A retirada de invasores da Terra Indígena Munduruku teve início em novembro e segue sem data para terminar, segundo o governo federal. Indígenas denunciam ataques e ameaças de novas invasões, temendo o que pode ocorrer após o término da operação.

Máquinas e dragas para extração do ouro queimadas, helicópteros em constante sobrevoo, agentes de 20 órgãos federais espalhados pelo território: esse é o cenário dentro da Terra Indígena (TI) Munduruku, no Pará, há mais de um mês. Desde 9 de novembro, o governo federal lidera uma operação de retirada de invasores, principalmente garimpeiros, do território demarcado em 2004 – um processo conhecido como desintrusão.  

O coordenador da operação, Nilton Tubino, assessor da Casa Civil, disse à InfoAmazonia que a operação não tem data para acabar e está passando por todo o território. “A gente sabe que ainda tem maquinário que foi escondido na mata, que foi enterrado. Então, isso vai demandar um processo mais longo, depois vamos passar um pente fino em tudo”, explica. 

De acordo com Tubino, foram registradas ameaças por meio de aplicativos de mensagem. “Eles [garimpeiros] dizem coisas como ‘depois a gente vai se acertar’, meio que falando que, depois da operação passar, eles [indígenas] vão ficar lá. Então, eles vão ficar mais expostos, né? Como a operação não tem um prazo definido para terminar, isso entra num desgaste para eles [indígenas] também, porque não é uma operação de uma semana”, explica. 

A operação na TI Munduruku foi determinada por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, ação judicial proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) no Supremo Tribunal Federal (STF). Um dos pontos da ação é o pedido de desintrusão das terras indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, Arariboia, Kayapó, Yanomami, Karipuna, Munduruku e Trincheira Bacajá, sendo que as últimas quatro já passaram por esse processo. Nilton Tubino coordenou as operações em todas elas. No caso da TI Munduruku, ele afirma que a maior dificuldade é logística, devido à extensão do território.

Agentes de segurança de 20 órgãos governamentais atuam na desintrusão da TI Munduruku Foto: Divulgação/Casa Civil

A TI Munduruku tem 2,4 milhões de hectares (ha), onde vivem mais de 9,2 mil indígenas. Quando a operação chegou, os invasores já tinham fugido. Era algo que os policiais esperavam. Por isso, no plano de desintrusão, os agentes estabeleceram operações em outros territórios ao redor, incluindo a Floresta Nacional (Flona) do Tapajós e as TIs Sai Cinza, Kayaba e Sawré Muybu. O propósito é impedir que os garimpeiros se instalem em outros lugares. Os agentes sabem que a estratégia deles é fugir para as áreas mais próximas, e buscar outras regiões para continuar a atividade. 

“Na Flona do Tapajós, temos equipes fazendo a fiscalização, porque tem outras situações mais complexas ali, com alguns locais que possuem PLGs [Permissão de Lavra Garimpeira], até com licença ambiental de municípios. O Ibama está fazendo uma fiscalização nessas PLGs para ver se estão cumprindo a legislação ambiental para executar a exploração”, explicou.

O último balanço da operação, divulgado em 26 de novembro, aponta a destruição de 44 barcos, 12 máquinas, 7 dragas escariantes, 29 motores estacionários, 8 geradores, 2 tratores, 9 motocicletas, 4.300 litros de combustíveis diversos e 209,1 gramas de mercúrio. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) aplicou R$ 20,27 milhões em multas.

Indígenas garimpeiros

Nos últimos anos, uma parte dos indígenas Munduruku foi cooptada pelo garimpo e, hoje, defende a permanência das áreas de mineração dentro do território. A reportagem apurou que esses garimpeiros, tanto indígenas quanto não indígenas, estão ameaçando as comunidades que denunciaram os danos causados pelo garimpo.

Ediene Krixi, presidente da Associação das Mulheres Munduruku – Wakoborun, organização que reúne lideranças femininas do povo Munduruku, afirmou que a maior preocupação dos indígenas é com o que pode ocorrer após a desintrusão, quando os agentes federais deixarem o território.

“Os garimpeiros estão aguardando passar esse período [de desintrusão] para voltar. O que vai acontecer depois desses meses? Vários garimpeiros estão se manifestando, fazendo ameaças, dizendo que o garimpo é uma alternativa para o povo Munduruku”, explica Ediene. 

Os garimpeiros estão aguardando passar esse período [de desintrusão] para voltar. O que vai acontecer depois desses meses? Vários garimpeiros estão se manifestando, fazendo ameaças, dizendo que o garimpo é uma alternativa para o povo Munduruku.

