Os dois povos tradicionais ocupam a mesma área do município de Alta Floresta D’oeste. Apesar de os processos de demarcação terem começado há décadas, os órgãos federais não têm dado o devido andamento e são denunciados por omissão pelo MPF de Rondônia. Governos municipal e estadual incentivam o turismo no território, apesar de a consulta prévia dos indígenas ser contrária à atividade.
Indígenas Wajuru e quilombolas de Alta Floresta D’oeste, em Rondônia, travam uma luta contra os governos municipal, estadual e federal, a Fundação dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os dois povos tradicionais pedem a demarcação e o reconhecimento do território tradicionalmente ocupado de Porto Rolim de Moura do Guaporé, mas, apesar de diversos pedidos aos diferentes níveis de poder do Estado, a área de 2,2 mil km² — duas vezes maior que a de Belém, capital paraense — as comunidades seguem sem uma resposta definitiva.
Os Wajuru e os quilombolas denunciaram à reportagem que o estado de Rondônia e município de Alta Floresta D’oeste incentivam a pesca turística dentro do território sem o consentimento dos povos, o que é proibido pela legislação federal, já que a Constituição garante o usufruto exclusivo de territórios tradicionalmente ocupados. Já a União, o Incra e a Funai são acusados pelos dois povos tradicionais e pelo Ministério Público Federal de Rondônia (MPF-RO), em ação civil pública, de omissão por não darem encaminhamentos para que a regularização seja feita.
O processo de demarcação dos indígenas Wajuru começou em 2002 e, o dos quilombolas, em 2017. Ambos nunca passaram da fase de reconhecimento territorial, quando a Funai e o Incra fazem a delimitação da área.
A indígena Taila Wajuru, filha da cacica Valda Wajuru, afirma que vive com a família no território desde o seu nascimento. “Até 2008, ainda era pouca [a invasão], não tinha tanta gente aqui dentro. Depois, construíram uma estrada. Aí foi que entrou muita gente mesmo, fizeram igreja, fizeram hotel, nunca pediram para conversar com a gente. Todo mundo tem terra no nosso território”, contou.
A InfoAmazonia fez um levantamento na base do Cadastro Ambiental Rural: Registro eletrônico obrigatório, feito por autodeclaração e voltado à regularização ambiental de imóveis rurais de todo o país. (CAR) e constatou um total de 426 cadastros de imóveis rurais sobrepostos ao território, todos aguardando uma análise da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (SEDAM/RO) para regularização.
A quilombola Angilene Gomes, professora de pedagogia e presidente da Associação Quilombola de Porto Rolim, tem 42 anos e nasceu na comunidade. Ela relata que já recebeu avisos de outras pessoas que vivem no local, em conversas com os invasores, para tomar cuidado com suas ações em defesa do território, como participar de debates e fazer denúncias sobre a falta de titulação. Segundo Angilene, o momento de maior medo foi quando encontrou seu cachorro morto. “Foi bem no auge dos conflitos [quando a associação estava fazendo mais cobranças e reuniões para discutir a presença dos invasores], quando mataram um cachorro meu e jogaram na porta da minha casa”, disse.
Como presidente da associação, ela diz que a demora no processo de demarcação é por culpa do Estado e da quantidade de pessoas que invadiram o território. De acordo com os Wajuru e a associação quilombola, o território enfrenta invasões de hoteleiros, fazendeiros, religiosos, pescadores e também do tráfico de drogas, que atua na fronteira. “Este é um território complexo, porque a extensão territorial é toda tradicional e daí tem outras pessoas de fora, tem gente com mais condições financeiras que a gente. Eu penso que a demora da regularização é porque o governo tem que indenizar essas pessoas e tem que fazer desintrusão”.
O advogado Maurício Terena, que acompanha o caso pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), diz que o descaso é geral, passando pelo município, pelo governo do estado e pelo federal. “Eles agem de maneira totalmente leniente com a invasão. Eles trabalham incansavelmente para fazer com que a demarcação não ande, que as invasões continuem, que se crie condições para as pessoas que estão invadindo ali terem uma garantia que em algum momento do futuro essas ocupações ilegais tornem-se legais e elas serão proprietárias”, afirma.
O governo de Rondônia, a prefeitura de Alta Floresta e a Funai foram procurados por esta reportagem para atualização dos processos e posicionamento sobre o assunto, mas não responderam até esta publicação.
Um território multiétnico
Os órgãos federais respondem à ação civil movida pelo MPF-RO em 2020, em nome de indígenas e quilombolas, que pede a confirmação de um território multiétnico no local, ou seja, que seja compartilhado por dois povos tradicionais. Os procuradores também pedem que os estudos ambientais sejam concluídos, o que não foi feito.
A Funai e o Incra, alegam, no processo, que não existe legislação federal para demarcar territórios multiétnicos. A reportagem questionou os órgãos a respeito da existência de outros casos em que o mesmo dilema esteja sendo enfrentado, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
“As requeridas [Funai, Incra e União] insistem na impossibilidade de constituição de território multiétnico, pretendendo suplantar os interesses das comunidades envolvidas”, afirmou o MPF-RO, em resposta à InfoAmazonia.
O MPF-RO também informou que, em abril deste ano, pediu um julgamento antecipado, para que os órgãos reconheçam o território e façam um plano de trabalho conjunto: “a ausência de território demarcado é fator de risco para as populações tradicionais, pelas pressões da sociedade envolvente (ameaças, ocupação do território, deficiência na instalação de serviços públicos, etc.)”.
