Em 2024, os nove estados da Amazônia Legal tiveram o maior número de candidaturas indígenas (1.274) desde o início dos registros por etnia do Tribunal Superior Eleitoral, mas só 107 se elegeram no primeiro turno. O Amazonas é o estado que mais escolheu candidatos indígenas (47), representando 44% do total eleito.

Apesar de a eleição municipal deste ano ter registrado o maior número de candidatos indígenas da história (1.274) da Amazônia Legal, apenas 8% deles (107) foram eleitos no primeiro turno. Segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três prefeitos, 96 vereadores e oito vice-prefeitos indígenas venceram o pleito realizado em 6 de outubro. 

Ainda assim, houve um aumento de 32% no número de indígenas eleitos neste ano em comparação aos 81 eleitos em 2016, primeiro ano em que o TSE passou a registrar a etnia dos candidatos: O TSE passou a registrar a etnia dos candidatos em 2014, na eleição federal. A eleição de 2016 foi a primeira eleição municipal com o registro de etnia. nas eleições municipais. Em relação a 2020, houve um aumento de 7%, já que, naquele ano, foram eleitos 100 prefeitos, vice-prefeitos e vereadores indígenas. Esses números são definitivos, já que não existem candidatos indígenas disputando segundo turno. 

Neste ano, todos os estados da Amazônia Legal elegeram ao menos um candidato indígena, entre vereadores e prefeitos. O Amazonas, que tinha 572 candidaturas, elegeu 47 delas (8% do total) – o maior número entre os nove estados, representando 44% dos indígenas eleitos. Mato Grosso, que tinha 129, também escolheu 9% (12). O estado com menos eleitos foi Rondônia, que tinha 38 e aprovou apenas 1 vereador. 

Na cidade com o maior número de candidatos indígenas, São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, que tinha 111 candidaturas, 12 dos 13 vereadores eleitos são indígenas, sendo três mulheres (25%), e o prefeito e vice-prefeito eleitos também são indígenas. O município tem a segunda maior população indígena do país, com 48 mil, atrás apenas de Manaus, com 71.713 mil, de acordo com o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Cidades que elegeram prefeitos indígenas

Egmar Saldanha (PT), conhecido como “Curubinha”, do povo Tariana, obteve 47,15% (11.014) dos votos para a prefeitura em São Gabriel da Cachoeira e venceu o oponente Cláudio Pontes (Podemos), não indígena, que recebeu 43,93% (10.261). Saldanha tem 25 anos e é sobrinho do atual prefeito do município, Clóvis Moreira (PT), que esteve na gestão por dois mandatos. Saldanha vai manter no cargo a atual vice-prefeita, Eliane Falcão (PT), indígena do povo Piratapuya, que entrou na disputa junto com ele. “Foi uma campanha difícil, muita gente da cidade não me conhecia, mas foi na conversa, no diálogo, que eles deram a chance para um jovem indígena como eu”, afirma.

Egmar diz que mesmo jovem se vê como uma pessoa capaz de exercer o cargo e diz se inspirar no senador Eduardo Braga (MDB/AM), que foi vereador pela primeira vez aos 23 anos. “Minha bandeira de luta é minimizar as dores. Queremos perfurar poços de água em cada bairro, construir mais UBS’s [Unidades Básicas de Saúde], ter mais patrulhamento para a segurança”, diz. 

Jackeline Vieira (Rede), do povo Tukano, também se elegeu em São Gabriel da Cachoeira. Ela obteve 568 votos e retornou para a Câmara dos Vereadores depois de ter deixado o cargo em 2020. A nova vereadora criticou a atual gestão e disse que deve cobrar para que o futuro prefeito invista na construção de escolas e creches. “As comunidades estão sofrendo com escolas precárias, com a falta de merenda. A gente fica preocupado com a situação das nossas crianças. A gente vê que a educação não tem destaque. No meu mandato, a bandeira principal vai ser a luta de dias melhores”, afirmou. 

De acordo com os dados analisados pela InfoAmazonia, as mulheres representam 13% dos eleitos (14) neste ano na Amazônia Legal. Comparado ao ano de 2016, o aumento é de 42%, quando 6 foram eleitas. Já em comparação à última eleição, 2020, quando 15 eleitas, a queda é de 6,6%. 

