mantida a proibição da criação de gado sem autorização legal e ampliação da área ocupada.
“Por ora, fica determinada, apenas que sejam intimados os réus acerca da necessidade de paralisarem suas atividades”, aponta a decisão. E ainda orienta a implantação de “um cordão de isolamento a ser delimitado pela Funai, conforme sua discricionariedade técnica e indigenista, a fim de que os índios isolados da etnia Piripkura estejam a salvo da convivência com os não índios que permanecem na área.”
Em outubro de 2022, o MPF fez novo pedido para retirada dos invasores da área ocupada pelos indígenas, mas ainda aguarda julgamento.
25 mil animais
O desmatamento para abertura de pastagens não é exclusividade das terras indígenas em processo de demarcação. Territórios homologados também têm sido pressionados nos últimos anos.
Demarcada em 1991, com 1,8 milhões de hectares e área em 12 municípios, a TI Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW) tem um longo histórico de invasões e grilagens que remontam à década de 1970. Entre 2013 e 2016, o território chegou a registrar uma redução de mais de 2,3 mil hectares na área de pasto. No entanto, uma nova ofensiva de invasões fez o desmatamento disparar nos últimos anos.
Entre 2018 e 2021, foram abertos 4,8 mil hectares de pasto no interior da terra indígena, que tem mais de 34 mil hectares (1,8%% do total) cobertos por pastagem – uma área três vezes maior que a da cidade de Paris.
Ao norte da terra indígena, a região conhecida como Burareiro é estratégica para os criadores de gado que abastecem frigoríficos da região. Um levantamento do Centro para Análises de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis–, na sigla em inglês), que investigou a origem do desmatamento na Uru-Eu-Wau-Wau, contabilizou um rebanho de 25.482 animais ilegalmente dentro da TI em 2022.
O estudo compõe a primeira denúncia na Justiça da França com base na lei “dever de vigilância”, instituída em 2017 e que exige monitoramento socioambiental das cadeias produtivas das maiores empresas daquele país.
A denúncia aponta que o gado criado na TIUEWW passou por fazendas do entorno e abasteceu a rede francesa de supermercados do grupo Casino Guichard-Perrachon, que no Brasil controla Pão de Açúcar, Assaí e Extra Hiper.
Se for condenado, o grupo francês poderá ter que pagar indenização pelos danos ambientais, sociais e materiais causados aos indígenas.
Virginia Miranda, coordenadora do Conselho Indigenista Missionário em Rondônia (Cimi-RO), diz que o aumento da pressão nos territórios do estado é reflexo da falta de controle da ocupação no entorno, onde a floresta tem sido consumida de forma desenfreada.
“São milhões de hectares de fazendas cercando as terras indígenas, que além de pressionar o território em si, causam uma série de outros problemas, como roubo de madeira, contaminação por agrotóxicos e assédios para legitimar as invasões”, afirma.
Pastagem na TI Uru-Eu-Wau-Wau
A indigenista aponta que, diferente das unidades de conservação, as terras indígenas não possuem a chamada zona de amortecimento: Área no entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade. As zonas de amortecimento estão configuradas num raio de 2 km do limite da UC, que tem a função de reduzir os impactos ambientais sobre as áreas protegidas.
Em 2020, o governador Marcos Rocha (PL) disse a um grupo de produtores rurais que o estado de Rondônia tem “excesso de reservas”. Na época, Rocha prometeu atuar em conjunto com o governo Bolsonaro para reduzir as áreas protegidas.
Em 2021, Rocha sancionou o Projeto de Lei Complementar 80/2020 e reduziu as áreas do Parque Estadual Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista Jaci Paraná (Resex), que junto com as TIs Uru-Eu-Wau-Wau e Karipuna formam um mosaico ecológico de proteção em um dos estados mais desmatados da Amazônia. Na justificativa da lei constava que havia mais de 120 mil cabeças de gado nas UCs.
Agora, com a abertura de novas áreas de pastagem, esse gado avança na direção da TI Karipuna.
Até 2015 não existia pasto na TI Karipuna. Em 2021, segundo análise da reportagem, o pasto já ocupava 3,5 mil hectares do território.