Em 2021, a Funai tentou suspender o processo de demarcação da parte do território indígena. Já o Incra tinha até fevereiro daquele ano para fazer o levantamento ocupacional dos quilombolas, mas não concluiu até agora. Em 2022, a Justiça reconheceu a omissão dos órgãos, mas o processo segue em andamento com um pedido por parte do MPF para que a demarcação seja concluída.
Depois da decisão judicial, a Funai publicou uma portaria criando um Grupo de Trabalho, que deveria realizar os estudos socioambientais da região, levando em conta a presença dos indígenas. Apesar disso, os estudos não foram concluídos e os indígenas ainda não foram consultados até o momento.
Já os quilombolas conquistaram a declaração de reconhecimento da Fundação Palmares, mas ainda necessitam passar por outros cinco passos para ter a terra oficializada: a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID); publicação do RTID; portaria de reconhecimento; decreto de desapropriação e a titulação.
William Coimbra, do Departamento de Titulação Quilombola do Incra de Rondônia, é o único responsável dentro do órgão pelas titulações de quilombos no estado. Ele diz que durante o governo Bolsonaro foi impossível trabalhar e que somente em dezembro de 2023 conseguiu ir a campo para começar o relatório de Porto Rolim. A visita, no entanto, não gerou muitos resultados, porque ele não tinha carro para locomoção. Andou a pé, visitando as casas, mas não conseguiu concluir.
“É uma região perigosa. Eu já fui ameaçado, mas não me amedrontei. Em uma comunidade que hoje é titulada, eu tive que formatar 22 processos de desintrusão, onde tinham políticos e funcionários públicos”, conta.
Questionado sobre a demora neste processo, ele diz que a região sofre muitas influências e que todas as ocupações são irregulares. “Como é que a pessoa entra, se instala num lugar que é de propriedade de outros? A prefeitura fica investindo lá dentro da área para dizer que o município está ali, que o município faz isso e faz aquilo, mas é um jogo político”, disse o servidor.
O advogado Maurício Terena afirma que esse é um dos casos mais emblemáticos em que já trabalhou e que, em todas as instâncias de poder existe uma forma de violação aos direitos das populações. “As violações de direitos humanos são gravíssimas ali no território. A gente achou que as coisas estavam ruins ali porque estava no período do [governo] Bolsonaro, mas veio o governo Lula e continua assim. É um caso que demonstra as dificuldades do próprio governo em fazer a proteção desses territórios”, explica.
Incentivo ao turismo sem consentimento
Em maio deste ano, o governo do estado de Rondônia anunciou um evento de pesca turística na região, que deveria ocorrer em 29 e 30 de junho. Depois, voltou atrás e trocou o local. Esse evento chegou a ser anunciado mesmo após, em 2019, as populações indígenas definirem um protocolo de consulta livre, prévia e bem informada, com apoio do MPF-RO, para estabelecer como a comunidade precisam ser consultada para que entenda e decida, de forma coletiva, sobre o consentimento para os empreendimentos em seu território. “As atividades vinculadas ao turismo desordenado de pesca estão impactando negativamente nosso território, afastando nossos peixes e quelônios, dificultando nossa sobrevivência, assoreando nossos rios”, disseram, no documento.
Desde 2020, a prefeitura faz propaganda do território para turismo. O MPF-RO denunciou na ação civil que, naquele ano, foram adicionadas na cidade 32 placas sinalizadoras com textos de “conheça Porto Rolim”. “Quem procura descanso, contato com a natureza, pode aproveitar para visitar Porto Rolim e ainda conhecer Alta Floresta”, disse o prefeito, à época, em comunicado. Na denúncia, o MPF-RO solicitou que a União adicionasse duas placas na entrada do território, informando que o local pertence à União e que é reivindicado por populações tradicionais. As placas foram adicionadas em fevereiro do ano passado.
Demarcações e titulações na Amazônia
De acordo com balanço da Comissão Pró-Índio de São Paulo, o governo Lula expediu 10 titulações quilombolas no primeiro ano de mandato, nenhuma delas na Amazônia. Ainda existem 1,8 mil processos aguardando regularização. Reportagem da InfoAmazonia mostrou que, quando titulados, esses territórios têm altas taxas de preservação, especialmente na região amazônica.
No caso dos indígenas, também foram 10 terras demarcadas neste governo. Quando a gestão assumiu, a expectativa era homologar 14 terras indígenas nos primeiros seis meses. No primeiro ano, foram oito demarcações. Em abril deste ano, as organizações indígenas esperavam a regularização de mais seis territórios, o que não ocorreu. Apenas dois receberam a homologação da presidência. Além disso, os processos pendentes no Ministério da Justiça ficaram parados durante todo o ano de 2023.
Maurício Terena afirma que, apesar das dificuldades dos governos, é necessário que se faça, ao menos, a proteção territorial enquanto os processos ocorrem. “Tem alguns casos em que poderia ser feito no mínimo uma articulação em relação à melhoria da situação, no caso dos Wajuru, por exemplo, poderia tentar fazer alguma coisa ali, alguma instância de poder tentar diminuir a tensão. Tem um pouco de inoperância e ineficiência sim na instância de governo, que precisa dar atenção ao caso”, diz o advogado.