Para Vieira, a cidade de São Gabriel da Cachoeira consegue acolher bem as candidaturas indígenas, pela identificação com a maioria dos eleitores, mas as mulheres precisam enfrentar o machismo. “Em algumas etnias a gente ainda é desprezada, mas a gente está cada vez ocupando nosso espaço. Eu sei que nós, como mulheres indígenas, podemos chegar mais à frente e podemos mostrar nossa competência”, diz a vereadora. 

Votos indígenas

Em Roraima, a cidade de Uiramutã tem, proporcionalmente, o maior número de pessoas indígenas do país e está dentro da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol. São 13.751 habitantes e 12.988 deles são indígenas, o que corresponde a 96,6% da população, de acordo com dados do Censo 2022 do IBGE. Por lá, seis dos nove vereadores eleitos são indígenas, dentre eles uma mulher. O prefeito eleito também é indígena.

O tuxaua: Cargo de liderança concedido pela comunidade a qual a pessoa faz parte. São responsáveis por participar de assembleias, organizar movimentos e repassar informações para coordenadores regionais. Benísio Macuxi (Rede Sustentabilidade) foi reeleito com 59,66% (4.214) dos votos e venceu Abraão da Silva (PDT), não indígena, que recebeu 40,34% (2.849). Seu plano de gestão inclui o fomento à agricultura familiar, prática comum entre os indígenas da região, a instalação de pontos de coleta de lixo nos espaços públicos e a construção de creches e quadras esportivas. 

Ele diz que a reeleição ocorreu porque teve boa aprovação no seu primeiro mandato. “A primeira gestão trouxe experiência, fizemos escolas, estradas, pontes, unidades de saúde. O que eu faço é conforme o que as comunidades pedem e o que os recursos permitem”, diz o tuxaua e, agora, prefeito reeleito. 

Benísio fez a campanha com R$ 100 mil e não declarou bens. De acordo com ele, seu município se destaca pela forte relação com a cultura e a tradição indígena, o que o levou a conquistar o eleitor. “É um local muito diferente de outros municípios de Roraima. O povo não aceita empresários, fazendeiros, e as malocas: Habitações feitas de madeira e palha, encontradas em comunidades indígenas da Amazônia. precisam de muitas coisas, infraestrutura, escola, e a gente busca ajudar, fazendo o melhor para o povo”, diz. 

A jornalista Mayra Wapichana, porta-voz da Rede Sustentabilidade em Roraima, afirma que entre as dificuldades para conquistar o eleitor indígena está o acesso à comunicação nas comunidades, onde as propostas levam mais tempo para chegar, a falta de diversidade linguística no processo eleitoral como um todo, que impede muitos eleitores de compreender informações básicas que são divulgadas na língua portuguesa, e o grande número de crimes eleitorais. “A compra de voto, a troca por cestas básicas, por doações, infelizmente isso ainda acontece”, diz. 

Na Amazônia Legal, a Rede elegeu 8 das 86 candidaturas indígenas, mas foram os partidos de direita que receberam a maior quantidade de votos. O partido que mais elegeu indígenas foi o MDB, com 18 candidaturas, seguido de Republicanos, com 14 e o PT, com 13.

Mayra avalia que o momento é de amadurecimento, em que os eleitores estão sendo conscientizados sobre quais projetos de governo são importantes para toda a população ao qual pertencem. “Não basta ser somente indígena, eles precisam de fato estar de acordo com com as demandas das comunidades indígenas, com a representatividade  dos povos indígenas. Precisam ser pessoas que tenham esse perfil de liderança”, explica. 

Ela cita como um momento de impulso para buscar candidaturas indígenas a aprovação da Lei 14.701, do marco temporal. “A gente vem numa luta contínua e constante para tentar reverter essas violações contra os povos indígenas. Então, a gente não pode desassociar a defesa dos nossos direitos da nossa participação nesse processo [eleitoral]”, diz. 

Ela conta que a candidatura de Benísio passou por um outro processo de eleição interna, dentro da organização política das comunidades indígenas de Uiramutã. As comunidades se reúnem em assembleias e votam se querem ou não apoiar o nome do candidato. Também apresentam demandas para o município e sugestões para os planos de governo. É a chamada “política do malocão”. 