Ediene Krixi, presidente da Associação das Mulheres Munduruku – Wakoborun

Em carta assinada por seis organizações: Assinaram a carta: o cacique- geral, Arnaldo Kaba Munduruku; o Movimento Munduruku lpereg Ayü; Associação Da’ Uk; Associação Arikico; Associação das Mulheres Munduruku – Wakoborun; Coletivo Poy; e CIMAT – Conselho Indígena Munduruku Alto Tapajós da TI Munduruku. e pelo cacique-geral, Arnaldo Baka, as comunidades exigem uma operação mais longeva. “Não somos apenas três defensores ameaçados; somos muitos e todos estão em perigo por defender nosso território e nossos direitos. Não podemos aceitar operações pontuais que deixam nossas aldeias desprotegidas após a retirada dos invasores”, afirmam na carta. 

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou à InfoAmazonia que ainda não apresentou um plano de manutenção da desintrusão, com garantia de segurança para os indígenas, mas que ele está em elaboração.

Marcos Kaingang, secretário Nacional de Direitos Territoriais Indígenas, do MPI, afirmou que todo tipo de garimpo será combatido na TI Munduruku, independentemente dos autores. “Nosso desafio em Munduruku é muito grande porque a gente tem indígenas envolvidos com o garimpo. Nós temos associações pró-garimpo, numa região com vulnerabilidade social, onde estão muito suscetíveis ao aliciamento. No final, os indígenas não enriquecem, não tem ninguém rico lá no território. Quem enriquece são os financiadores. Os indígenas acabam sendo vítimas nesse processo”. 

Nosso desafio em Munduruku é muito grande porque a gente tem indígenas envolvidos com o garimpo. Nós temos associações pró-garimpo, numa região com vulnerabilidade social, onde estão muito suscetíveis ao aliciamento. No final, os indígenas não enriquecem, não tem ninguém rico lá no território. Quem enriquece são os financiadores. Os indígenas acabam sendo vítimas nesse processo.

Marcos Kaingang, secretário Nacional de Direitos Territoriais Indígenas, do MPI

Kaingang também informou que está prevista uma investigação mais ampla para identificar os financiadores do garimpo nas terras indígenas, inclusive na Munduruku, e que, para o governo, o garimpo não pode mais ser uma atividade econômica nos territórios. “A gente sabe que não é só prender e deter, você tem que levar outras alternativas de políticas públicas, mas não temos medo nenhum de falar que, seja indígena ou não indígena envolvido em garimpo, ele está cometendo uma atividade ilegal, ele vai ser preso, vai ser detido. É uma responsabilidade que cada um tem que arcar”, afirmou. 

Enquanto isso, como resposta à desintrusão, em 17 de dezembro, garimpeiros indígenas e não indígenas escreveram um documento pedindo a aprovação da Lei 14.701/2023, que determina o marco temporal: A tese diz que os indígenas apenas têm direito aos territórios  ocupados em 5 de outubro de 1988. e permite a exploração econômica dos territórios, garantindo aos indígenas o direito de explorar em cooperação ou com a contratação de não indígenas. “Cabe ainda externar que a lei ora questionada na Corte Suprema do Brasil permitirá que tenhamos segurança jurídica nas iniciativas econômicas, permitindo assim que possamos ter iniciativas empreendedoras de diversas formas”, dizem no documento. 

Garimpeiros desmatam e fazem extração da terra e dos rios em busca de minérios na Terra Indígena Munduruku Foto: Marizilda Cruppe/ Amazon Watch

Desmatamento e alternativas

A TI Munduruku perdeu 4.714 ha de floresta, entre 2016 e 2024, de acordo com os dados do sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), analisados pela InfoAmazonia

Desse total, a mineração é responsável por 86,8% (4.082 ha) — os dados do Deter de desmatamento incluem, além da perda de floresta por mineração, o desmatamento por corte raso (cr), quando há remoção total da cobertura florestal em um curto intervalo de tempo, e o com vegetação (veg), quando as áreas desmatadas ainda mantém uma parte da vegetação nativa.

O desmatamento deixa um rastro na floresta que expõe a presença do garimpo. Desde 2017, a atividade ilegal avança no território. Os piores anos ocorreram entre 2019 e 2021, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando os garimpeiros desmataram 2.773 ha. Desde 2022, esses números estão em queda, atingindo 94 ha desmatados em 2024. 

Apesar disso, a InfoAmazonia verificou que foram 30.238 cicatrizes de queimadas, ou seja, áreas que perderam toda ou parte de sua vegetação para o fogo, em 2024, de acordo com os dados do Deter.  

Marcos Kaingang diz que o desmatamento e a abertura de novas áreas de mineração caíram neste ano devido à intensificação de operações que ocorreram ao longo dos meses, antes da desintrusão oficial, mas que confirmou o registro de queimadas ilegais. “Nós tivemos esse índice de maior intensidade de ações criminosas que colocavam fogo em algumas determinadas regiões, cometendo desmatamento, e esse desmatamento se alastrava por outras localidades, mas durante a operação não houve registro de nada, nenhum garimpo, nenhum desmatamento novo, nenhum foco de incêndio”, afirmou. 

