Em carta, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirmou que a decisão foi tomada diante de ‘condições inaceitáveis’ e ‘até humilhantes’. Nesta quarta-feira (28), os representantes indígenas leram o documento durante a segunda audiência da Câmara de Conciliação, criada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir a Lei 14.701, que estabelece a tese do marco temporal para terras indígenas.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização que representa sete entidades indígenas no país, anunciou que não participará mais das audiências da Câmara de Conciliação, criada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. A saída dos indígenas do processo foi comunicada por meio da leitura de uma carta nesta quarta-feira (28), em Brasília.
“Diante de condições inaceitáveis – e até humilhantes – impostas aos povos indígenas na audiência de conciliação, o juiz conciliador disse que uma saída dos povos indígenas os tornaria responsáveis pela ‘espiral de conflitos’. Isso é de uma violência atroz”, leu Maria Baré, presidente da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), uma das organizações de base que compõem a Apib.
Após a leitura, os indígenas se levantaram de seus lugares à mesa e se retiraram da sala no STF, alguns com os punhos erguidos. Eles alegaram que a “conciliação está sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural”. Além disso, argumentaram que o ambiente da primeira audiência, realizada em 5 de agosto, foi “aflitivo”, que a suspensão da aplicabilidade da Lei 14.701 foi negada, e que a tomada de decisão por maioria retira a legitimidade dos povos indígenas.
“Neste cenário, a Apib não encontra ambiente para prosseguir na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente pressupostos sólidos de não retrocessos e tão pouco garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas”, disseram, na carta.
Recado do Gilmar
A reunião foi conduzida pelo juiz Diego Viegas, o mesmo da primeira audiência e também auxiliar do gabinete de Gilmar Mendes. Ele começou a sessão afirmando que a Apib não era obrigada a continuar e transmitiu uma mensagem direta do ministro do STF: “se a adoção do posicionamento da Apib for essa, ele apenas pediu que registrasse o seguinte: isso não significa que não teremos outros indígenas nesta comissão. Foi a fala do ministro Gilmar, que pediu para registrar”.
Viegas também afirmou que a decisão da Apib não deverá impedir a continuidade do processo. “O que vocês estão fazendo é sair da mesa de conciliação para esvaziar a conciliação. Isso não será possível, essa comissão está instalada. Não temos como parar algo que será benéfico para todos”.
Assim, as audiências devem seguir o trâmite conforme a agenda planejada. Outras duas estão marcadas para os dias 9 e 23 de setembro, e o calendário se encerra em 18 de dezembro. Na audiência desta quarta-feira, a pauta prevista era discutir textos importantes, como trechos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, a Constituição Federal de 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Ao fim das reuniões, o ministro Gilmar Mendes deve assinar um relatório expondo o que foi acordado entre os participantes.
Desde que a Câmara foi estabelecida, as organizações que compõem a Apib têm discutido sua participação. Na primeira audiência, estiveram presentes no debate, mas a avaliação final indígena foi negativa. Em nota pública, denunciaram racismo institucional e solicitaram 48 horas para avaliar a continuidade.
“Ao longo das seis horas de reunião, o grupo pediu diversas vezes que a Corte concedesse condições iguais de participação para os povos indígenas na Câmara de Conciliação. Isso porque, a todo momento, membros do STF pressionavam para que as lideranças indígenas aprovassem o calendário de reuniões sem antes poderem consultar suas bases”, escreveu a Apib, sobre a primeira reunião.
Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que os movimentos indígenas enfrentaram situações de violência e revitimização durante a primeira audiência no STF, com um clima de pressão sobre os representantes. Além disso, em caso de falta de consenso, a decisão seria tomada pela maioria, o que os deixaria sempre em desvantagem numérica.
“Isso [decisão pela maioria] também é bastante equivocado, porque seria como pressupor que é possível fazer uma conciliação forçada. Você tirar o principal sujeito de direito afetado e determinar que vão decidir por uma maioria, em um ambiente onde eles não são maioria, também nos pareceu bastante perigoso”, disse a advogada.
Além disso, na opinião de Batista, as audiências deveriam ocorrer dentro dos territórios indígenas. Não há presença de intérpretes para o idioma dos participantes nas audiências no STF, e as lideranças cobraram a possibilidade de falar em suas línguas maternas. “Isso já mostra um desconhecimento do próprio diálogo intercultural e do funcionamento das instâncias representativos dos povos indígenas. Isso preocupa porque mostra que o juízo conciliador já parte para a discussão sabendo muito sobre um lado e muito pouco sobre o outro”.
Processos políticos e judiciais
A professora de direito constitucional Priscilla Cardoso, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), avalia que “o papel do STF é de interpretação da Constituição” e que o “de mediar é dos tribunais dos estados, dos tribunais federais da primeira instância, não do STF”.
“O STF é a última instância do Poder Judiciário que tem essa função justamente de dar a última palavra sobre a interpretação de uma norma, para decidir se uma decisão judicial, ou uma lei, ou uma norma é constitucional”, explicou à InfoAmazonia.
Para Cardoso, a saída dos movimentos indígenas da Câmara de Conciliação pode ser um protesto impactante, mas também representa uma perda de representação nas instâncias de discussão. “São estratégias complicadas, porque, se você permanece, legitima o procedimento, mas, se sai, perde a representatividade. Mas se as organizações optam por se retirar, é porque isso faz sentido para elas, e o movimento tem um histórico de criar estratégias para esses casos.”
Batista, advogada do ISA, explica que o STF tem utilizado estratégias de autocomposição, nas quais o juiz não decide de imediato e sozinho uma ação, mas convida os cidadãos interessados a participar dos debates. O objetivo é que eles encontrem pontos em comum em suas ideias por meio de mediação, conciliação e negociação. Para Batista, isso pode ser perigoso para os povos indígenas, porque eles são minoria no debate e seus direitos não são passíveis de negociação, sendo garantidos pela Constituição.
“A gente está tratando de direitos indisponíveis, ou seja, aqueles que não são passíveis de conciliação, e a gente não sabe de fato qual é a moldura [objetivo] dessa conciliação. Então, é possível uma conciliação forçada com os povos indígenas? O que está em debate, exatamente? Isso está muito pouco nítido e isso é de alguma forma inédito. Mesmo com conciliação você tem as balizas [pontos e metas], quais são as balizas? Não sabemos”, afirma Batista.
Na avaliação da advogada do ISA, a Lei 14.701, aprovada pelo Congresso no final do ano passado para estabelecer um marco temporal para terras indígenas, deveria ser anulada, já que a tese já foi votada pelos ministros e considerada inconstitucional. Mesmo assim, o relator Gilmar Mendes optou por não seguir o processo habitual de anulação, contrariando o que já havia sido decidido.
“Ao que tudo indica, está tudo em aberto. Ele deu a entender que tudo pode ser novamente discutido. Isso é uma coisa extremamente preocupante, porque se o tribunal já julgou a lei, ela padece de forte presunção de inconstitucionalidade, então, esses artigos deveriam ter sido suspensos. Eles não foram”, explica Batista.