Em entrevista à InfoAmazonia, o coordenador da TI Raposa Serra do Sol conta que, aos 18 anos, ficou revoltado quando perdeu o pai, assassinado em emboscada por um fazendeiro. Hoje, trabalha em defesa do território, que sofre novas invasões, com ataques de traficantes e garimpeiros, e diz que encara a defesa da terra indígena como um dever.

Na tentativa de impedir a entrada de invasores na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), em Roraima, Amarildo Macuxi arrisca a própria vida enfrentando ameaças de traficantes e garimpeiros. Como coordenador da região das Serras, uma das quatro subdivisões do território, ele é responsável pela organização de 77 comunidades, todas associadas ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), e trabalha diariamente em defesa dos recursos naturais e dos direitos dos indígenas que ali vivem.

A InfoAmazonia esteve na comunidade Mutum em janeiro deste ano, quando ocorreu a Assembleia Geral da Região das Serras, evento organizado por Amarildo. O local foi escolhido porque fica ao lado do rio Maú, exatamente na fronteira com a Guiana, região explorada por garimpeiros. As lideranças da TIRSS afirmaram que os invasores permanecem no lado da Guiana durante o dia, mas, à noite, atravessam e garimpam no lado brasileiro. 

Amarildo trabalha para impedir essas e outras invasões. Ele tinha 18 anos em 2003,  quando seu pai, Aldo Macuxi, foi assassinado em uma emboscada por um fazendeiro. Naquela época, a TIRSS ainda estava em fase de reconhecimento, processo que teve início em 1970 e só foi concluído em 2005, com a demarcação e a expulsão dos não indígenas que viviam no local. 

Nesta entrevista, ele relata que, com a morte, surgiu a revolta e a determinação para continuar em defesa de seu território, que mais uma vez se encontra vulnerável aos ataques. Além disso, aborda o combate ao garimpo, as oportunidades de crescimento da comunidade e a pressão de viver sob um governo estadual que favorece a mineração. 

Leia a seguir a entrevista completa.

InfoAmazonia — Como se deu o teu caminho para estar hoje na posição de coordenador? 
Amarildo Macuxi – A morte do meu pai me revoltou, foi uma perda mesmo. Ele foi um homem que lutou muito aqui, na [comunidade] Mutum, na [comunidade] Laje. Ele foi morto por causa do território. Nós tínhamos nossas roças e gados e os fazendeiros diziam que estávamos invadindo o território deles. Eu fui entendendo isso, fui ficando maduro e fiquei revoltado. Foi quando eu decidi seguir o trabalho dos tuxauas: Cargo de liderança concedido pela comunidade a qual a pessoa faz parte. São responsáveis por participar de assembleias, organizar movimentos e repassar informações para coordenadores regionais., de defender o território mesmo. 

Eu nunca tive medo de sair para o embate. Já participei de várias audiências, já denunciei muito, já fui em Brasília. Eu já estive em audiência com todos os ministros [do Supremo Tribunal Federal]. Já conversei com deputados e senadores. Já estive em audiência com ministra de Relações Exteriores. O pessoal da região ficou observando meu trabalho. Qualquer perseguição que existia, eu ficava na linha de frente, foi assim que eles me escolheram.

Assembleia Geral da região das Serras ocorreu em janeiro deste ano e reuniu tuxauas e lideranças de 77 comunidades da TI Raposa Serra do Sol Foto: Nailson Wapichana/ InfoAmazonia

Por que a região que você coordena é considerada uma das mais vulneráveis às invasões?
A maioria das comunidades aqui da nossa região ficam na margem do rio Maú por conta que antigamente não existia a encanação de água, não existia poço artesiano. Antigamente, a gente tinha costume de usar água que não era poluída, mas agora aqui as comunidades já sofrem por conta do garimpo.

E aqui é fronteira. Aqui, nessa comunidade [Mutum], é um ponto clandestino de travessia, de tráfico mesmo, muitos entorpecentes que passam. Esses caras que vêm, eles não são indígenas, eles são de outros estados. Eles adentram a comunidade, fazem bagunça aqui, embriagados de bebida alcoólica, drogados também. Inclusive, aqui, nós já prendemos quatro [invasores] e hoje tem [mais] dois que foram presos. 

Aqui, nessa comunidade [Mutum], é um ponto clandestino de travessia, de tráfico mesmo, muitos entorpecentes que passam. Esses caras que vêm, eles não são indígenas, eles são de outros estados. Eles adentram a comunidade, fazem bagunça aqui, embriagados de bebida alcoólica, drogados também.

Amarildo Macuxi

Então, assim, a gente foi ameaçado, eu e o tuxaua Paulo Roberto. Agora, nessa assembleia, o cidadão saiu ameaçando os nossos vigilantes, por esse motivo que prenderam ele. Com relação à gente, não tem nenhuma segurança no nosso trabalho. Fico preocupado, só que é o nosso trabalho, é o nosso dever. Já foram 21 lideranças assassinadas pela luta da Raposa Serra do Sol por causa desses invasores e nenhum deles paga por isso. A gente sabe que está lutando pela liberdade do nosso povo e estamos preparados para tudo, para defender e também para sair para o embate contra esse pessoal. A gente não tem medo, não. 

Não tem nenhuma segurança no nosso trabalho. Fico preocupado, só que é o nosso trabalho, é o nosso dever. Já foram 21 lideranças assassinadas pela luta da Raposa Serra do Sol por causa desses invasores e nenhum deles paga por isso.

