Em entrevista à InfoAmazonia durante o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, a ativista indígena criticou as decisões do ministro do STF, que, além de suspender ações que questionavam a lei do marco temporal aprovada pelo Congresso, abriu uma conciliação sobre o assunto.

Em entrevista à InfoAmazonia durante o terceiro dia do Acampamento Terra Livre (ATL), que reúne milhares de indígenas em Brasília até a próxima sexta-feira (26), a liderança indígena Txai Suruí criticou a decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu as ações que questionam a legalidade da lei 14.701/2023, também chamada de lei do marco temporal, aprovada e sancionada pelo Congresso no final do ano passado.

“A gente de fato estava esperando uma mudança e o que a gente está vendo é que os nossos direitos estão sendo negociados. Nós temos que esperar? Os nossos direitos previstos na Constituição têm que esperar? Enquanto isso, a gente continua sendo violentado, nossas terras continuam sendo invadidas, as nossas vidas continuam sob perigo”, afirmou Txai.

Na segunda-feira (22), no primeiro dia do ATL, Gilmar Mendes abriu uma conciliação para discutir a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, ao mesmo tempo em que suspendeu os três pedidos de inconstitucionalidade da lei. Essa definição permanecerá até que o STF julgue a legalidade da norma, evitando decisões conflitantes em instâncias inferiores.

“Parece muito bom a palavra conciliação, tem um peso favorável. No sentido de ‘vamos dialogar’, mas existem direitos que não se negociam. Querem continuar negociando a nossa vida? A gente está vendo a situação que os Yanomami se encontram até hoje e que o próprio governo federal não consegue resolver. Não tem condições de resolver. Eles mesmos dizem que não têm condições de resolver. Então, eles querem que isso seja aberto para os nossos territórios? Isso é genocício também. Genocício não é só meter bala. O genocídio vem através da canetada também”, afirmou Txai. 

Parece muito bom a palavra conciliação, tem um peso favorável. No sentido de ‘vamos dialogar’, mas existem direitos que não se negociam. Querem continuar negociando a nossa vida? A gente está vendo a situação que os Yanomami se encontram até hoje e que o próprio governo federal não consegue resolver. Não tem condições de resolver. Eles mesmos dizem que não têm condições de resolver. Então, eles querem que isso seja aberto para os nossos territórios? Isso é genocício também. Genocício não é só meter bala. O genocídio vem através da canetada também.

Txai Suruí, liderança indígena

O posicionamento do ministro do STF ocorreu pouco tempo depois de outra decisão que estremeceu a relação entre indígenas e o governo federal. Na semana passada, em 18 de abril, Lula surpreendeu os indígenas ao anunciar a demarcação de apenas duas terras indígenas em meio à expectativa de que fossem seis territórios. O presidente justificou a decisão dizendo que os “governadores pediram mais tempo”.

“Não estamos pedindo nada além do que já está previsto na Constituição, além do que foi prometido pelo próprio governo”, enfatiza Txai, lembrando que Lula prometeu demarcar 14 terras indígenas nos 100 primeiros dias de governo — até o momento, 264 dias desde a posse, 10 territórios foram demarcados. 

Lula sobe a rampa do Palácio do Planaldo no dia da posse como Presidente da República ao lado do cacique Raoni e outros representantes da sociedade civil. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A tese do marco temporal, considerada inconstitucional pelo STF em setembro do ano passado, afirma que os povos indígenas só podem reivindicar terras que estavam ocupando ou disputando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira. 

No entanto, após a decisão do STF, o Congresso aprovou a lei 14.701/2023, que, além de desafiar a posição pró-meio ambiente assumida pelo governo Lula, inclui uma série de alterações nas regras para uso e exploração de terras indígenas, como a instalação de projetos para produção agropecuária, construção de hidrelétricas e rodovias em terras indígenas.

Acampamento Terra Livre acontece em Brasília até a próxima sexta-feira, 26 de abril. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Para indígenas entrevistados pela InfoAmazonia, Lula demonstra estar sendo pressionado para negociar com a bancada ruralista, que tem maioria no Congresso para aprovar ou não outras pautas de interesse do governo. 

Enquanto isso, segundo Txai, a violência nos territórios aumentou após a aprovação da lei no Congresso, que, além de gerar dúvida sobre o que deve ser considerado no ordenamento jurídico, em tese, autoriza que essas invasões se justifiquem pela aprovação da lei. “Ele [Gilmar Mendes] fala que os governos estaduais não podem decidir pela inconstitucionalidade da lei do marco temporal, tem que esperar uma decisão do STF, como se o STF já não estivesse decidindo isso. É um jogo político mesmo”, diz a indígena.

O ministro do STF, Gilmar Mendes, durante entrevista em seu gabinete no último 17 de abril. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Em fevereiro deste ano, a InfoAmazonia revelou que fazendeiros em Rondônia evocaram a lei do marco temporal para promover invasões de terras indígenas no estado. Os episódios foram registrados logo após o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), promulgar a lei que chegou a ser vetada pelo presidente Lula.

Nas redes sociais, políticos da bancada ruralista passaram a divulgar que a lei estaria em vigor e precisava ser aplicada, ignorando a inconstitucionalidade da tese do marco temporal julgada pelo STF. 

Em sua decisão, Gilmar Mendes destacou a necessidade de abordar a raiz do conflito, mencionando as intensas controvérsias e a complexidade da resolução deste tema, tanto pelos métodos tradicionais de resolução de conflitos, quanto pelo processo político. 

A conciliação proposta pelo ministro do STF incluirá representantes dos partidos que ingressaram contra e a favor à tese do marco temporal, entidades civis, e dos poderes Executivo, Legislativo, além da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR), com um prazo de 30 dias para que apresentem propostas para discussão.

Toya Manchineri, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), diz que a decisão de Gilmar Mendes coloca a decisão sobre a demarcação de terras indígenas nas mãos de governadores e fazendeiros:

“Ele colocou a vida dos povos indígenas nas mãos dos fazendeiros. Deixar que eles negociem demarcação com os indígenas não existe, não vai sair demarcação nunca”, disse Toya à InfoAmazonia. “Vai morrer mais gente, vai morrer mais liderança indígena”, completou. 

Ele [Gilmar Mendes] colocou a vida dos povos indígenas nas mãos dos fazendeiros. Deixar que eles negociem demarcação com os indígenas não existe, não vai sair demarcação nunca.

Toya Manchineri, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)

No total, segundo o ISA, são 779 terras indígenas no Brasil, das quais 528 tiveram todo o processo de demarcação concluído. Além das terras já declaradas pelo Ministério da Justiça, existem ainda 46 territórios identificados que aguardam serem declarados e outros 141 estão em processo de identificação. Apenas na Amazônia, são 331 terras indígenas, sendo 289 com decretos de homologação publicados e 42 em processo de demarcação. Ao menos 21 territórios na Amazônia foram declarados e dependem apenas da homologação presidencial.

No ritmo atual, com seis homologações por ano, o Brasil levaria 41 anos para concluir a demarcação das 251 terras indígenas que se encontram em alguma das fases do processo de demarcação.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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