A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil se retirou do processo no final de agosto. O ministro Gilmar Mendes, que convocou a conciliação, estendeu o prazo de encerramento, previsto para este mês, alegando a necessidade de aprofundar as discussões.

As audiências de conciliação sobre a lei do marco temporal continuam ocorrendo no Supremo Tribunal Federal (STF) quase quatro meses após a saída da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Sem a presença de um representante indígena no debate, as organizações que defendem os direitos dos povos tradicionais afirmam que o processo não segue uma metodologia e que os objetivos ainda não estão claros.

As audiências de conciliação ocorrem após uma série de decisões, debates e protestos — tanto por parte dos indígenas, quanto por parte dos setores a favor do marco temporal, como o do agronegócio. A tese estabelece que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Relembre a data das principais decisões sobre a tese:

2023

– 21 de setembro:
STF define que a tese do marco temporal é inconstitucional
– 27 de setembro:
Senado aprova PL 14.701, que fixa o marco temporal em 5 de outubro de 1988
– 23 de outubro:
Lula sanciona  PL 14.701 com vetos parciais, retirando trecho que fixou o marco temporal no projeto
– 14 de dezembro:
Deputado e senadores derrubam vetos de Lula e mantém data do marco temporal
– 28 de dezembro:
Partidos Liberal, Progressistas e Republicanos entram com ação no STF pedindo que Lei 14.701 seja validada

2024

– 2 de janeiro:
Lei 14.701 é promulgada oficialmente em Diário Oficial
– 2 de janeiro:
Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV) entraram com ação questionando a validade da Lei 14.701
– 22 de abril:
Ministro Gilmar Mendes suspende ações dos partidos e determina audiências de conciliação
– 27 de junho:
Ministro Gilmar Mendes determina datas de audiências entre os dias 5 de agosto e 18 de dezembro de 2024
– 8 de julho:
Organizações indígenas que compõem a Apib discutem participar ou não das audiências
– 10 de julho:
Comissão de Constituição e Justiça discute a Proposta de Emenda à Constituição 48/2023
– 5 de agosto:
primeira audiência de conciliação determinada por Gilmar Mendes
28 de agosto: Apib decide sair do processo de conciliação

Primeiro, o STF julgou a tese inconstitucional. Depois, em resposta, o Congresso aprovou a Lei 14.701, que define o marco temporal. Diante de duas decisões opostas, uma série de ações foi protocolada na Justiça — algumas pedindo a inconstitucionalidade da lei, outras defendendo sua validade.

Em meio a isso, o ministro Gilmar Mendes suspendeu as ações e determinou a criação das audiências, sob sua própria mediação. Em 28 de agosto, após participar do início do processo, a Apib optou por sair da mesa. A organização indígena divulgou uma carta em que dizia que não haveria garantias “de proteção suficiente pressupostos sólidos de não retrocessos” e tão pouco “de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas”. 

Indígenas fazem manifestação contra o marco temporal em Roraima. Foto: Caíque Souza/CIR

O processo segue, mas para quê?

Em meio a discussões ainda sem consenso e à ausência de indígenas no debate, Gilmar Mendes prorrogou para 28 de fevereiro o desfecho inicialmente previsto para 18 de dezembro. Ele ampliou o debate devido à “complexidade das questões controvertidas” e considerou necessário o aprofundamento das discussões.

Ainda participam das audiências: 

  • Três membros do Senado Federal
  • Três da Câmara dos Deputados
  • Quatro representantes do governo federal indicados pela Advocacia-Geral da União (AGU), pelo Ministério da Justiça (MJ), pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); 
  • Dois governadores; 
  • Um representante dos municípios; 
  • Representantes dos partidos PT, PDT, PCdoB e PV, bem como do PP, PL e Republicanos.

A proposta é que os representantes convocados opinem sobre cada ponto da lei e, em seguida, busquem um consenso. Caso o acordo não ocorra de forma espontânea, as decisões serão submetidas à votação na câmara de conciliação. Ao término das audiências, será elaborado um relatório para entrega ao Plenário do STF.

Na avaliação do advogado da Apib, Maurício Terena, as discussões estão sendo conduzidas sem objetivos claros, pois não foi definido quais pontos seriam discutidos inicialmente. Desde que se retirou da comissão, a APIB acompanha as discussões externamente. Na ocasião, a organização também solicitou a suspensão da lei do marco temporal, mas o pedido foi negado.