O desmatamento e a pastagem chegaram no território “muito rapidamente”, explica a liderança indígena Adriano Karipuna, que tem denunciado recorrentemente as invasões do território. “Eles desmatam, queimam e plantam o capim para o gado”.
Em 2022, a TI Karipuna foi a mais desmatada entre as 69 terras indígenas que estão no entorno da BR-319.
Em 2020, o MPF de Rondônia ingressou com ação civil pública para condenar o IDARON (Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia) a não emitir mais autorização para transporte de animais com origem na terra indígena.
A Justiça Federal chegou a conceder liminar e suspendeu a emissão de GTAs de propriedades rurais no interior da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Mas, segundo informou o MPF, “a decisão foi retificada”, permitindo que ocupantes dentro do território seguissem fazendo transporte de animais dentro do território com uso das guias. O MPF em Rondônia recorreu, mas ainda sem decisão.
Maior pasto em terra indígena
Em setembro de 2022, a Justiça Federal bloqueou R$ 667,2 milhões em bens de pecuaristas que arrendavam, de forma ilegal, áreas no interior da Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, no Mato Grosso. A Justiça Federal também determinou a proibição da exploração econômica das áreas no interior da TI Marãiwatsédé, sob pena de multa diária no valor de R$ 5 mil para cada arrendatário.
Segundo as investigações da Polícia Federal, o ex-presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, ofereceu apoio a um dos servidores do órgão que foi preso na operação, sob acusação de cobrar propina para alugar pastos ilegalmente na terra indígena.
A TI Marãiwatsédé tem a maior área de pasto dentro de terras indígenas no país, com 110 mil hectares, mais de 66% do território.
Por mais de 20 anos, entre 1992 e 2012, a TI Marãiwatsédé foi ocupada por fazendeiros distribuídos em 22 propriedades que ocupavam um terço da terra indígena. Os invasores resistiram à homologação do território e houve confrontos durante o processo de desintrusão. Caciques, autoridades, missionários e até o prefeito do município do Alto da Boa Vista foram ameaçados de morte.
O coordenador regional do Cimi em Mato Grosso, Gilberto Vieira dos Santos, diz que, na falta de uma política de Estado, os indígenas foram cooptados e empurrados para ilegalidades, como o arrendamento de terras para não indígenas.
“A desintrusão ocorreu em 2012, mas houve um vácuo e a partir de 2017 esse processo de arrendamento de terras se intensificou. Não houve, por parte do governo, nenhum encaminhamento concreto para um projeto de sustentabilidade que pudesse contribuir para o desenvolvimento da região”, aponta Santos.
Segundo o indigenista, a situação na TI Marãiwatsédé é tão complexa que, sob forte pressão dos latifundiários locais, os próprios indígenas têm medo de que a retirada das fazendas da região impacte diretamente a vida da população local.
Grandes negócios
O primeiro processo administrativo para demarcação do território Kayabi, entre Mato Grosso e Pará, foi instaurado em 1982, mas a homologação levou mais de três décadas, e só ocorreu em 2013.
Após a homologação da terra indígena, o pasto diminuiu por sete anos seguidos, chegando a reduzir 2,7 mil hectares (8,7% do total). No entanto, em 2021, as áreas de pastagem voltaram a crescer, principalmente no lado de Mato Grosso, onde estão localizadas as fazendas da Agropecuária Vale do Ximari, que até o ano passado era controlada pelo fundo canadense Brookfield.
Pastagem na Terra Indígena Kayabi
Além dos Kayabi, o território também é reconhecidamente ocupado pelos Munduruku e Apiaká.
A Agropecuária Ximari é uma das que trava uma batalha contra os indígenas alegando invasão de suas fazendas. Em 2011, a 3ª Vara Federal de Mato Grosso negou pedido de reintegração de posse da agropecuária. Mas a empresa ingressou com novo processo, em 2015, desta vez contra a Funai, na Comarca de Sinop (MT), onde aguarda julgamento.
Entre 2005 e 2011, o Ibama embargou 64 áreas dentro da terra indígena e aplicou R$ 157 milhões em multas ambientais. Identificamos 44 pedidos de CAR ativos e que reforçam a intenção de se ocupar o território.