Na TI Raposa Serra do Sol, as comunidades construíram uma estrutura de maloca maior e chamam o local de “malocão”, por causa do seu tamanho. É lá que as decisões ocorrem e os nomes dos candidatos são escolhidos. “É essa construção coletiva, com indicações e aprovações em assembleias. Assim como a eleição de Joênia Wapichana saiu das [assembleias] regionais e depois passou pela Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, as candidaturas municipais também seguiram nesse contexto”, explica a jornalista. 

Durante a campanha, Benísio recebeu o apoio da líder Joenia Wapichana, um dos maiores nomes da TI Raposa Serra do Sol e que hoje preside a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Após o resultado, ela publicou nas redes sociais uma felicitação: “A reeleição de Tuxaua Benísio é uma conquista importante para os povos indígenas de Uiramutã e uma demonstração clara da força da política do malocão, onde a união, o diálogo e a participação coletiva prevalecem”, disse. 

Oito mil votos 

Em Manaus, uma mulher indígena recebeu 8.374 votos para o cargo de vereadora, mas não se elegeu. Vanda Witoto (Rede Sustentabilidade) foi a candidata que recebeu apoio dos movimentos de esquerda da cidade e acabou perdendo a vaga por falta de quociente eleitoral do partido — a eleição para vereador não é decidida apenas pela quantidade de votos, mas por um cálculo que vai considerar o número de votos válidos apurados no município e a quantidade de vagas na Câmara Municipal. Em Manaus, o quociente eleitoral era de 26.896 votos e a Rede alcançou 14.565. Com isso, não teve direito a uma cadeira. Vanda Witoto ficou em 23º lugar na votação, num quadro de 41 vagas. 

Candidata da Rede Sustentabilidade, Vanda Witoto recebeu mais de 8 mil votos em Manaus Foto: Divulgação/ Vanda Witoto

Ela diz que sente revolta e tristeza, mas não vai desistir. “O aprendizado que fica é que nós precisamos de uma reforma no sistema político desse país. Que democracia é essa? Que deixa de fora a vigésima terceira pessoa mais votada da cidade? Cadê o direito de escolha? Estamos sempre submetidos a esse sistema perverso de compra de voto, mas o que eu estou construindo junto às pessoas é a possibilidade de uma política que considere a dignidade humana, que considere o acesso à natureza”, diz. 

Após o resultado da eleição, ela começou a receber ataques nas redes sociais, de pessoas que a chamaram de “ingênua” e “burra”, por não ter escolhido outro partido para se candidatar. Ela diz que não teria feito diferente. “As estruturas grandes têm como prioridades os homens brancos e ricos desta cidade. Não tem espaço para mulheres, senão eles elegeriam mulheres lá também, mas nós não somos prioridade dos partidos. Os partidos, seja de de direita ou de esquerda, não priorizam mulheres”, afirma. 

O candidato a vereador mais votado em Manaus, com 22 mil votos, foi o Sargento Salazar (PL), não indígena, um policial militar que ficou conhecido por vídeos em que aparece fazendo abordagens policiais e segurando armas. Nesta eleição, ele foi apoiado por Pablo Marçal (PRTB/SP). A cidade também terá segundo turno para prefeito, com dois candidatos de direita: a disputa será entre o atual prefeito David Almeida (Avante) e o Capitão Alberto Neto (PL), que recebe o apoio declarado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). 

Apesar de Manaus ser a cidade mais indígena do país, em números absolutos, nenhum dos candidatos traz propostas para essas populações em seus planos de governo. Vanda diz que o cenário agora é desafiador. “A gente quer um prefeito que consiga olhar para as pessoas, que consiga olhar para os problemas das periferias, das comunidades indígenas, dos quilombos. Porque são essas regiões que estão marginalizadas. São essas regiões mais impactadas. E são nossos corpos que estão lá. Sem assistência, sem água, sem energia”, diz Vanda Witoto. 

COMO ANALISAMOS OS NÚMEROS DE INDÍGENAS ELEITOS NA AMAZÔNIA NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS?

. Nesta reportagem, analisamos as candidaturas e resultados das eleições municipais de 2016, 2020 e 2024, anos em que os dados de declaração de cor e raça de candidatos são disponibilizados pelo TSE. Foram considerados os candidatos cuja declaração de cor/raça (DS_COR_RACA) no TSE consta como “indígena”.

. A análise incluiu todos os municípios que fazem parte da Amazônia Legal e usou os limites territoriais disponibilizados pelo IBGE

. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.


Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori

Sobre o autor
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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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