“Ninguém consegue entender de maneira clara. É curioso observar essa tentativa conciliatória sem método, sem objeto, que tenta se discutir uma alternativa para o marco temporal. Os indígenas têm o seu direito reconhecido pela Constituição. A ferramenta que ia usurpar isso (marco temporal) é invalidada pela Suprema Corte, por nítidos desencontros com a Constituição Federal e a gente monta uma conciliação para achar uma alternativa”, argumentou Terena.

Ninguém consegue entender de maneira clara. É curioso observar essa tentativa conciliatória sem método, sem objeto, que tenta se discutir uma alternativa para o marco temporal. Os indígenas têm o seu direito reconhecido pela Constituição. A ferramenta que ia usurpar isso (marco temporal) é invalidada pela Suprema Corte.

Maurício Terena, advogado da Apib

Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), também acompanha o processo. Ele afirma que as discussões não estão resultando em propostas consolidadas e que o “debate gira em torno das mesmas coisas e não chega a lugar nenhum”. 

“Não é possível aperfeiçoar uma lei que é inconstitucional. São discussões para tornar o processo mais moroso. Isso tudo está travando a política indigenista do país”, diz.

Não é possível aperfeiçoar uma lei que é inconstitucional. São discussões para tornar o processo mais moroso. Isso tudo está travando a política indigenista do país. 

Rafael Modesto, advogado do Cimi

Na última reunião, em 2 de dezembro, os órgãos e representantes puderam apresentar propostas de mudanças no texto do projeto de lei, mas somente a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) fizeram sugestões. Ambos os órgãos recomendaram que as etapas dos processos de demarcação já concluídos sejam respeitadas na nova proposta de lei. 

Próximos passos

Na próxima semana, nos dias 16 e 18 de dezembro, devem ocorrer outras duas audiências. A primeira contará com a presença de antropólogos, cujos nomes ainda não foram definidos pelo STF. Eles apresentarão laudos antropológicos já utilizados nos processos de demarcação para explicar as normas do documento. No dia 18, a comissão deve receber representantes indígenas para uma fala livre. Não foram divulgados os nomes dos convidados.

A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), outra organização que também acompanha as audiências, concorda com os advogados da Apib e do Cimi e avalia que, até agora, não há clareza sobre o resultado e o avanço das reuniões.

“Não está claro se, quando isso for para o plenário, ele vai apenas referendar o encaminhamento de um projeto de lei pro Congresso, ou se vai discutir a lei em si e a inconstitucionalidade dos artigos. Então, não parece definido”, questiona a advogada. 

Para ela, o mais grave é que a Lei 14.701 continua em vigor. Com a norma aprovada, os processos homologatórios estão em risco, pois, caso sejam levados adiante, deverão considerar as novas regras, o que cria um problema para a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai), responsável pelo processo.

Atualmente, a Funai afirma que existem 149 Grupos de Trabalho avaliando possíveis territórios a serem demarcados, e 70 terras estão aguardando homologação.

Por outro lado, em fevereiro, a InfoAmazonia publicou reportagem mostrando que fazendeiros de Rondônia já utilizavam a tese do marco temporal para justificar invasões dentro da Terra Indígena Sagarana, no oeste do estado. Depois, em julho, o Ministério da Justiça chegou a interromper as declarações de novas terras indígenas após as discussões sobre a tese no STF. 

Apib planeja manifestações

A APIB está se organizando para realizar mais manifestações de rua contra o marco temporal no próximo ano. A avaliação da organização é que a câmara de conciliação é um espaço de violência, porque está discutindo direitos já garantidos pela Constituição.

Jovens indígenas na manifestação contra o marco temporal, em Roraima Foto: CIR/Divulgação

Em Roraima, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), que reúne 465 comunidades no estado e povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi, está há 40 dias   em manifestação. Nos atos, indígenas ocupam estradas, levantam cartazes com palavras de ordem, fazem acampamentos e passeatas. 

Entre as motivações da mobilização do CIR está a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48, criada pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RO), que   tramita no Senado Federal e também propõe a implementação da tese do marco temporal. Diferente do PL nº 14.701, a PEC tem o poder de alterar diretamente o texto da constituição, o que coloca os direitos territoriais indígenas em risco. 

“É uma estratégia do outro campo [contrário aos direitos indígenas] manter a situação como está. A lei está em vigor, trava o procedimento demarcatório. Aí, daqui a uns dias, já começa a discussão sobre as próximas eleições e o governo já não consegue fazer mais nada”, diz o advogado Rafael Modesto.

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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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