O campeão de autuações na Terra Kayabi é o pecuarista Jair Roberto Simonato, dono do abatedouro Frigobem, multado em R$ 31 milhões por infrações ambientais. Em 2020, Simonato foi multado por criar gado ilegalmente dentro da terra indígena. Segundo consta no auto de infração, os animais foram flagrados na Fazenda Santa Laura do Chibanti, que já estava embargada. Uma reportagem da Agência Pública, de agosto de 2020, mostrou que animais criados ilegalmente nas fazendas de Simonato abasteceram frigoríficos da JBS.
Nas mãos do Supremo
Em fevereiro do ano passado, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), reabriu pela terceira vez um pedido de conciliação com a Agropecuária Ximari e outros fazendeiros inconformados com a demarcação da TI Kayabi.
Os interesses agora são representados na ação movida pelo governo do estado de Mato Grosso, que aponta a existência de áreas tituladas para terceiros na terra homologada. O estado argumenta que o objetivo da ação é “conferir segurança jurídica a atos realizados há mais de sessenta anos”, se referindo a possíveis datas de titulação de áreas naquela região pelo Estado.
“A presente ação já está na terceira tentativa de conciliação. As duas primeiras restaram obstadas por manifestação contrária do Ministério da Justiça, Funai, União e Procuradoria-Geral da República”, argumenta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil(APIB) em pedido de agravo contra a decisão de Toffoli.
A Procuradoria-Geral da República pediu para que se aguarde o julgamento final sobre a tese do marco temporal, ainda sem previsão de retornar ao plenário do STF, para retomar o pedido de conciliação.
E no caso do território Kayabi, o tempo tem sido um aliado histórico dos invasores.
Na manifestação ao STF, a defesa dos indígenas ainda informa que “os invasores planejam fazer um grande loteamento na área de Mato Grosso, a fim de inviabilizar a completa regularização fundiária da terra e criar uma situação de caos. Por isso, o pedido precisa ser reconsiderado, antes que seja tarde demais e a extrusão se torne penosa e praticamente impossível”.
O documento de 67 páginas, que conta a versão dos indígenas sobre o tortuoso processo de reconhecimento do território e contesta qualquer possibilidade de nova conciliação, até hoje não foi analisado pelo STF.
A InfoAmazonia buscou contato com todos os citados nesta reportagem. Jassonio Leite e jair Simonato não retornaram aos pedidos de entrevista.
O grupo Brookfield informou que “vendeu a totalidade de sua participação acionária na Agropecuária Vale do Ximari em janeiro de 2022, já não constando a referida participação no último Formulário de Referência apresentado este ano”.
A fazenda, agora, passou para as mãos de Carlos Arruda Garms Neto e Marcos Fernando Garms Filho, herdeiros do político e empresário Carlos Arruda Garms, fundador da a Cocal (Comércio Indústria Canaã e Álcool Ltda). As empresas da família Garms tinham relações de negócios com a Brookfield em projetos do agronegócio, relacionadas ao plantio de cana-de-açúcar.
Por meio de nota, o advogado de Boritza, Cleodimar Binot, rebateu os questionamentos da reportagem afirmando que a “área ocupada pela Fazenda Sol Nascente é uma área particular, com título aquisitivo de propriedade advindo do Estado de Mato Grosso e devidamente registrado junto ao cartório de Registro de Imóveis competente, ocupada pelo Sr. Marcio desde o ano de 2006”. Quanto à ocupação da área por indígenas isolados, Binot alegou ainda que “não há nenhum estudo conclusivo da FUNAI”.
Tentamos contatos com a família Garms, mas não obtivemos retorno.
A Nelori Jaburi informou que apenas forneceu matrizes de gado para Márcio Boritza, mas que não tem nenhuma relação comercial com o pecuarista ou com o gado que é criado dentro da terra indígena.
Nós também tentamos contato com o ministro Dias Toffoli, do STF, sobre a decisão para nova tentativa de conciliação entre fazendeiros e indígenas na TI Kayabi, e ao governo do Mato Grosso, mas não obtivemos retorno até a publicação desta reportagem.
Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.