Amarildo Macuxi

Como funciona o monitoramento territorial de vocês?
Alguns são formados na área de policiamento comunitário, têm certificado. Tem o nosso GPVITI [Grupo de Vigilância e Proteção das Terras Indígenas] que também são operadores em direito, eles têm formação, mas eles já tiveram treino de como abordar as pessoas. Mas o objetivo da criação deles é fazer a vigilância e monitoramento territorial e a partir do momento que a gente descobre coisas estranhas no nosso território, a gente tem denunciado para as autoridades. Esse é o trabalho deles. Aí, quando não tem a tomada de providência, nós resolvemos o problema por aqui mesmo.

Não ter essa tomada de providência acontece com frequência? 
É muito difícil eles atenderem rápido e, quando levam, eles soltam o cidadão, aí ele volta. Aqui no Brasil, a Justiça é muito lenta. Inclusive, um [invasor] que foi preso já voltou e está ameaçando a comunidade. Mas é assim, a gente já está acostumado com isso também. A gente está preparado para isso, né? Para sair para o embate.

Aqui no Brasil, a Justiça é muito lenta. Inclusive, um [invasor] que foi preso já voltou e está ameaçando a comunidade. Mas é assim, a gente já está acostumado com isso também. A gente está preparado para isso, né? Para sair para o embate.

Amarildo Macuxi

Amarildo, ainda sobre essa fronteira, me fala um pouco sobre a situação dos garimpeiros? 
O rio Maú está sendo contaminado por conta do garimpo. De dia, eles trabalham na Guiana e, à noite, no Brasil. É um garimpo que tem um acordo com os parentes da Guiana, com as liderança da Guiana. Nós vamos tomar uma providência em relação a isso, porque ele está contaminando o meio ambiente. Os parentes da Guiana também são do povo Macuxi, só que na Guiana o garimpo é liberado. Aqui no Brasil é proibido [em terras indígenas], então, os brasileiros têm acesso lá, mantêm acordo com os parentes. A organização deles é muito diferente da gente. O acordo é que eles [garimpeiros] colocam a máquina mineradora e empregam as comunidades, mas é como se fosse um trabalho escravo. São parentes que convivem com a gente também, só que eles já têm outra organização diferente.

Existe uma organização dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que é a favor do garimpo. Como vocês lidam com isso? 
A Sodiur [Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima] nunca aceitou a nossa forma de se organizar. A gente está conversando agora, mostrando para eles como é que nós temos que nos organizar. Eles sempre lutaram para ter demarcação por ilhas: A demarcação por ilhas é uma proposta que prevê a delimitação da área de um determinado território de forma não contínua, ou seja, como o próprio nome diz, em ilhas., e perderam. A gente ganhou em área contínua e agora a gente continua lutando pelo nosso projeto e eles continuam lutando por projeto de grão. É muito difícil porque são indígenas, não são pessoas de fora, são nossos parentes, só que com uma ideologia diferente. 

Coordenador Amarildo Macuxi pretende fortalecer o trabalho com as plantações e com a criação de animais nas comunidades da região das Serras. Foto: arquivo pessoal

Sobre a relação com o governo estadual: o quão difícil tem sido enfrentar a gestão do governador Denarium? 
O governador concorda com o garimpo, ele incentiva a invasão dentro dos territórios. Ele fez uma lei para usar o mercúrio nos garimpos, entramos com ação no STF, que invalidou a decisão do governo. Depois, eles fizeram outra lei [determinando] que era proibido queimar equipamento de garimpo. É uma guerra, mas com esse discurso deles, eles conseguem incentivar a invasão para dentro das terras e esses invasores vêm. Agora, com essa aprovação do marco temporal, incentiva mais ainda. Eles conseguem desestruturar a nossa organização social, porque conseguem manipular algum membro da comunidade para poder aceitar o arrendamento de terra, aí já começa a briga. 

Assim como o governo está fazendo com o projeto de grãos. A gente não tem costume de trabalhar nas nossas lavouras com esse tipo de química, para colocar nos nossos alimentos. Aqui, a gente trabalha de forma sustentável. E o governo tem um projeto de grãos que tem essa proposta de fazer lavouras de plantação de milho nas comunidades indígenas, como se fosse fazer o bem, mas para nós não é o bem. É uma ameaça às nossas sementes tradicionais. A gente não aceita que as sementes que são de fora estejam dentro dos nossos territórios e nós valorizamos muito a diversidade de produtos que nós temos. 

Como não teve consulta, não teve conversa, ele [governo] consegue colocar em algumas comunidades que aceitam e consegue já desestruturar a nossa organização. 

Vocês estão sentindo um impacto forte do clima na produção de vocês? 
A gente tem detectado o verão muito antecipado, a gente está acostumado a plantar a macaxeira depois da colheita do feijão. Só que dessa vez eles foram surpreendidos, porque o verão foi muito cedo e forte e as nossas plantações não aguentaram. Nossos rios secaram né? Então, para regar, para plantar, foi difícil. Outra surpresa foi que choveu granizo. Com a seca dos rios, também perdemos muitos animais, muito gado, por falta de água. 

Trabalhar no calor dá muita dor de cabeça, cansaço, até impede as comunidades de trabalhar. A gente tem costume de trabalhar no ‘sol quente’, mas aí já foi demais. Estamos torcendo para tudo voltar ao normal. 

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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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