Ediene Krixi contou que o fogo foi muito forte na Munduruku neste ano, prejudicando crianças e anciãos, com a fumaça chegando nas casas. “Ficamos dois meses solicitando ajuda do governo federal, mas demorou pra chegar. A fumaça dificulta nossa locomoção nos rios, nosso acesso às comunidades. A gente viu os animais de caça queimados, as crianças doentes de fumaça”, relatou.

O fogo se alastra mais rapidamente em territórios já desmatados, porque as folhas secas e os restos de madeira servem como combustível. O desmatamento também cria bordas na floresta, com caminhos abertos que, ao ficarem sem vegetação, reduzem a umidade e aumentam o calor. Tudo isso, aliado às altas temperaturas e aos eventos extremos, provoca o aumento dos incêndios. 

Em setembro, a InfoAmazonia mostrou que isso também estava ocorrendo na Terra Indígena Kayapó, Capoto Jarina e Sararé, como focos de calor registrados próximos às áreas de garimpo. “O fogo pegou a região como um todo e sabemos que alguns saíram dos garimpos”, disse Ediene. 

Agentes de segurança fazem operação na Terra Indígena Munduruku desde 9 de novembro Foto: Divulgação/Secom

Os dados históricos do MapBiomas também mostram a presença da mineração na terra indígena, mas também apontam que uma parte dela foi devastada pela abertura de pastagem — que utiliza o fogo como forma de abrir novas áreas para criação de gado. De 1985 a 2023, só para o garimpo, foram 5.240 hectares desmatados. Já a destruição para a pecuária extinguiu 7.151 hectares da área verde.

O que acontece depois? 

Outros territórios indígenas que tiveram o processo de desintrusão concluído antes da TI Munduruku passaram por invasões após as grandes operações. A TI Apyterewa, no Pará, passou por uma desintrusão entre outubro de 2023 e março de 2024. 

Desde a chegada das forças policiais e da expulsão dos invasores, o desmatamento foi sendo reduzido drasticamente. Antes da operação, em 2022, o desmate chegou a 8.196 ha. Em 2023, houve uma desaceleração em 80%, chegando a 1.476 ha. Em 2024, depois da desintrusão, foram 364 ha. 

Apesar disso, em agosto deste ano, líderes indígenas denunciaram invasões e ataques de fazendeiros. “A desintrusão aconteceu, mas não adiantou nada. Os fazendeiros estão voltando, estão trazendo gado de novo”, disse o Cacique Mama Parakanã. Em agosto, eram 264 cicatrizes de fogo registradas e isso foi aumentando, com pico em setembro, quando foram 8.745 cicatrizes. Em outubro, foram 3.676 e, em novembro, 851. Em 2024, de janeiro a novembro, foram 13.537 cicatrizes de queimadas, , segundo o Deter, do Inpe. 

Marcos Kaingang explicou que, pelas extensões dos territórios, é “impossível evitar que isso [a invasão] aconteça”, mas que, com fiscalização, os agentes conseguem impedir que invasores se estabeleçam nos territórios como estavam antes. 

“É muito complexo você conseguir evitar que um não indígena entre na terra indígena e saia na mesma hora. Mas isso não é uma invasão necessariamente. É um ingresso ilegal na terra indígena. Invasão é quando ele se consolida ali dentro, com estrutura e etc, que não é o caso da Apyterewa [agora], por exemplo”, diz.

Em setembro, a TI Apyterewa sofreu com queimadas, que foram denunciadas pelos indígenas como sendo ilegais e feitas por fazendeiros invasores. Naquele mês, ela foi a terceira terra indígena do Pará com maior número de focos de calor, com 289 registros, de acordo com dados do Banco de Dados (BD) de Queimadas, do Inpe

Esse é o medo dos Munduruku. Com garimpeiros indígenas fazendo ameaças internas, a tensão é ainda maior do que no caso da Apyterewa. “A desintrusão precisa ser mais forte. Precisa passar o pente fino em todas as áreas. Nós estamos sendo ameaçados. Estão dizendo que o garimpo é uma alternativa para os Munduruku, mas isso é falso”, diz Ediene Krixi. 

COMO ANALISAMOS O DESMATAMENTO NAS TIS MUNDURUKU E APYTEREWA?

. Nesta reportagem, analisamos a série histórica de desmatamento do Deter (2016-2024) e os dados de transição do uso e cobertura do solo do MapBiomas (1985-2023) para as terras indígenas Munduruku e Apyterewa. Os limites dos territórios são disponibilizados pela Funai.

. As classes do Deter consideradas como desmatamento são: desmatamento (com vegetação ou corte raso) e mineração. Também foram analisadas outras classes categorizadas pelo Deter, mas que não são consideradas como desmatamento: cicatriz de incêndio florestal e degradação.

. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.


Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori

Sobre o autor
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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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